segunda-feira, 30 de novembro de 2020

A CASA GRANDE AO LADO

 

Gabriel Vit 

 

A família Silva Santos era uma família simples, humilde, interiorana e formada por três homens e duas mulheres. Os pais, Nilva e Benedito, tinham entre 50 e 60 anos, eram pessoas sistemáticas, não ficavam de conversa nem mesmo com os filhos e não faziam outra coisa senão trabalhar. O filho mais velho, Alberto, de 33 anos trabalhava de retireiro em outra fazenda na região oposta à que ele morava, assim sendo, ele só vinha para casa aos finais de semana. Martina e Veríssimo, os gêmeos de 22 anos de idade, não trabalhavam, ao passo que não eram mais crianças, seus comportamentos também os impossibilitavam de serem chamados de adultos. A garota se sentia como um peixe fora d'água por viver no lugar que vivia, culpava seus pais por isso e passava a maior parte do tempo em seu quarto fazendo sabe-se lá o quê. Já Veríssimo era diferente de todos, era bastante simpático e sorridente, no entanto a família não via tais características com bons olhos, já que sorria demais e nunca via problemas em nada, para todos ali, Veríssimo era um tanto quanto louco, sem contar que dizia conversar com um tal Mariano que morava na casa grande ao lado da sua. Uma casa boa, mas que outrora, misteriosamente, fora abandonada.

Por vezes Martina achara que seu irmão dizia aquilo só por implicância, para dizer que tinha um amigo na casa grande e que ela não tinha. Porém, não se prolongou por muito tempo, a família Silva Santos logo descobriria o que estava acontecendo ali. Tudo começou a acontecer quando o Padre José Quitéria batera na porta dos Silva Santos durante uma madrugada de terça para quarta-feira. (20 linhas)

 

Alberto Vasconcelos

 

As batidas insistentes na porta da frente, inicialmente despertaram Nilva. Ao seu lado, Benedito envolto na grossa manta de lã, gargarejava o sono dos justos. Novas batidas. Nilva sentada na cama, viu pelo relógio de cabeceira que o sol ainda demoraria algum tempo para tingir o céu com as cores do amanhecer. Chamou o marido, alguém estava chamando e pelo adiantado da hora, não podia ser boa coisa. Sonolento e de mal humor, Benedito viu pela fresta da janela que era o padre. A notícia de que o filho fora levado para a clínica, desmaiado, foi dita sem meias palavras. Havia suspeita de over dose de entorpecente e eles precisavam ir imediatamente para autorizar os procedimentos médicos necessários para contornar a situação. Mas a história contada pelo padre, não se encaixava dentro da lógica. Por qual razão, Mariano o “amigo” de Veríssimo tinha procurado ajuda na casa paroquial? Qual a ligação do padre com aquele rapaz estranho, raramente visto entrando ou saindo do casarão. Veríssimo falava pouco sobre o amigo, mas era notória a influência que esse exercia sobre o rapaz cujo comportamento era motivo de preocupação para os pais. Parecia que tinha vindo ao mundo em férias. Não demonstrava interesse por nada como se procurasse retardar ao máximo as responsabilidades da maturidade. Agora mais essa suspeita de envolvimento com drogas. Sobre a maca, ligado ao soro e com intensa sudorese, Veríssimo não esboçou nenhuma reação quando Nilva chamou pelo seu nome. Benedito pegou no braço do filho e, pela frieza das suas mãos brancas como cera veio-lhe a certeza de que o filho estava morto. (19 linhas) 

   

José Bueno Lima

 

Morto? Que nada! Aconteceu que Veríssimo, num daqueles encontros misteriosos com Mariano, na casa grande, tarde-noite daquele dia, ficou surpreso com o bar existente na sala. Nunca havia ingerido bebida alcóolica em sua vida. Pegou uma garrafa do licor 43, espanhol, serviu-se num cálice e bebeu, docinho, gostou, bebeu outra dose, depois outra, até ficar completamente embriagado. Devido aos remédios que tomava, a coisa complicou. Mariano fez de tudo para reanimá-lo, até que, desesperado, chamou o SAMU. Então, Veríssimo foi levado para o hospital, e Mariano não querendo comunicar aos pais do amigo, dirigiu-se até a igreja, e contou para o padre José Quitéria, amigo da família. Portanto, esse era o estado em que Nilva e Benedito encontraram o filho, pós uma bebedeira, já sob os cuidados médicos, e que a ignorância deles dava o filho como morto. Veríssimo, na realidade, apesar de demonstrar ser louco, como diziam, sofria de dislexia, isto é, não conseguia ler, escrever, e era limítrofe de autismo, como foi comprovado em exames feitos por psiquiatra, psicólogos e profissionais de ensino. Um aspecto que todos de casa se surpreendiam com ele, era sua facilidade em relação à música. Ele possuía ouvido absoluto, isto é, habilidade em identificar uma nota musical, o que lhe permitia, tocar uma música com grande facilidade ao piano, por exemplo. Outro aspecto interessante dele, como já foi dito, era sua simpatia e comportamento perante as pessoas, usando um palavreado muito bom, principalmente com a ala feminina, cativando a todos. Não era uma figura detestável, como a família o pintava. (19 linhas)

 

Cléa Magnani

 

Tanto ele, como Martina demonstravam sentirem-se, “peixes fora d’água”, e eram considerados “estranhos”, por todos. Martina, se fechava no quarto, e enquanto dormia, seu espírito vagava por esferas onde ela se sentia feliz. Já Veríssimo, mais ligado às coisas da terra, ria muito, e com isso aparentava simpatia por todos, embora, seu espírito inculto revelasse suas dificuldades, através da dislexia, e autismo, mas quando Veríssimo entrou pela primeira vez naquela casa grande e praticamente abandonada, teve a nítida impressão de estar na casa da fazenda onde vivera no século XIX. Ali ele era um escravo, filho de uma escrava, hoje sua mãe Nilva, e do Feitor hoje o Padre José Quitéria. O dono da enorme fazenda era o cruel Sinhô Benedito, hoje seu pai. Sinhazinha, hoje sua irmã Martina, era casada com um caixeiro viajante, hoje seu irmão Alberto. E Mariano, a figura misteriosa da Casa Grande ao Lado, era também escravo.

Após receber violento castigo aplicado pelo feitor, Veríssimo jurou para Mariano que planejava fugir da fazenda. Na noite da primeira chuva da Primavera, Veríssimo acordou Mariano para que os dois fugissem juntos, Mariano, com medo, não quis acompanhá-lo na fuga. Quando o Sinhô Benedito soube da fuga, interrogou Mariano, que acabou contando que sabia da fuga de Veríssimo, mas que não o acompanhou. Foi o bastante para que o Sinhô ordenasse ao Feitor, o maior dos castigos a Mariano, que acabou morrendo no tronco esvaindo-se em sangue, depois da tortura, não antes de jurar que perseguiria Veríssimo até vê-lo destruído. No dia seguinte o Feitor encontrou Veríssimo e o matou com um tiro, para não ver o filho sucumbir no tronco. Mariano cumpriu a promessa. Obsediar Veríssimo. E é o que faz. (21 linhas)

 

 

Gabriel Vit

 

Depois do ocorrido a família voltou os olhares para dentro de sua casa, talvez houvesse ali um pouco de vergonha ou julgamento, eles se olhavam com olhos que compreendiam as particularidades de cada um. O momento não era uma tentativa de mudança, soava como um pedido de desculpas. A vida não mudou rapidamente, Veríssimo aos poucos foi se desenvolvendo na música, começou a participar dos encontros do coral da igreja e tirou Martina do quarto, ela se revelara uma ótima cantora. Linda de voz e aparência, mas triste de expressão, Martina não se encaixava nem fazendo o que achava ter nascido para fazer.

Num domingo enquanto iam para a igreja Benedito e Nilva se encontraram com Mariano, era o primeiro contato entre eles. Para surpresa do casal, Mariano não era jovem, deveria ter por volta de 54 anos de idade, tinha boa aparência, se vestia e andava com toda a pompa, mas classe nenhuma esconderia a maldade que existia naquele homem. Aquele momento fora o suficiente para que o casal decidisse ali mesmo que a casa grande não era o tipo certo de vizinhança que eles precisavam.  Após a missa informaram da mudança. A família se mudaria para a região que Alberto trabalhava. Martina não reclamou. Veríssimo não disse nada, mas ficara sentido, agora que ele estava se encaixando, Mariano era um de seus pensamentos frequentes, para Veríssimo, deixar o “amigo” sozinho era a maior prova de deslealdade. Na alvorada de segunda feira o gêmeo de Martina foi até Mariano na esperança de poder pelo menos se despedir. Veríssimo foi de peito aberto ao encontro do vizinho e não voltou mais para casa. Se morreu ou se fugiu, ninguém nunca soube dizer. Estas pessoas se encontrariam novamente, mas em outras vidas e com outros nomes. Assim como fora no passado, é no presente e será no futuro, até que cada um conclua sua missão no mundo.   (20 linhas)

Glossário:


Retireiro: ordenhador; tirador de leite; parceiro pecuário.

Sistemático: pessoa de princípios rígidos, previsível, imutável.


Autores: José Bueno Lima, Cléa Magnani, Grabriel Vit e Alberto Vasconcelos

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

ESCOLHAS


 


Helena Souza

Quando criança,  a vida foi bem difícil e Vitória sabia disso, pois viveu na pele as dificuldades de ser pobre, morar na zona rural, estudar na cidade, ter que acordar as 4 da manhã e caminhar até o ponto de ônibus. Ajudar em casa após a escola e ainda cuidar de dois irmãos mais novos . Se estava frio ou quente demais não importava, as tarefas e a caminhada eram feitas. A labuta era árdua, mas ela não desistiu. Sua maior inspiração eram os pais. Esses sim, haviam sofrido mais do que ela. Trabalho pesado na roça, vidinha difícil de não ter o que comer em alguns dias, mas eles venceram!

Conseguiram criar os cinco filhos, comprar uma casinha na cidade, aposentadoria no bolso. Ela sabia que uma hora a vida acalma. Depois de um dia longo e cheio de notícias ruins, outras nem tanto... "As pessoas não sofrem a vida inteira",  pensava a mulher, que um dia havia passado por todos esses revezes. A única coisa que desejava era saber a que horas seria isso. Quando a vida e os problemas lhe dariam uma trégua, qual dia a calmaria chegaria. Ela carregava no nome tudo o que  queria  conseguir na vida .

Estava tentando: faculdade, trabalho, noites de estudo. De uma coisa estava certa. Nada até hoje tinha sido fácil de conseguir então ela continuava lutando... Naquela noite, ocasionalmente, estava feliz. As atividades na faculdade estavam de vento em popa, o namorado sempre atencioso e gentil foi buscá-la  na faculdade e eles estavam indo para casa.

Gerson de Carvalho Silva

Vitória considerava os pais como vencedores, entretanto, só ter uma aposentadoria, filhos formados e uma casa era o suficiente? Descobriu-se, aos poucos, muito mais ambiciosa. Lucas, seu namorado, era despojado e nada ambicioso. Tinha preocupações sociais, participava de ONGs de proteção animal e era totalmente apaixonado por Vitória.

Esse conflito de visões de vida iria se acentuando com o tempo. A beleza da moça sempre chamou a atenção, mas ela era indiferente a isso. As coisas foram se alterando aos poucos e  Lucas foi perdendo espaço no coração e mente da moça.

Formou-se em direito e foi aprovada no exame da OAB. Propostas de emprego começaram a surgir. Aceitou trabalhar num grande escritório de advocacia. Começaram assédios profissionais e sexuais. Alguns, apenas flertes. Inteligente, administrava muito bem sua vida.

Foi designada para fazer parte de um processo que envolvia uma empresa com grande número de funcionários. Estava se segurando mantendo os empregos, era a única da cidade. Estava em recuperação judicial e o escritório de Vitória pedia sua falência. Centenas de empregos diretos e indiretos desapareceriam.

Ao saber, Lucas foi tirar satisfações com a namorada. Decepção total. A moça estava empolgada com a possibilidade profissional.

Alice Gomes

"De repente, no meio do caminho, encontraram um cãozinho ganindo de dor. Imediatamente Lucas se abaixara para socorrê-lo, sem perceber que interrompera o que ela dizia, deixando-a falando sozinha".  Ela falava, empolgada, de seus sonhos, de realizações, de casamento, de filhos, de um futuro para os dois, mesmo à custa de sacrifícios. Não se importava, desde que os dois estivessem juntos, mas, bastou  aparecer um cãozinho doente e pronto. Fora o suficiente para que ele se esquecesse de tudo. Nem sequer percebera que ela se calara durante o restante da noite. Não fora o cãozinho, mas a não  importância dada aos seus planos. Nunca mais tocara no assunto com ele.

 Recordando aquela noite, já longínqua, percebeu que ali estava a raiz dos conflitos entre os dois. Nem sabia por qual motivo ainda insistia naquela relação, já tão desgastada. Chegou à conclusão de que, no fundo, Lucas nunca se importou verdadeiramente com ela. Agora, estava preocupado com empregados desconhecidos sendo demitidos e ainda cobrava dela a responsabilidade! Foi a gota que faltava para o copo, já pela boca. E assim, decidida, curta e grossa, pediu que ele se retirasse, pois estava atrasada para uma importante reunião. E que fizesse o favor de nunca mais procurá-la.

Lucas, atônito, ainda quis argumentar, mas o som dos saltos nos pés apressados que se afastavam tiniu em seus ouvidos, selando o final doloroso do amor entre os dois. Tudo terminado. Já a conhecia o suficiente para não mais insistir.

Anos depois, com a vida feita, sucesso absoluto na carreira, casada e sem filhos, com um também advogado, bem mais velho e proprietário de várias empresas, adquiridas em leilões de falências, Vitória preparava-se para intermediar uma grande negociação internacional, ao lado do marido. No saguão do aeroporto reconheceu, num homem de rosto jovial e trajes despojados, ao lado de uma bela mulher e uma linda menininha, o mesmo olhar distraído e ao mesmo tempo curioso, de seu ex-amor.

Maria Mineira

“Meio desnorteada sem saber se ia até onde ele estava para cumprimentá-lo ou se ficava quieta esperando o horário do seu voo. Desistiu, pois não saberia nem o que dizer a Lucas, que estava muito bem  acompanhado, por sinal. Viu a mulher se afastar com a criança rumo ao toilette  e percebeu que ele caminhava em sua direção. Estava trêmula e se viu perguntando a si mesma, onde estava a sua costumeira segurança. Como saber que o reencontraria ali?  E agora?  Ele estava vindo. Como disfarçar para que ele não percebesse que ela  não o havia superado.

O que ele diria se soubesse que ela andava sonhando com ele ultimamente?

— Oi Vitória…que coincidência nos encontrarmos no aeroporto! Nem em um milhão de anos achei que iria te ver aqui.

— Sim! Incrível! E como você está, Lucas?

— Bem, obrigado! Estou indo para os EUA, mais especificamente Seattle. Priscila fará uma cirurgia para transplante de  medula óssea, serei seu doador.  Passaremos o mês todo por lá...

—Entendo, que bom que será o doador para sua filhinha!

— Não, apesar de amá-la como se fosse pai, sou apenas tio, ela é filha do meu irmão caçula, o Matheus, que já deve estar chegando,  estava resolvendo detalhes da viagem e se atrasou. Eu vim na frente com minha cunhada e a Pri.

Vitória sorriu  sem conseguir disfarçar certo contentamento. Lucas contou-lhe  que morava em Manaus coordenava uma ONG, cujo trabalho era  capacitar lideranças indígenas em relação a seus direitos. Também cuidava de órgão de preservação da fauna e flora local.  Confessou que adorou estar esses últimos anos  tão conectado com a natureza e aprendeu  que a vida é muito mais simples do que se imagina e agora tinha  plena certeza que “felicidade não depende do que se tem de material, feliz  é aquele que menos precisa”.

Ele quis saber da vida dela e Vitória  contou do mestrado na USP, logo depois  fez doutorado na escola de direito de Harvard, fortalecendo seu currículo e também foi onde conheceu o marido e  que viajaria para se encontrar com o ele, uma viagem de negócios.

— Eu conheço o felizardo?

— Não. Eu e ele nos conhecemos em Cambridge, bem depois que rompemos.

— Espero que você esteja feliz e  que ele seja menos complicado que eu.  

—Preciso ir, estão me esperando o voo vai sair...

— Espera...

— Fala!

— Nada, não!

  Posso te ligar?

Com o coração apertado Vitória o viu se afastar rapidamente em direção ao portão de embarque, colocando no bolso o cartão que lhe entregara.

Já acomodada em sua poltrona, na primeira classe do avião, questionava a si mesma se teria valido a pena perder o amor de sua vida em troca da realização profissional.

Quando visitava os pais, sentia que eram felizes só por estarem juntos e nunca aceitaram grandes contribuições em dinheiro, pois sempre diziam que  o amor que os unia era o bastante.

Helena Souza

Porém, Vitória sabia o quanto tinha sido difícil conquistar o que queria. Sua vida até então era do jeito que sempre desejou e não estava disposta a desperdiçar tudo que havia conseguido para retornar a uma vidinha medíocre ao lado de Lucas. Vida calma,  tranquila e feliz tinham seus pais.....ela almejava uma vida de viagens, negócios, dinheiro. Isso importava!

Tirou da bolsa o celular e olhou o horário do seu próximo compromisso e sem dúvida nenhuma, pensou: "o amor pode esperar."

 Autores: Helena Souza, Alice Gomes, Maria Mineira e Gerson de Carvalho Silva


segunda-feira, 23 de novembro de 2020

CANAVIAIS

 



Maria do Rosário Bessas

Sebastião, ou Tião como era chamado, era um caboclo alto, forte, de dorso torneado pelo manuseio da foice e do facão que empunhava desde menino no corte da cana, labuta dura que aprendera com o pai desde cedo, na sofrida luta pela sobrevivência. Corriam como ciganos pelos rincões do país afora, buscando emprego nos canaviais em tempos de safra, quando a mão de obra aumentava nas Usinas. Mal o dia começava a clarear, lá estavam nos pontos esperando os caminhões que levavam as turmas, homens e mulheres dispostos a desafiar o sol e os limites de seus corpos, desferindo golpes de foice nas varas cheias de gomos que da noite para o dia, perdiam sua roupagem verde de hastes longas, que se não fossem queimadas pelo fogo, cortavam a pele como navalhas. Sobravam talos enegrecidos, que eram cortados sem piedade e amontoados no meio do caminho, para que outras turmas viessem juntando em feixes e jogando nas carretas que passavam recolhendo a colheita do dia. Era essa a rotina do Tião, que fechara os olhos para outros destinos e só via os canaviais como o jeito de ganhar a vida. Era quase que feliz assim ... Mas chegou um dia  que seu destino começou a mudar. Seu pai se entregou ao cansaço da luta e depôs as armas de ganhar o pão. Não abriu os olhos numa manhã. Sua mãe, nunca mais foi a mesma e foi logo atrás, ao encontro dele. Seus dois irmãos, não quiseram seguir seu rumo e caíram no mundo em busca de outro destino. Ficou sozinho no acampamento, não queria mudar mais de cidade, gostara do lugar. Sabia que onde quer que fosse, a solidão seria a mesma.

Mas naquela manhã, foi diferente. O caminhão chegou com outra leva de canavieiros, e seu olhar curioso observava os que chegavam, quase todos iguais. Corpos brutos e afoitos, cobertos de roupas ásperas, chapéus para tapar o sol e a bendita foice nas mãos. Já ia se afastando para se reunir com a sua turma, quando viu uma mulher se desequilibrando ao descer do caminhão que os trazia. Instintivamente, correu em sua direção para ajudá-la, perguntando se estava bem. Sentiu seu coração dar um pulo quando os olhos negros dela caíram dentro dos seus, e seus lábios deram o sorriso mais lindo que ele já vira na vida. Seus braços a envolveram de leve na cintura, para que ela recuperasse o equilíbrio e mal ouviu o que ela disse ao agradecer sua ajuda. Ficou olhando-a se afastar, imaginando que por detrás daquela vestimenta rústica se escondia uma deusa, que num segundo apenas fora capaz de despertar todos os sentidos que estavam adormecidos no seu corpo embrutecido pela vida dura que até então tinha vivido. Jurou que a veria de novo...

Celêdian Assis de Sousa

Tião recolheu sua foice e seus outros apetrechos que deixara no chão enquanto socorria a moça, tomou o rumo do canavial para mais um dia da dura lida. Absorto em seus pensamentos seguia imaginando como seria encontrar de novo aquele olhar perturbador e aquele sorriso que o enfeitiçou. O dia lhe pareceu longo demais, pois estava muito ansioso para retornar ao acampamento ao fim do dia e quem sabe ter a oportunidade de se aproximar daquela moça. Enfim caiu a tarde e ao voltar lá estava ela, do outro lado de seu alojamento. Estava junto as outras mulheres e alguns dos canavieiros que ainda davam os últimos retoques em suas tendas, as que os alojariam nos próximos dias, durante a colheita da cana. Elas prepararavam alguma comida num fogão improvisado, ao ar livre e por isso mesmo a moça nem se deu conta da chegada de Tião. Ainda trajava as mesmas vestes com as quais chegara naquela manhã, tinha ares de cansaço, mas um cansaço que não lhe tirara aquela beleza e o encanto que acordaram os sentimentos adormecidos nele.

Tião tirou o chapéu e meneando a cabeça, fez um gesto de cumprimento aos novos canavieieros, dizendo:

—Taaaaardeee... e foi então que ela, sorrindo amavelmente, respondeu:

— Taaaardeee... moço! Como foi a labuta hoje?

— Bem normal, moça. Por aqui nunca muda nada, não, a vida da gente é uma peleja danada, é chegar de tarde numa canseira braba, a conta da gente se lavar, encher o bucho com alguma coisinha e bater na cama, pra levantar bem cedo no outro dia e começar tudo traveiz. E ocê, daonde tá vindo, qualé a vossa graça?

— Jacinta, é um prazer te conhecer! E a sua graça, qual é? Imagino que deve ser aqui da região?

— Sebastião, mas todo mundo me trata por Tião. Sou aqui das redondezas, mas pareço cigano, difícil criar laço muito tempo num lugar só — respondeu sem tirar os olhos dela, ainda extasiado pela sua beleza e intrigado com aqueles traços finos e delicados tão escondidos sob aqueles trajes rotos e pelo chapéu maltratado pelo uso. Até o jeito de falar de Jacinta era diferente, jamais vira alguém assim naquele meio em que vivia.

— Pois posso te contar como vim parar aqui numa outra hora? Mas se prepara porque é uma história longa por demais. Agora, se não se importa, vamos terminar de ajeitar nossas coisas por aqui, pois amanhã já estaremos na lida, junto com vocês...

Marina Alves

No minúsculo quartinho de madeira do alojamento o calor era sufocante. Pela única janelinha aberta, — a ver se entrava uma aragenzinha noturna que fosse — Jacinta olhava o céu pingado de estrelas. As três companheiras com quem dividia o miserável cubículo dormiam o sono dos cansados. A rotina ali não era fácil. Em apenas um dia, tinha já visto tudo que a esperava nas terras do multimilionário Dr. Afrânio Coimbra. Trabalhadores vindos de longe, em sua maioria das terras nordestinas, onde a seca castigava e tirava todas as condições dignas de vida. Eram homens e mulheres que chegavam nos Paus de Arara, querendo uma oportunidade no corte da cana. E a ocasião da colheita era a hora, já que a mão de obra era escassa em terra de tanta cana.

Sem poder pegar no sono, Jacinta se revirava no colchão duro de capim. Nem mesmo o peso do facão que manejara o dia inteiro conseguia fazer com que o corpo entrasse em repouso, porque a cabeça fervilhava. Tinha relutado na decisão de se misturar ao Pau de Arara, largar tudo em Aracaju e vir parar nas terras dos Coimbras. Sabia da árdua missão que a esperava. Sabia do sacrifício que teria que fazer para permanecer ali. Mas arrependimento não havia. Mais pensava, mais se convencia: tudo valeria a pena!

 No escuro, Jacinta não podia ver as mãos finas e brancas, mas podia sentir o ardor causado pelo cabo rústico do facão. Nem as luvas grossas de couro tinham impedido que os dedos se ferissem e algumas pequenas bolhas vermelhas se formassem na base dos dedos. Doía! Mas no dia seguinte tinha mais! Precisava estar forte para a empreitada. E pelo que tinha visto, o capataz da turma não deixava por menos. Sempre com aqueles olhos injetados, num vaivém sem fim pelos eitos, gritando que queria pressa, que ali não era lugar de conversa, nem de moleza, que o corte tinha que render, que os caminhões já estavam chegando para recolher as montanhas de cana. Um inferno! Não dava nem pra tomar uma água, respirar, tomar um fôlego... Um inferno, sob o sol de brasa e o suor descendo em bicas debaixo da roupa grossa e quente.

Um galo cantou ao longe. Jacinta se virou para a parede, e de olhos fechados viu o rosto do marido, Tavinho, o bravo sindicalista que tanta admiração lhe despertara. Seria tudo por ele. Não pudera lhe enterrar o corpo perdido ali naquelas terras malditas, mas jurara se vingar. Trazia a morte de Tavinho atravessada na garganta, não iria superá-la até que fizesse o que tinha de fazer. Era por ele que tinha vindo. E tinha encontrado tudo como esperava: a mesma desgraceira humana que já conhecia pelas palavras de Tavinho. Por um momento visualizou o momento em que chegara. Nem como descer de um Pau de Arara ela tinha a manha... Quase se estatelara ao chão, não fosse a gentileza daquele rapaz moreno que tão prontamente a socorrera. Tião... Era o nome dele. No escuro, um sorriso se desenhou no rosto de Jacinta...

João Batista Stabile

Jacinta mal cochilou um pouco, já teve que levantar para o trabalho. Depois de um café, já devidamente trajada para mais uma jornada, se dirigiu ao eito. Ia pensando: tinha já uma ideia sobre onde começar. Sabia que teria que ter muito cuidado, não demonstrar muito interesse no assunto, ganhar a confiança daquela gente primeiro, principalmente, a do Tião, rapaz sério de boa índole e conhecedor de toda a região canavieira e seus problemas. Convivendo pouco tempo em meio aos cortadores de cana, ela percebeu que aquela gente era simples, agradável, mas muito desconfiada, uma palavra ou uma atitude precipitada poderia pôr tudo a perder.

Jacinta estava gostando muito da companhia do Tião. Numa tarde, depois do trabalho estavam sentados no tronco de uma arvore, olhando o sol se pôr. Ela com muito jeito, tocou no nome de Tavinho, perguntou se o tinha conhecido. Tião deu uma resposta vaga e desconversou, mudando de assunto.  Jacinta achou melhor não insistir. 

Passados alguns dias, num domingo à noite eles tinham ido à Vila, estavam numa praça, tomando um sorvete, ela tocou novamente no assunto, Tião, meio encabulado, disse:

— Óia, Jacinta quem é ocê? E o que cê tá fazeno aqui?  Pois, cortadora de cana eu sei que ocê num é. Eu e todo mundo... E o capataz também já tá discunfiado.

Jacinta decidiu contar uma meia-verdade:

— Você tem razão. Na verdade meu nome é Sandra e sou Jornalista em Aracaju, vim para cá pensando em fazer uma matéria denunciando a exploração e as más-condições de trabalho a que vocês estão expostos.

Teve o cuidado de ocultar a segunda parte da história, que era vingar a morte de Tavinho, seu marido.

— Isso é pirigoso, os home do Dr. Afrânio tão por todo lado. Veja o que aconteceu com o Tavinho...

— O que aconteceu com ele?

— Óia, Sandra eu vou te apresentá um cumpanheiro lá do sindicato rural, ele conheceu bem o Tavinho e vai ti contá tudo.

Assim, Sandra conheceu Dirceu, o Presidente do Sindicato Rural, que contou com detalhes da chegada de Tavinho, seu trabalho de conscientização dos trabalhadores, que incomodou o usineiro e, por fim, sobre sua morte num baile na Vila, quando os capangas do Dr. Afrânio simularam uma briga por causa de mulher e um deles o matou. Como sempre, com falso testemunho e provas compradas o assassino ficou livre alegando legítima defesa...

Maria do Rosario Bessas

Sandra não dormiu mais a partir daquele dia da morte de Tavinho. Seu marido era um sonhador incorrigível, com vontade de mudar o mundo. Abriu mão de uma carreira jornalística, quando ao fazer reportagens, começou a conviver com pessoas humildes e exploradas pelos coronéis que tiravam a riqueza do chão, como o garimpo e a agricultura. Tavinho estava sempre visitando fazendas ou plantações onde seres humanos eram explorados e tratados às vezes como escravos. Misturava-se aos trabalhadores e ia fornando grupos, abrindo cabeças, tirando a viseira dos olhos dos coitados e fazendo com que eles lutassem pelos seus direitos. Sua última luta fora ali, na Usina de Açúcar Coimbra, um vasto território colorido pelo verde dos canaviais, com seu cheiro azedo do vinhoto, suas terras recortadas por aceiros onde as águas roubadas dos rios irrigavam o solo pródigo.

O corpo de Tavinho fora encontrado no meio das moitas de cana, retalhado a golpes de facão. Ninguém fora denunciado ou preso, aquela história que inventaram sobre legítima defesa não convenceu Jacinta. Ela sabia o marido que tinha. E com o tempo, ficou conhecendo também a história do Coronel da Usina. Decidiu que já era hora de agir. E como se tivesse pedido a Deus, a oportunidade caiu em suas mãos. Estava sozinha, caminhando pelas ruas da Vila, quando uma figura feminina lhe chamou a atenção. Aproximou-se e ficou surpresa ao ver uma mocinha, quase menina, segurando o rosto com as mãos. Viu que ela chorava baixinho e se aproximou devagar, oferecendo ajuda.

— Obrigada, moca, mas ninguém pode me ajudar. Eu só queria morrer, mas nem para isso tenho coragem.

— Não fica assim, menina, você é tão jovem. Tudo tem jeito nessa vida, me deixa te ajudar. Me conta o que te machucou desse jeito...

E depois de certo tempo, com muito jeito e paciência, Sandra conseguiu arrancar da menina o motivo de suas lágrimas. Nada muito diferente do destino de muitas mocinhas do lugar. Soube que o Coronel Afrânio se julgava dono de tudo que havia em suas terras, inclusive das pessoas, principalmente as mulheres. Quando botava os olhos em alguma do seu agrado, mandava que os seus capangas a buscassem para suas ideias, não importava se pagasse o preço com dinheiro ou com o sangue de vingança.

Sandra soube também que quando as vítimas eram virgens, a cobiça era maior. Encurralada a família, oferecia emprego, moradia, dinheiro e muitas vezes, quando achava que valiam a pena, levava muitas daquelas mocinhas para trabalharem nas suas empresas na Capital. Já era quase uma cultura do lugar, os pais venderem a virgindade das filhas — por medo ou por vontade de melhorar de vida, numa oportunidade de sair daquela miséria infernal. E a escolhida da vez era ela, a pobre Isabel...

Num instante, uma ideia diabólica passou pela cabeça da Jornalista. Era a Sandra de dentro despertando... Descobriu que a menina deveria estar às dez horas da noite na praça da Vila, sozinha, quando um jagunço viria buscá-la para levar até a casa do Coronel. Ninguém deveria ver, ela iria sozinha. Sandra combinou que iria trocar de lugar com ela. Pediu que a encontrasse em seu barraco, onde trocariam de roupas e ela a esperaria ali, até voltar. E que além do dinheiro do Coronel, ela também lhe daria mais, para que ela fosse embora daquele lugar, sem precisar se vender para o maldito velho.

Tudo combinado, Sandra foi para casa e arrumou algumas coisas. Uma última olhada no facão, que achou grande demais para usar sob a roupa. Mas ainda tinha o seu bom canivete, arma pequena, mas cortante como uma navalha. Na hora combinada, Isabel chegou trêmula e assustada, mas se encostou no velho colchão, tremendo como um coelhinho. Sandra vestiu suas roupas, ajeitou o cabelo igual, amarrou um lenço cobrindo boa parte do rosto e se dirigiu para a praça no lugar combinado. Não esperou muito e o velho caminhão logo parou ao seu lado.

— A mocinha aí é a Isabel, fia do Mané Doido?

Sandra apenas concordou com a cabeça, e sem mostrar muito o rosto, fingiu estar com medo e sem saber o que fazer.

— Entra aí. O Coronel tá lhe esperando... Mió fazer as coisa direito sinão seu pai paga o pato. Num vai se arrependê. Muié nova, o patrão paga bem, cê vai vê.

Ela ficou em silêncio até chegar à Casa Grande, onde o dono da Usina morava. Só ouviu latidos fortes de cães, mas percebeu que deviam estar amarrados. Seguiu o jagunço até a porta, quando este deu batidas fortes na madeira. A porta se abriu e ela vislumbrou o vulto masculino do outro lado. Ouviu quando o velho dispensou o jagunço, dando algumas ordens, inclusive a de levar dinheiro para o pai de Isabel. De repente, um frio lhe percorreu a espinha. Enfiou a mão no bolso da saia para ver se tudo estava lá. Então o Coronel voltou...

Sabia, pelas conversas no canavial que ele era chegado em bebidas. Que cada mulher que buscava tinha que servir na cama, com o corpo entre os lençóis e as taças de vinho. Esperou para ver. Quando ele se aproximou e tentou tirar o lenço, ela pediu bem baixinho que diminuísse a luz. Ele pareceu ter gostado. Pegou uma garrafa sobre a mesa e lhe ofereceu a bebida. Ela apenas meneou a cabeça. Sentiu seu corpo gelar e seu estômago virar quando ele a pegou pela mão e lhe mostrou o caminho do quarto. Viu quando ele sentou-se para tirar as botas e deixou a taça de vinho sobre um móvel ao lado da cama.  Nervosa, disse que precisava ir ao banheiro.

— Fique à vontade, menina, não precisa ter medo. Nada do que eu fizer com você vai ser diferente do que algum moleque um dia vai lhe fazer também. A diferença é que se eu gostar, você pode se dar bem.

Sandra não disse nada e foi ao cômodo que ele apontou. Era um banheiro exótico, cheio de espelhos e uma banheira enorme. Tirou seus apetrechos do bolso e escondeu numa gaveta do armário. No bolso deixou apenas um vidro de remédio. Saiu depois de alguns minutos e já o encontrou de roupão, sentado como um rei na poltrona que fazia de trono. Pediu que ela tirasse a roupa. Seu corpo tremeu da cabeça aos pés, mas com voz doce e delicada, disse que talvez bebesse uma taça de vinho, para se acalmar um pouco.

— Mas é claro, coelhinha! Como não pensei nisso antes? Espere só um minutinho que vou buscar a garrafa. E dizendo isso, se dirigiu até a sala, enquanto Sandra apressada, despejou todo o líquido do vidro na taça que ele deixara sobre a escrivaninha. Sentou-se numa cadeira ao lado e de cabeça ainda baixa, viu quando ele se aproximou com uma taça cheia na mão e lhe entregou; na outra mão, a garrafa para completar a própria taça.

— Então, já que você resolveu me acompanhar, vamos fazer um brinde a essa noite — ele disse. Espero que ela seja inesquecível, se não para mim, pelo menos para você.

Dito isso, virou toda a bebida que havia no copo. Sandra, simulando timidez, bebia aos pouquinhos, deixando o tempo passar, enquanto ele a olhava com um jeito estranho, entre intrigado e impaciente... Fez um gesto ordenando que ela tirasse a roupa. Ela se encolheu na cadeira, o que fez com que ele avançasse em sua direção, com as mãos estendidas como se fosse lhe arrancar as vestes. Mas, de repente, ele parou no caminho, com o olhar assustado, quando perdeu o equilíbrio e rolou para o chão.

Sandra ficou uns minutos em silêncio para ver se realmente não havia mais ninguém em casa, pois sabia que era assim que ele gostava, quando tinha suas companhias. Rapidamente pôs seu plano em ação. Foi até o banheiro e pegou o canivete que havia escondido junto com uma pequena tesoura e outros pequenos objetos. Puxou o corpo desfalecido para perto da cama, tirou a blusa e friamente começou a tirar as calças do homem. Intimamente pensava consigo: “Não foram em vão os três anos que eu fiz veterinária, antes de fazer jornalismo.  Castrar animais sempre foi o que mais gostei de fazer nas aulas.  Só que esse animal de hoje não me causa nenhuma compaixão. Nada na vida é em vão. Você não vai acabar com a vida de mais nenhuma mocinha, seu velho imundo. Esse será o preço por ter tirado a vida do homem que eu amava”.

Quando o dia amanheceu, Sandra ainda caminhava entre as fileiras do canavial que parecia não ter fim. Sob as roupas de Isabel vestia uma camiseta nova e uma bela calça jeans, onde guardava dinheiro e seus documentos no bolso. No final das fileiras do canavial, ficou feliz quando viu que Tião a esperava no lugar onde havia pedido a Isabel que lhe desse o recado.

Sandra achou estranho sentir seu coração apertado ao pensar que Tião pudesse não atender ao seu pedido. Mas ali estava ele! Ela sorriu o mesmo sorriso do primeiro dia, só que com um olhar diferente: nele existia paz e uma esperança que antes não havia. Jurou esquecer o passado, principalmente aquela noite. Deixara ao lado da cama do Coronel, uma página onde escrevera: “Lembrança de uma de suas vítimas. Nossas cicatrizes serão iguais”. Era um modo de preservar a vida de Isabel. Sorriu para Tião e estendeu sua mão, oferecendo uma vida nova, em um novo lugar. Ele simplesmente aceitou a sua mão estendida.

Saíram dos caminhos de cana e ganharam a estrada de chão, no sentido oposto ao da Usina. O dia já vinha amanhecendo e os primeiros raios de sol começavam a iluminar o céu. Um carro surgiu de repente, envolto na poeira vermelha e ofereceu-lhes carona. Os dois aceitaram agradecidos e sentaram-se em silêncio no banco de trás.

De repente, o silêncio do dia, foi quebrado pelo ronco inesperado de um pequeno avião.

— Uai, o Coronel hoje está indo embora mais cedo — disse Tião. Deve ter acontecido alguma coisa...

O motorista do carro olhou para o avião que sumia no céu e comentou:

— Já ouvi falar horrores do dono dessa Usina. Dizem que compra tudo com o dinheiro que tem, a honra das famílias, a virgindade das filhas, toma a terra dos coitados e ainda dá fim em quem se nega a vender. Fico pensando se algum dia não aparece um cabra macho e dá jeito nesse demônio.

— Quem sabe — disse Sandra. Um dia talvez apareça. Quem sabe...

Tião e Sandra olhavam o brilho do sol, que há muito não viam, surgindo no meio das árvores. Tião olhou o infinito do azul se encontrando com o asfalto lá na frente e de repente percebeu que havia um outro destino além dos canaviais esperando por eles no final da estrada.


Autores: Marina Alves, João Batista Stabile, Maria do Rosario Bessas e Celêdian Assis de Sousa.


sábado, 21 de novembro de 2020

O MISTÉRIO DA PRAIA

 



MARIA MINEIRA:

 

Júlia morava com os pais em uma pequena vila perto de uma praia. O pai era pescador e a mãe tecia redes para vender. A menina era feliz vivendo naquele belo lugar, mas no entanto  havia algo muito estranho. Sempre  sonhava que estava numa ilha deserta sozinha e não avistava nenhum barco. À noite, tinha frio e, de dia, fome e sede, pois o único alimento que havia na ilha era o coco. Avistava muitos peixes, mas nunca conseguia pescar nenhum. O mais estranho é que a menina acordava todas as manhãs com muita fome e mais sede ainda. 

Os dias passavam devagar naquela vila de pescadores. Após voltar da escola, Júlia procurava tesouros enterrados na areia, catava conchas e corria na praia até cair de cansaço. Sentava-se nas pedras com um livro  e lia. Gostava de ouvir o vento soprar através dos coqueiros, cujas folhas ondulavam no azul do céu. Até que um dia, quando menos esperava...


LARA ALVES


As trevas de repente tomaram posse do lugar. Agora, o céu estava mais escuro, todos os tesouros que ela costumava procurar na areia tinham sumido e ela não conseguiu achar nenhum peixe. O vento que antes se fazia agradável e transmitia  calma, agora era muito desagradável pois fazia o mesmo som de um grito baixinho, trazendo um sentimento de medo.

Júlia queria entender o que se passou por esse lugar antes de sua chegada, então, procurou por toda a vila qualquer outra pessoa. Por sorte, Júlia avistou um garoto que estava sentado debaixo de uma árvore, com a cabeça abaixada e um olhar triste. Ela hesitou em ir falar com o menino, seria ele o responsável por todas aquelas trevas? Mas ela queria respostas, então foi até ele e sentou-se ao seu lado, esperando que ele notasse sua presença, mas não, o garoto nem percebeu que Júlia estava perto, pois ele estava muito nervoso e parecia nunca parar de pensar. No que será que ele pensava? Então ela decide falar com ele.


SOFIA BORGES


 — Ah...oi, quem é você?  — Disse Júlia, suspeitando muito do menino.

O garoto arregalou os olhos e mostrou uma expressão de espanto.

 — Quem é você? Como conseguiu vir aqui?  — Disse o garoto, arregalando os olhos.

Júlia estava com um pé atrás, pois tinha medo de conversar com desconhecidos, mas dessa vez ela se arriscou. 

 — Calma, eu sou a Júlia, você tá bem? Me parece estar triste...  — Disse Júlia, preocupada. 

Ele também estava desconfiado de Júlia, pois não conhecia ela. 

 —Eu sempre tento estar bem, mas eu vim com os meus pais para essa praia e logo depois que chegamos eles desapareceram.  —  Disse o garoto bem triste.

Júlia foi ficando preocupada com o garoto, não sabia o nome dele, se ele estava com fome, sede.

 — É... qual seu nome?  — Disse Júlia muito curiosa.

 — Meu nome é Henrique, sou de São Paulo, como eu disse, meus pais desaparecem, eu não faço ideia de onde eles possam estar...


LARA ARANTES


Por um segundo ela pensou em ajudá-lo a procurar seus pais, mas se conteve, devido ao fato de Henrique ainda ser um estranho.

 — Mas onde vocês se viram pela última vez?  — Perguntou Júlia

Ele apontou para um conjunto de árvores perto de uma casa, cuja ela nunca havia reparado. Era branca com janelas vermelhas e não muito grande.

 — Essa casa...Nunca a vi aqui. Você não morava em São Paulo?  — Curiosa, ela fez mais uma pergunta

 — Sim, mas vim para cá com meus pais para passar as férias, e é nessa casa onde ficamos - Henrique respondeu

Júlia não viu nada de mais naquilo. Então ficou mais confiante em falar com o garoto.

 — Olha, eu nem te conheço direito, mas você precisa de ajuda para encontrar seus pais. Minha casa não é muito longe daqui e então poderíamos falar com minha mãe e meu pai.

Henrique assentiu e se levantou para iniciarem a caminhada à casa de Júlia.

Depois de um tempo em que os dois andaram e conversaram bastante, chegaram em uma casa amarela e janelas azuis.

Júlia abriu a porta e chamou por seus pais; mas ninguém respondeu...


MARIA MINEIRA


Apavorada, a menina caminhava pela residência,  mas não parecia ser a sua tão amada casinha. Só havia teias de aranha espalhadas pelas paredes, como se não fosse habitada há anos. Começou a se desesperar e desta vez foi acalmada por Henrique que disse:

 — Vamos dar uma volta pela vila e perguntar. 

Já era noite e ambos cansados e com fome, andavam  pelas ruas  desertas daquele lugar. Agora não era apenas Henrique que procurava pelos pais. Suas únicas companhias eram a Lua e alguns animais de vida noturna, revirando latas de lixo. 


Caminharam mais  depressa, sem olhar para trás, pois ouviam passos. Começaram a correr e aqueles passos não paravam de persegui-los. Henrique sempre a ajudava ao longo da corrida. Olharam em volta  e não havia nada além de sombras. Depois disso, Júlia se lembrava  vagamente que foram levados por uma mulher de vestes brancas até uma cabana beira da praia. Foram acordados de manhã pela mulher  que lhes trouxe  chá quente e pão fresco com manteiga. 

 — Eu quero meus pais! – disse Júlia chorando!

 — Fique calma, não se preocupe. Ela vai nos ajudar!

Após a procura em vão pelos pais, a noite assustadora que tiveram, aquela estranha mulher da cabana, após alimentá-los, os segurou pelas mãos e os levou a caminhar pela praia desconhecida. Depois de muito tempo, ela apontou algumas pessoas adiante e disse:

 — Sigam em frente, está tudo bem...

Quando as crianças se aproximaram viram seus pais. Sim! Os pais de Henrique, conversavam com um casal de moradores da vila. Estavam preocupados pela demora do menino que havia ido apenas comprar um sorvete. Logo a mulher do pescador disse:

 — Ahh, vejam só! A Júlia já o encontrou. Ela conhece bem esse lugar.

Atordoados ao verem seus pais tão tranquilos, Henrique e Júlia se olharam e não disseram nenhuma palavra. Parecia que não havia passado nem uma hora. Assim, as duas famílias acabaram ficando amigas.

Depois de passar o susto, no outro dia,  os dois combinaram de procurar a mulher do outro lado da praia para agradecer. 

Nada parecia como na noite anterior. Não havia casa nenhuma, apenas o coqueiro que ficava na frente e debaixo dele duas enormes conchas coloridas. Parecia que os acontecimentos da noite anterior  haviam se  desfeito no ar feito cinzas levadas pelo vento. Um arrepio percorreu as duas crianças... Antes de irem embora  Júlia apanhou as conchas e   depositou  uma flor na areia como agradecimento.


Autores: Maria Mineira, Lara Alves, Lara Arantes e Sofia Borges

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

ESCOLA DE MOÇAS

 



Maria Conceição Padilha

Altos muros circundavam os jardins que embelezavam o prédio de aspecto aristocrático onde lia-se na fachada: “Escola de Moças Divina Mãe”. Essa foi a primeira visão que Maria Clara teve ao descer do automóvel em frente ao seu novo endereço.

Sendo ela a terceira filha de uma família abastada, da pequena cidade de Rosa Branca, para satisfazer a vontade dos pais em vê-la habilitada o suficiente, para candidatar-se a um casamento próspero, com algum filho de fazendeiro rico, a jovem é enviada a melhor escola da capital, para prendar-se e assim fazer jus a um belo dote.

Após atravessar o longo corredor, Maria Clara entra em seu novo quarto. Há muito esmero e bom gosto no aposento onde a jovem inicia a desfazer as malas. Lágrimas correm de seus olhos ao lembrar dos pais e das irmãs mais velhas, Maria Lúcia e Maria Izabel, lembra também do casarão onde morava com seus familiares e alguns criados. Tudo tão distante...

A jovem acaricia a última mala, seus pertences íntimos, todos os rascunhos e manuscritos que revelam o seu verdadeiro sonho... escrever.

Socorro Beltrão

Clara abriu a mala cuidadosamente. Com verdadeira adoração, pegou seus manuscritos e os guardou na

primeira gaveta da cômoda, a única com chave, ótimo. Trancou e guardou a chave no bolso da saia. Apanhou a fotografia da família e a colocou bem à vista, em cima do móvel. Não sem antes beijar e acariciar um a um, os rostos sorridentes de seus entes queridos. Antônio, seu pai, Ana sua Mãe, Lu e Bel. Voltou a mala, retirou e arrumou as imagens de Santa Terezinha e da sagrada Família, presente de sua vó Alice. “Você pensa que não vi suas lágrimas? Vi sim vozinha! Mas em breve estarei de volta”.

Assim começa uma nova vida para Clara. Acordar cedo, aula de catecismo, português, literatura, etiqueta, piano, violão, canto, educação para o lar, pintura, bordado, tapeçaria, crochê... Até aula de jardinagem... Mas Clara queria aprender línguas, sonhava em viajar pelo mundo, conhecer novos povos, novas culturas... Sonhava em escrever.

Porém como sempre foi uma filha obediente, seguia as ordens dos pais e gostava de aprender e entender de tudo. Aproveitou bem sua estadia no colégio, como também, a vasta biblioteca. Nas horas vagas ficava à sombra de um lindo flamboyant, caneta e papel na mão, escrevendo um novo conto. O lugar era lindo e lírico, a levava a viajar nas suas histórias.

Cristhian Dias

Quão doce, eram os momentos em que aquela ainda quase menina, sentava-se na grama verde, e sentia o frescor da brisa suave em seu rosto. Aquilo para ela era um agrado que Deus lhe enviava. Benditos, eram os momentos que ela sentada, sobre a árvore, começava a escrever suas histórias.

Clara tivera uma infância e pré-adolescência maravilhosas, desde pequena fora cercada pelos livros, dos mais variados gêneros, tomou gosto pela leitura, quando sua governanta, Serafina, por não saber ler, ficava horas ouvindo-a ler para ela... Depois Serafina foi embora para morar na capital, seguindo seu coração, diziam que ela estava esperando um segundo filho, apesar de Clara não ter conhecido o primeiro que ela deixara com sua mãe ao ir trabalhar com sua família.

Gostava de livros de aventura, sua heroína favorita era a guerreira Joana D’Arc, acreditava, piamente, em todos os relatos de sua famosa história...

Neste dia, Maria Clara escrevia, distraída não percebeu a chegada de alguém, só quando ele tossiu para chamar-lhe a atenção, ela saiu dos seus devaneios, era o Raul, jardineiro da escola, ela lhe sorriu, gostava da companhia do rapaz, começaram a conversar e Clara descobriu, para sua surpresa e alegria que ele era o filho de sua querida Serafina.

Saíram a caminhar, felizes se puseram a correr...

Zélia Borges

Pararam ofegantes, e agora de mãos dadas, o coração de Maria Clara bateu forte, mas a razão falou mais alto. Lembrou-se de seus princípios religiosos e da obediência a seus pais. Saiu correndo e retornou ao casarão. Da janela do seu quarto, viu Raul seguindo seu caminho.

Pássaros vinham do lado oposto.

Abriu a mala e dela retirou um livro de páginas amareladas pelo tempo, presente de sua avó materna, foleou e leu: “As andorinhas viam agora em sentido contrário ou não seriam as mesmas, nós é que éramos os mesmos; ali ficamos somando as nossas ilusões, os nossos temores, começando já a somar as nossas saudades.”

Sua beleza é como uma rosa em botão se abrindo. Sua figura naquela janela é um dos mais belos quadros, que com certeza Van Gogh, Portinari, Da Vince... Gostariam de pintar.

E ali ela chorou.

Maria Conceição Padilha

A vida segue tranquila na grande instituição educacional, onde Maria Clara adentra-se no universo de modos, atividades e posturas que a tornarão a dama esperada pelos seus pais, estando assim a altura de um marido rico ou até um nobre.

O tempo passa, mas não passa em Maria Clara a saudade de um passado não tão longínquo. Vem as lembranças de seus sonhos e desejos distantes, mas não apagados, e junto a eles, ao lado do seu último manuscrito, está o retrato do mulato bonito de olhos verdes, o rapaz pobre que a guerra o chamou. Raul, seu amor secreto. Único homem que roubou seu coração. Chove naquela tarde de outono. O silêncio é grande por todo educandário, até o momento que uma campainha toca e Maria Clara é chamada à sala da direção onde é aguardada pela madre superiora que lhe entrega um telegrama. Ali mesmo em frente a catedrática, a jovem nervosa, trêmula, medrosa, abre a correspondência. As lágrimas que correm pelos seus olhos, não passam despercebidas a religiosa que é obrigada a inquirir: notícias ruins? Ao qual a jovem aos prantos e como se a ler estivesse, responde: “familiar mal, venha depressa.”

Como em um vôo de liberdade a jovem atravessa o longo corredor até seu quarto. Entra e substituindo as lágrimas anteriores, junta-se as lágrimas boas de felicidade quando retornando ao telegrama lê: “Voltei, retorne para mim, Raul”.


AUTORES DA OBRA:

SOCORRO BELTRÃO, CRISTHIAN DIAS, ZÉLIA BORGES E MARIA CONCEIÇÃO PADILHA