terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O dia que não veio

Autora: Denise Coimbra

Rita morava numa fazenda em Unaí, Minas Gerais. Ela tinha seis irmãos. Cinco deles exerciam profissões no Brasil e no exterior: economista, enfermeiro, empresário, médico e professor. Simão, o sexto, desde menino tinha habilidades tão especiais e incomuns que merecera da família, escola e comunidade uma atenção maior. Ele desmontava e montava qualquer tipo de equipamento eletrodoméstico e fazia algumas esquisitices: inventava palavras, escrevia frases esdrúxulas e via o que ninguém via.
Aos sete anos, ele passou a fugir de casa. Por causa disso também, o pai construiu um quartinho para ele no fundo da casa, ao lado da cozinha. Ao invés de porta, o quarto tinha grade. Rita condoia-se da situação do seu irmão, tal e qual um passarinho preso numa gaiola. Bastante evidente, era a ligação entre os dois. Somente ela o compreendia e nunca se zangava com ele, apesar dos hábitos bizarros e gritos aterrorizantes que ele dava quando era contrariado.
As pessoas zombavam dele e o chamavam de doidinho ou zureta. Rita não se conformava com isso e brigava sempre com quem fizesse escárnio dele ou o humilhasse. Em seu coração de menina, sabia que o irmão sofria muito, mesmo que calado. Desde então, tornou-se protetora e parceira dele em algumas excentricidades. E guardavam segredo. 
Assim que o menino aprendera a ler e contar os números ele deixou a escola e passou a colecionar calendários. Ele os guardava embaixo da cama e do travesseiro. Um dia ele ganhou um calendário bem diferente. Os dias eram apresentados, um de cada vez, em pequenas folhas de papel que podiam ser destacadas do conjunto. Simão pregou-o na parede ao lado da porta de saída da casa e toda noite, às 21h15min, ele se dirigia ao calendário, arrancava a folha referente ao dia que estava por terminar e a colava num caderno grande debaixo do travesseiro.
Quando os pais morreram, ele tinha 18 e ela 20. Antes de morrer, a mãe, fizera Rita prometer que jamais abandonaria a fazenda e o irmão. Ela sabia que Simão não conseguiria se adaptar em outros lugares, a outras pessoas e a novos modos de viver. Os outros irmãos, ao ficarem órfãos, mudaram-se um a um e nunca mais voltaram, apesar de telefonarem com certa freqüência e enviarem dinheiro para ajudar nas despesas da casa.
Rita e Simão viviam numa espécie de bolha, quase em completo isolamento do que se passava na cidade, no Brasil e no mundo. Para ele, essa vida parecia bastar, pois quando  fugia, descobriu-se que ia somente até o riacho próximo à fazenda e, nu deitava-se de costas na água e boiava dando risadas estranhas e assustadoras. E, quando o pai gritava-lhe que voltasse para casa, ele o acompanhava sorrindo, como se nada tivesse acontecido.
Para ela, essa vida não parecia suficiente. Uma vez por mês, quando ia à cidade fazer compras, ela entrava na rodoviária e olhava os passageiros embarcarem. Nesse dia descobria-se invejosa e um tanto amarga, mas também extremamente sonhadora.
Um dia depois do seu vigésimo quinto aniversário, ela foi reconhecida por uma colega, quando comprava uma passagem num guichê. Despistou-a logo e voltou correndo para casa.  Sentia-se como uma sonâmbula. Não sabia se por ter sido despertada do estado dormente em que parecia ficar quando chegava à rodoviária ou por não perceber que tinha um motivo para deixar aquela vida.
Para onde eu iria? Porque eu iria? Perguntava-se Rita, muito incomodada, à medida que voltava para casa. Naquela noite, deitada na cama, ao cobrir-se sentiu o peso da promessa feita à mãe e o amor que sentia pelo irmão desabarem em cima dela como um barranco desmoronando após uma tempestade. Ao fechar os olhos para dormir era como se estivesse morta.
Aos 36 anos, Rita conhecera o amor num encontro repentino com um botânico australiano que viera estudar algumas espécies nativas raras, numa fazenda próxima. Ela estranhou o fato de que, ao voltar para casa, um homem caminhava na mesma direção que ela, só que mais rápido. Ao contrário dela, ele parecia ter pressa para chegar ao seu destino.
Impulsivamente, ela apertou o passo tentando alcançar o homem que chamara tanto a sua atenção. Logo, caminhavam lado a lado. Desde então, encontravam-se todas as tardes e, enquanto o homem conhecia melhor as plantas que pesquisava, a mulher conhecia melhor o homem que poderia alterar drasticamente a distância dos passos que ela alcançaria dali por diante.
Subitamente, ela percebera que sua vida virara de ponta a cabeça. Não conseguia fazer suas tarefas regulares sem interrompê-las ou esquecê-las e Simão começara a queixar-se da pouca atenção que a irmã lhe dedicava. Ao conhecer Gregory, Rita sentia-se mais animada. Eles tinham uma compreensão peculiar porque a linguagem do amor é universal e os amantes não poupavam esforços para entenderem-se. A cada encontro, dentro dela, brotava forte e vibrante a vontade de realizar planos. Decidiram que não se separariam mais.  Contudo, ela precisaria deixar Simão e a fazenda e partir para a Austrália.
Angustiada, Rita implorara várias vezes a Gregory que levassem o irmão com eles, mas o botânico fora irredutível. Ele temia que Simão não suportasse a mudança de país e que suas esquisitices não fossem tão bem compreendidas numa cultura diferente. Mas o que Rita não imaginava é que o ciúme de Gregory fosse o motivo principal para afastar o irmão dela.  Transtornada e culpada, finalmente na véspera da partida dele, ela consentiu em viajar sem o irmão.
Sabido que o amor, nos seus primórdios, não espera para consumar-se, combinaram o horário da partida para as 05h50min da manhã do dia 21 de abril. O ônibus passaria as 6 h em frente à porteira da fazenda, onde ele a esperaria. E, mesmo que ela se atrasasse ou não viesse ao seu encontro ele não iria buscá-la. Nisso concordaram e com muito desgosto. No dia seguinte o avião sairia às 9 horas de São Paulo e faria duas escalas antes da aterrissagem em Sidney.
Rita voltara para casa, alucinada. Ela abandonaria o irmão. Meu Deus! Gritou exasperada. A última vez que vira o Simão desesperado foi no dia da morte da mãe.   Ela o acalentou até suas pernas ficarem anestesiadas e o irmão não ter mais lágrimas. Disse a ela que seu coração ficaria para sempre vazio e rachado, como o açude perto da fazenda, que há muitos anos secara.  
Endoidecida, não entendia as imagens de sua vida que passavam em sua cabeça. A lembrança do irmão, recusando-se a ir à escola. Aos berros, ele apontava para o calendário na parede, dizendo que não existia o primeiro dia de fevereiro. Ninguém entendeu e, muito menos deram importância para aquele gesto. A imagem da mãe segurando o seu rosto e lhe exigindo que prometesse nunca abandonar Simão quase a fez desmaiar. Em pânico, Rita pensou em desistir de Gregory e da vida que ela queria construir ao seu lado. Debateu-se contra essa ideia como alguém que luta para respirar ao ser estrangulado.
Lembrou-se da caixa de remédios do irmão e decidiu tomar a metade de um comprimido. Desistiu porque teve medo de não acordar e perder o ônibus que a levaria ao aeroporto. E também porque poderia ao ver os comprimidos tomar muitos deles. Assim não precisaria decidir e muito menos ir embora.  Durante quase toda a noite, sem saber o que fazer, andou de lá para cá. Ao olhar para os riscados no chão, teve a impressão de que eram pinturas rupestres desenhadas pela sola do seu sapato. Dormiu com a impressão de que aquela noite duraria uma eternidade...
Acordou sobressaltada: faltavam 25 minutos para as 6 horas. Já na sala, caminhou silenciosamente para que o irmão não acordasse. Ao abrir a porta da casa, viu o calendário na parede ao lado e tomou um susto.  A folha mostrava 22 de abril. Como assim? Ela havia dormido no dia 20, ansiosa e muito nervosa, mas não tinha dormido tantas horas! Não poderia ser! Será? Ao imaginar Gregory entrando no ônibus, sentiu uma dor no peito tão forte, quanto a que sentiu, quando viu Simão arrancar um dos olhos e jogar-se contra a grade do seu quarto, furioso, logo depois de saber que um dos irmãos havia vendido D. Quixote, seu cavalo alado.
Mesmo atordoada com a violenta lembrança, recordou-se do dia 18 de novembro, o dia da prova do vestibular de jornalismo, profissão que ela escolhera exercer. Nesse dia, ela não acordou. Tal acontecimento embora inesperado nunca fora contestado por ela. Como havia estudado muito e, durante muitos dias, ela acreditara realmente ter dormido e acordado no dia seguinte à data da prova.  
Depois que os pais morreram e os irmãos foram embora, sentia que os acontecimentos marcados pela passagem das horas ou dos dias, deixaram de ter importância para ela, mas não para o irmão. Ele continuava a destacar os dias do calendário e os guardava.
Teve um lampejo e correu para o quarto à procura de outro calendário para certificar-se do que estava acontecendo, mas lembrou-se do fato de que o irmão sempre guardava todos com ele. O calendário da parede era o único que ficava à mostra para que ele, a cada dia, destacasse o dia que viria.  
Desconfiada, Rita abriu a porta do quarto de Simão, mas ao vê-lo dormindo tão sereno não teve coragem de acordá-lo. No dia anterior, logo que se despedira de Gregory, Simão estava muito inquieto e batia as mãos na cabeça repetidamente. Ela tinha certeza de que ele pressentira que ela iria embora, como o dia em que a mãe morrera. Na véspera, Simão passara o dia ao lado dela inventando palavras e frases esdrúxulas. Não comeu,  nem dormiu e saiu correndo, assim que a mãe morreu. Só apareceu dois dias depois do enterro.  
Ao fechar a porta do quarto, Rita reparou no quadro dependurado na parede e viu nos olhos suplicantes da mãe, a mesma expressão quando ela pediu à filha que nunca se  separasse do irmão porque ele não suportaria o mundo sem a sua presença. Perseguida por essa imagem e pelo sono sereno do irmão, Rita voltou para o seu quarto. Resignada, deitou-se na cama e chorou. Chorou tanto que “Seu Raimundo”, um velho conhecido da família, ao saber do ocorrido, arrematou: “chorar faz bem minha fia. É o choro que impede o coração de morrer afogado na tristeza e na aflição.”
No dia seguinte Simão entrou no quarto e pediu-lhe que preparasse o café para ele. Assim ela fez. Em silêncio, alimentaram-se e ele foi dar comida às galinhas.
Rita, como costumeiramente fazia, foi até o quarto do irmão. Ao arrumar a cama, encontrou embaixo do travesseiro, o caderno grande.
Nele, todos os dias destacados do calendário estavam colados seguidamente. Entretanto, o dia 21 de abril, colado em uma página separada, tinha a seu lado, o dia 18 de novembro e o dia 1 de fevereiro.
Abaixo de cada um deles, Rita leu estupefata a seguinte frase: O dia que não veio.

Autora: Denise Coimbra - Bom Despacho/MG

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

O poeta das rosas

Texto de: Samanta Geraldini
Existe, no mundo, milhões de pessoas apaixonadas. Mas são poucos os homens que amam como Jerônimo.
Este poeta de 30 anos conhece as mais belas palavras, os gestos mais cavalheirescos, os galanteios mais românticos. Ele tem, escondido num pedaço pequeno dentro de si, o mais inflamado e vibrante coração.
E por mais que tenha todas essas qualidades raríssimas, a única mulher que seu coração deseja nada quer de sua pobre existência. O coitado escreve poemas, recita canções, entrega presentes e declara seu amor, mas ela o despreza com toda a intensidade de sua beleza. E ela é tão bela e perfeita!
Cansado de ser ignorado por sua musa inspiradora, pela primeira vez em sua vida, Jerônimo cometeu a insânia de beber até não aguentar mais. Bebeu tudo o que o dono do bar lhe oferecia. E sendo o dono do bar um grande amigo do noivo dessa donzela motivadora de tanto amor e desgosto, não foi pouco o que ele ofereceu. Os primeiros goles desciam amargos e queimavam ainda mais o coração pulsante de paixão. Depois da quinta dose, todos os sentidos pareciam adormecidos e o líquido descia com maior leveza, despreocupado com o perigo de combustão.
Horas se passaram e Jerônimo enchia e esvaziava seu copo. Começou a ficar delirante na terceira hora. Na quarta, permanecia sentado, porque já não era mais possível manter-se sobre os pés sem beijar o chão.
Ao anoitecer, não restava-lhe um mero centavo no bolso e expulsaram-no dali. Chorando e lamentando sua falta de sorte em versos febris, Jerônimo caminhou como pôde até chegar numa praça. Sentou no banco de madeira pintada de branco, retirou seu chapéu e o apertou contra o peito. Depois de tudo, a dor não havia acabado!
“As fibras de meu coração pedem para arrebentar. Será que meus versos estão quebrados? Será que minhas rimas não transbordam como deveriam? Por que o amor é tão amargo para mim?”
As palavras escapavam trocadas de sua boca por meio de soluços, engasgadas e suspiros de dor. Balbuciando coisas que nem mesmo ele conseguiria decifrar, o homem retirou de seu bolso da calça um papel amassado, cheio de rabiscos de um último poema que tentou escrever, mas seu sofrimento não permitiu que fosse concluído.
E nessa situação deplorável, bêbado e chorando, Jerônimo começou a conversar com as flores ao seu redor:
“Minha rosa, minha linda rosa branca! Como tu és linda e pura ao redor dessas outras damas de vermelho. Me concede a mão para uma única dança?”
Embrenhando-se no florido jardim, onde uma única rosa branca brilhava entre as híbridas, foi pisoteando a grama em seus passos tortos e sem direção. Chegando mais perto da flor, continuou a dizer, enquanto abaixava e estendia sua mão:
“Se não quiseres dançar comigo, minha linda rosa, eu não me importarei. Mas fale comigo, eu preciso ouvir o som da tua doce voz.”
A rosa, por falta de boca, não o respondeu.
“Rosa, linda rosa, não se acanhe. Eu te amo!” Arrancou a flor do jardim e levantou-se, seus olhos lacrimejando com lágrimas tão amargas quanto sua dor. “Case comigo, não ouça o que lhe dizem. Eu sou o único que te ama, minha rosa. Mais ninguém saberá te fazer feliz. Case comigo, sim?!”
Beijou a rosa com fervor e segurou-a contra o peito. Assim, tornou a andar, naquela passada perigosa sem rumo algum. Dizia “ao ouvido da flor” o quanto a amava, o quanto seriam felizes. E nessa cena trágica, cômica, mas acima de tudo cruel, Jerônimo chegou à igreja. Um casamento estava acontecendo.
Entrou, ignorando os convidados que apreciavam a cerimônia e o ritmo da música tocada no piano. Caminhou com toda a firmeza que suas pernas moles conseguiam manter, tendo a flor ainda segura contra seu peito, e dessa forma ultrapassou a noiva, esbarrou no noivo, chegou ao altar e começou a gritar:
“Padre, me case logo com minha rosa. Ninguém pode nos impedir disso!”
“Senhor, você está bêbado, veja o que está fazendo! Como quer que eu lhe case com uma flor?”
“Ela é a minha rosa. Minha linda flor branca. Mais ninguém pode casar com ela...”
“Jerônimo?!” Gritou a noiva, correndo para mais perto. “O que faz aqui?”
O homem virou-se para ela e imediatamente derrubou a flor ao chão. Por um instante, toda sua embriaguez se dissolveu e o amor profundo que sentia pela Rosa, a verdadeira Rosa, retornou ferozmente dentro de seu coração. Ele caiu de joelhos, chorando, pedindo perdão. Pedindo que a mulher se casasse com ele.
O noivo, enfurecido, avançou com um ponta pé, o derrubando com a cara no chão. Desesperado, o padre segurou o rapaz, enquanto Rosa erguia a face de Jerônimo. Ela também chorava as mesmas lágrimas amargas de um amor sufocado.
“Case comigo minha Rosa. O amor não floresce no peito infértil. Apenas em jardins vastos e acolhedores. E meu amor por ti é mais florido que os Campos Elíseos. É o mais bonito de todos amores.”
E quando Rosa secou as lágrimas de Jerônimo com o sorriso mais lindo que uma mulher pode dar, a alma do homem sorriu também. E quando ela aproximou os lábios dos seus para beijá-los, despreocupada com erros e acertos, a alma tentou escapar pela boca. E quando, por fim, ela disse sim ao pedido matrimonial, a alma amarga e ébria despertou, ao abrir dos olhos de um bêbado apaixonado a chorar e adormecer de amor no banco da praça.

Em parafuso

Texto de: Samanta Geraldini
Lá estava eu a torcer e afrouxar parafusos no setor maquinário mais uma vez. Era um trabalho extremamente monótono, desgastante e humilhante, mas era o melhor que conseguira para sobreviver nesses últimos anos de muito perrengue.
A esteira passava com os objetos de aço e eu, com uma pequena chave, rosqueava o parafuso o mais rápido possível, apertava o botão vermelho à frente e fazia a esteira rolar, até que o próximo objeto chegasse. E isso se repetia durante todo o expediente. Eram oito horas seguidas nesse trabalho que qualquer robô faria mais rápido e melhor que eu.
Não darei muitos detalhes da firma onde trabalhava. Era um lugar pequeno, sujo e malcheiroso, e tenho pouca empolgação para dizer algo mais a respeito.
Os setores eram separados em “maquinário” e “elétrico”. No entanto, apenas poucos passos e uma parede separavam os trabalhadores de cada lado.
Luzia trabalhava na caldeira, no mesmo setor que eu. Ela era tudo pra mim! A mulher que me fazia ter ânimo para continuar trabalhando como apertador de parafusos, que me fazia esquecer o que é “sentido horário” e “sentido anti-horário” e me perder todo na função mais fácil do mundo, que me fazia querer ser alguém na vida e levá-la comigo para viver no meu mundo ideal. Mas Luzia era uma mulher muito independente e mal me notava naquela oficina.
Para fugir do tédio, meus colegas e eu sempre conversávamos. Falávamos de coisas bastante banais, mas que eram um alívio para nossas mentes enferrujadas que iam, cada vez mais, perdendo o senso crítico e a capacidade de pensar. Nesse dia em questão, conversava com meu velho amigo Barret, uma francês-zinho que veio ao Brasil não sei para quê, instalou-se na minha casa e decidiu, como um espelho, fazer tudo o que faço da vida.
- Barret, faz um favor para mim? Larga essa chave suja de óleo e vai na caldeira ver o que a Luzia está fazendo. Eu faço trabalho dobrado enquanto você não chega.
- Por que eu tenho que ir? Vá você! É você que gosta dessa mulher! – retrucou ele, com um ar de revolta raríssimo de sua parte.
- Oras, não é você quem gosta de tudo o que gosto?! – estava revoltado também.
- O quê? Cher ami, preste atenção no que está falando! Tudo bem, eu vou, mas porque sou uma pessoa de bom coração.
Trabalhando, trabalhando e trabalhando, sem nunca me sentir orgulhoso de nada, eu via os minutos passando. Sentia fome e um roncar vergonhoso no estômago que, por vezes, chamava atenção dos meus companheiros de cargo. Sentia sono, porque quando chegava em casa e tentava dormir, eu continuava apertando parafusos mentalmente e não descansava de jeito nenhum. Sentia raiva de Barret que não voltava mais, deixando seu trabalho em minhas mãos. E também sentia uma estranha coragem para falar cara a cara com Luzia, qualquer coisa que fosse, só para poder ouvir sua voz e alegrar meu dia inútil.
E como Barret havia desaparecido, virei-me para o mais novo companheiro de função e lhe disse:
- Muito bem, é hora de ver se você realmente está preparado para isso. Cubra meu serviço por um instante. Ah, e o de meu amigo também, já que eu estava cobrindo-o.
Antes que ele abrisse a boca para resmungar, eu havia virado as costas e seguido em direção à caldeira. Usava uma flanela amarela para retirar o óleo das mãos, no entanto parecia que usá-la para secar o suor que surgia em minha testa seria mais favorável.
Mas quando avistei Barret e Luzia conversando amistosamente em um canto daquele cubículo onde ficava o forno de centenas de graus, meu sangue ferveu e não havia toalha que secasse o suor escaldante em meu rosto. Meus punhos se fecharam enrijecidos e eu parti para cima do francês de sangue quente e cabeça vazia, sem pensar na cena esdrúxula que iniciava.
Contudo, antes que meu soco atingisse a cara barbada daquele baixinho, Luzia se interpôs e me fez parar.
- Não! Porque faz assim com seu amigo, que só quer te ajudar?!
- E me ajuda cortejando a mulher que amo? Ora essa, não é assim que funciona uma amizade...
- Cher ami, eu estava apenas contando a ela o quão talentoso você é. Umas mentirinhas às vezes ajudam, você deveria saber.
Depois desse insulto, não me contive e avancei uma segunda vez, desviando de Luzia e acertando em cheio o estômago de Barret. A mulher, atrás de mim, deu um grito rouco, e eu, pensando que fosse apenas frescura de mulher, ignorei e desferi novo golpe no meu falso amigo.
Luzia, porém, continuava gritando, e era um grito agudo e cheio de medo. Olhei para ela e vi algo estranho surgir atrás de sua silhueta. Uma chama ardente de fogo consumia sua roupa e queimava sua adorável pele. Tentei socorrê-la, mas fui agarrado por Barret e levei um chute atrás do joelho, caindo no chão.
O homem correu e pegou-a no colo, no ato mais estúpido de todos. O fogo, que antes invadia o tecido branco do avental de Luzia, passou a percorrer as malhas da roupa de Barret também. E os dois pulavam e gritavam numa dança bizarra que me fazia rir e enfurecer num só instante.
Por sorte consegui pará-lo. Retirei minha dama das mãos dele e, nesse tempo, alguma pessoa mais pensante que eu e meu amigo já vinha com um balde d’água para apagar o fogo.
Envergonhado, voltei para minha esteira e continuei apertando os parafusos até o horário de ir embora. Pela rua, Barret e suas manchas roxas pela face me seguiam, como sempre fizeram e sempre fariam. E como esperava, Luzia nunca mais olhou para mim, dando um fim a nossa história de amor que ao menos teve um começo.
E sofrendo de amor, com meus parafusos soltos e perdidos em algum lugar dentro de mim, cá estou eu, a torcer e afrouxar parafusos de ferro, pois esta é a única coisa que sei fazer.   

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Sol e chuva

O que direi sobre o dia de hoje? Hoje fez chuva e sol. Hoje eu tenho um pensamento bom. Estou feliz porque o meu amor escreveu para mim. Resolvi cortar os cabelos para que eu não continuasse tão desenfreada assim. O meu pensamento escorre nos fios oleosos, e então, perco-os no percurso do corpo fino e longo como o tempo.
Li uma carta de amor para os meus alunos hoje. Isabel ficou muito interessada em ouvir cada palavra. Os seus olhos brilhavam adolescentes. Lá fora, sua alma percorria corredores infinitos. No corpo, frêmitos de paixão.
Não está mais chovendo agora. Eu quero andar no caminho do sol. Tenho o brilho e a esperança do arco-íris. Meus olhos são verdes como o desejo dos gatos e os pelos são como mechas pretas e brancas, que se opõem aos pulos, ora fogo ora neve. Ora chuva ora sol. Ora paixão ora amor. Ora chuva ora sol. Ora chuva ora sol. Ora longe... ora perto...

Autora: Anajara Lopes - Itapecerica/MG

domingo, 5 de fevereiro de 2017

O anjo

Apenas mais um dia.
Como tantos outros, voltaria para casa, apenas por voltar, sem qualquer motivo. Ou simplesmente para não dormir nas ruas.
Para que voltar? Por quê?
O que poderia ser, para ele, a casa? O lar?
Julio já não podia distinguir. Não sabia a diferença entre a casa, lar ou local de trabalho. Para ele existia a repartição e o seu dormitório, que infelizmente estavam em locais diferentes e distantes. Uma realidade que exigia dele aquela rotina de ir e vir.
Seu cotidiano era o ônibus, sempre cheio e desconfortável. Os motoristas pareciam estar conduzindo carroças. Totalmente despreparados não fazia diferença o que transportavam. Freavam bruscamente, as curvas eram sempre feitas em velocidade incompatível com o conforto do passageiro. Mulheres, crianças e até idosos viajavam em pé e eram jogados de um lado ao outro pela falta de qualificação do condutor.
Como nada havia para pensar, Júlio se concentrava nesses detalhes. Mas sabia ele que se lá houvesse alguém que o esperasse tudo seria diferente. A viagem de ônibus até a casa seria uma prazerosa aventura. A chegada seria compensada com um abraço amoroso de boas vindas.
O que resta para Júlio?
Depois de tudo, nenhuma esperança ou sonho alimenta. Acostumado com aquela rotina já nem sentia saudade. Tornou-se um ser robótico, sem sentimentos.
Mas sua vida já havia sido diferente.
Teve alguém. Um amor, quem sabe? Mas certamente alguém que lhe fazia companhia no café da manhã, sempre preparado com carinho.
Alguém que sempre o aguardava à porta quando do trabalho voltava. Que gozava a preferência da sua companhia em agradáveis passeios pelas montanhas, onde admiravam a natureza e a exaltavam, comparando aquela harmonia ao seu amor.
As caminhadas pela areia da praia, as ondas atingindo seus pés que permaneciam molhados enquanto percorriam a linha da água, sempre de mãos dadas, com comentários agradáveis que os animavam e os conservavam envoltos naquela felicidade que parecia não ter fim.
Vivia Júlio uma felicidade, para ele, infinita.
Pela intensidade do amor que nutria por Danny, jamais poderia imaginar que um dia houvesse um fim.
Danny, também, pensava assim. Um anjo em sua vida, alguém que sarou seu coração e lhe fez ver as flores ao longo de sua estrada. Um anjo que lhe deu a mão e a ajudou nas subidas. Um anjo que removeu as pedras de seu caminho. Aquele que a protegia de tudo e de todos. Tantos eram seus cuidados que chegavam a incomodar.
Danny, às vezes, preferia correr algum risco a ser objeto de tantos cuidados. Com a preocupação de dar a ela a preferência de tudo, Júlio esqueceu de si. Não imaginava que para prosseguir precisava de uma luz que iluminasse seu caminho. Danny cercada de cuidados e carinho, jamais se preocupou com esse detalhe. Imaginou Júlio um ser superior, capaz de tudo providenciar para seu bem estar. Imaginava ela que jamais precisaria de qualquer cuidado, nem mesmo de uma palavra de conforto ou aprovação. Para quê, se ele era tão completo e que havia entrado em sua vida para proporcionar-lhe o que pudesse haver de melhor.
Por isso Júlio sentia-se frustrado, quando esperava algum retorno ou no mínimo, algumas palavras de incentivo. Palavras que jamais vieram.
A sabedoria do tempo foi implacável. Num certo momento, Júlio pretendeu uma contrapartida que não existiu. Pediu, argumentou e esperou, mas Danny, incapaz de compreender, não deu.
Então resolve partir e deixar tudo que lhe parecia tão importante. Inconformado e carente vai em busca de alguma coisa, que nem imaginava o que pudesse ser.
Julio, desde então, procurou substituir sua carência de um amor por dedicação exagerada ao trabalho.
Quando voltava para casa, nada mais pensava ou esperava. Só a cama o consolava.
Mas naquele dia foi diferente.
Júlio descia do ônibus, no ponto costumeiro.
No trajeto até sua casa, passava pela padaria, onde comprava pão fresco para o lanche noturno.
Tudo estava normal, até que atingiu a portaria do seu prédio.
Lá estava Danny.
Ele custou a acreditar. Uma confusão mental e nada fez com que se lembrasse o que havia acontecido.  Danny, abriu os braços, aguardando sua aproximação. Assim seus corpos se encontraram. Tudo parecia estranho. Por que não tinha acontecido antes?
Promessas e incontroladas juras de amor foram gritadas, naquele momento, Júlio perdido e Danny apaixonada se abraçavam e beijavam jurando amor eterno.
—Um anjo, repetia Danny. Meu anjo.
—Descobri que você é o anjo que me foi enviado. Não para me proteger, mas para me ensinar a amar. Um anjo para me ensinar o significado do amor.
—Você é o meu anjo, o meu amor.
—Jamais se afaste de mim outra vez.

Autor: Nêodo Ambrósio de Castro - Eugenópolis/MG