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quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Aos olhos do observador - Autora: Ana Bailune

Dois amigos passeavam pelo jardim da casa de um deles - mais favorecido pelas posses. Este último tinha convidado o primeiro para visitá-lo, pois sentia-se vazio e infeliz, e necessitava de alguém com quem conversar. Vamos chamá-los de Zé (o mais feliz) e Chico (o infeliz).

Enquanto Zé caminhava pelo jardim, reparava na beleza das árvores: seu amigo tinha plantadas várias fruteiras: goiabeiras, pitangueiras, limoeiros, laranjeiras, jabuticabeiras, pessegueiros e ameixeiras, onde pousavam passarinhos de todas as cores, cantando felizes. Algumas frutas maduras tinham caído no chão e permaneciam sob as copas das árvores, e alguns esquilos alimentavam-se delas. Logo, Chico reclamou:

"Não sei mais o que faço para acabar com esses pássaros malditos! Comem todas as frutas!"

O amigo Zé percebeu, mas ficou calado, que se não fossem pelos pássaros, as frutas apenas apodreceriam nas fruteiras, pois o amigo não as colheria jamais.

Passaram por um lindo córrego, pequeno, mas que dava ao jardim um ar de beleza e frescor, além de emitir um ruído reconfortante. Zé achou aquilo maravilhoso, mas Chico observou com amargura:

"Estou pensando em mandar aterrar este riacho. O barulho me incomoda durante a noite."

Enquanto caminhavam, eram seguidos de perto por Bibo, o cão vira-latas de Chico. O animalzinho cheirava as moitas, corria, brincava e pulava; de vez em quando, trazia um galho seco, que Chico jogava para ele, que saía correndo e latindo atrás do galho, trazendo-no de volta para que Chico o jogasse novamente. De repente, Chico bradou com impaciência:

"Sai daqui, animal estúpido! Deixe-me em paz!"

O animalzinho assustou-se, e saiu correndo com a cauda entre as pernas, indo esconder-se sob uma moita. Penalizado, Zé entendeu que provávelmente, Bibo estava acostumado àquele tipo de tratamento, pois parou de seguí-los.

Finalmente, o passeio terminou na varanda, onde havia uma rede, duas cadeiras confortáveis e uma jarra de refresco de frutas esperando por eles em uma mesinha. Após servir-se de um copo, Zé falou:

"Você tem um belo espaço aqui, Chico! Uma beleza só... árvores de frutas, flores, passarinhos, um cão... e até um riacho! Luxo só!...

Suspirando fundo, Chico respondeu:

"Quer saber? Comprei este espaço para fugir da vida agitada da cidade grande, onde não aguentava mais viver. Tanta poluição e barulho, competição... mas acho que me decepcionei, não consigo ser feliz aqui, assim como não era feliz por lá. Minha mulher finalmente me deixou, levando os meninos, e fico aqui sozinho o tempo todo."

Desejando animar o amigo, mas sabendo que qualquer coisa que dissesse poderia ser inútil, Zé pensou bem antes de falar. Depois, tomando um gole de suco e olhando em volta, para a beleza do lugar, ele disse:

"Amigo, me desculpe, mas se você não é feliz aqui, não será em lugar nenhum! Olhe só em volta, tanta beleza e riqueza... sabe, eu acho que o que lhe falta, é deitar naquela rede ali, que está balançando sozinha pelo vento desde que cheguei... e de lá, observar o que você tem, e dar mais valor, ser mais grato por tudo. E ter paciência com as pessoas, pois você sempre foi tão 'estourado,' que acabou afastando todo mundo."

Chico olhou para o amigo, pensando no quanto aquelas palavras eram simplórias... só mesmo o Zé para ter um pensamento tão bobo! Mesmo assim, sabia que ele estava tentando ajudar. Para agradá-lo, foi até a rede e deitou-se - algo que nunca tinha feito antes. E não é que a paisagem de lá era mesmo bonita?

De mansinho, Bibo foi se aproximando, e deitou sob a rede. O dono começou a acariciá-lo. O 'barulho' do rio tornou-se bem mais agradável, até que virou um ruído relaxante e delicioso. Dali ele podia enxergar os passarinhos, e começou uma conversa com o amigo, na qual ambos, lembrando os tempos de infância em que brincavam perto de uma mata, começaram a identificar algumas espécies.

No final da tarde, Chico estava com as mãos sujas de terra - passaram algumas horas capinando canteiros e replantando mudas de flores - suado, e sentindo-se revigorado pelo trabalho. Além de tudo, sentia por dentro uma sensação que nunca tivera: a felicidade.


Descobriu-a dentro dele, ao deitar-se naquela rede.

Autora: Anabailune - Petrópolis/RJ


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Publicação aurorizada pela autora em 29/07/2012

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Califórnia

Escritora:Ana Bailune

Pisava no chão seco e farinhento da vila de Córrego Seco desde que nascera. Nome mais apropriado para um lugar, não existia. Tudo era tão seco, que até mesmo o carcará tornara-se pássaro raro. Somente os que, como Joana, não tinham outra alternativa, continuavam vivendo ali. Ela não conhecia outra vida, tendo gasto em seu caminhar, muitas solas de chinelo. De sol a sol, de solo a solo, de cacto a cacto. Sua magreza alongava-se ainda mais na sombra projetada no chão pelo sol escaldante. No alto da cabeça, carregava uma lata d’água barrenta que tinha ido buscar a dois quilômetros da sua casa. Passava pelas ruínas da velha igreja sem notar, como quem passa por uma fé que deixara de existir.
Tinha apenas vinte anos de idade, mas aparentava quarenta. Em fila, seguiam-lhe seus três meninos, aonde quer que ela fosse. O pai? Partira para a cidade grande em busca de uma vida melhor, deixando apenas uma promessa: “Um dia, eu mando buscar ocês.” Nunca mais voltou. Nunca mais deu notícias. Também, que notícia poderia chegar àquela lugar esquecido por Deus?
Joana nem sentia saudades do marido. Tinha antes muitas outras coisas a sentir: fome, sede, cansaço, desesperança, e um medo que crispava-lhe o estômago: o de ver morrerem seus filhos. Todos os dias, chegavam-lhe histórias de crianças que morriam. Às vezes, passava um cortejo na porta de casa, um pequeno bando de gente maltrapilha carregando um pequeno caixão.
Certa manhã, antes mesmo de clarear, Joana acordou com um sobressalto: tivera um sonho ruim. Vira um de seus meninos dentro de um caixão. No sonho, estava em uma sala vazia e escura, onde, bem no meio, havia um caixão cercado de velas. Ela foi se aproximando devagar, com medo do que fosse ver, enquanto ouvia uma risada sardônica atrás de si. Sentiu um arrepio na nuca, e quando chegou bem perto, levou à mão ao peito e olhou: lá estava seu mais velho!
Joana levantou-se correndo, e foi olhar seus meninos, e ao ver que dormiam pesadamente na esteira de palha, deu um suspiro de alívio; ainda não era naquele dia!
 Na noite seguinte, teve o mesmo sonho. A única diferença, é que o menino no caixão era o seu do meio. E na terceira noite, o sonho repetiu-se, mas era o seu mais novinho que estava morto. Joana achou que aquilo era um sinal; tinha que sair dali! Precisava ir embora, pois beber água barrenta e comer farinha com lagarto cozido não era vida para menino. Mas ir embora para onde, meu Deus? Não tinha nada, não sabia ler, mal sabia falar direito... e enquanto cismava, andando de um lado para o outro debaixo do sol, à porta de seu casebre, enquanto os meninos comiam feijão com farinha, veio de repente uma ventania; e com a ventania, uma folha de papel, uma página de revista que grudou no seu rosto.
Surpresa, Joana pegou o pedaço de papel e olhou: era uma fotografia, uma imagem de um lugar onde havia um jardim verde e exuberante, cheio de flores coloridas, junto a um rio azul enorme de lindo. Havia também muitas pessoas felizes, e em uma fotografia menor, mesas com toalhas brancas cheias de pratos de comidas que ela nunca tinha provado, e um sorridente homem de branco que era tão bonito, que só podia ser um anjo de Deus!  Ela nunca tinha visto tanto verde na vida, nem mesmo na época da chuva! Notou as letras sob a foto, e achou que elas deveriam dizer o nome do lugar na fotografia; decidiu que fosse aonde fosse, era para lá que ela iria! Como? Isto não importava; sentiu sua fé renascer, e da mesma forma que Deus lhe mandara a resposta, também havia de levá-la até o lugar.
Foi até a casa do ‘seu Tinoco’, o único por ali que sabia ler, e entregou-lhe a fotografia. O velho olhou-a, e após seguir as letras com o dedo, devolveu-lhe o papel, dizendo: “Esquece, filha. É longe. Ocês nunca vão chegar lá!” Mas Joana insistiu: “Me diz o nome do lugar, me diz onde é, ‘seu’ Tinoco. O resto, é com nós!” O velho balançou a cabeça, e disse com enfado: “Califórnia. É esse o nome.” Joana nem perguntou mais nada: voltou para casa, e juntando as poucas coisas que tinham, mostrou a fotografia e anunciou aos meninos, que se entreolharam, animados com a sua primeira aventura: “Se apronta, porque nós vai pra Califórnia.” E partiram naquela mesma manhã. Joana nem se deu ao trabalho de fechar a casa. No chão, o vento derrubou a única fotografia amarelada que o marido lhe deixara. ‘Seu’ Tinoco, da porta de seu casebre, viu-a partir em direção ao deserto, seguida pelas três crianças, carregando uma grande trouxa de roupa na cabeça. Ele apertou os olhos, enquanto a imagem dos quatro desaparecia, serpenteando com o calor que brotava do solo.
Meses depois, um homem caminha pelo chão árido de Córrego Seco, dirigindo-se à casa. Traz uma pequena mala de viagem, e muitas saudades e lembranças. Está feliz, pois conseguira arranjar trabalho de jardineiro na casa de um senhor muito poderoso e tão bondoso quanto rico, lá na cidade, no sul do país. Logo que conseguiu o emprego – depois de morar nas ruas,  trabalhar em muitos canteiros de obra, sem carteira assinada e receber um salário abaixo do mínimo, passar muita necessidade e até mesmo fome, João - o marido de Joana- finalmente conseguira fugir do lugar onde era mantido como trabalhador escravo. Em sua fuga, acabou indo bater à porta de seu benfeitor, que vendo seu estado emocional lastimável e seu perigoso nível de desnutrição, decidiu acolhê-lo, cuidar de sua saúde e oferecer-lhe trabalho em sua casa.
Assim que ficou sabendo de sua história, deu-lhe dinheiro e mandou que fosse buscar sua família, em Córrego Seco. As crianças iriam frequentar uma escola, e sua Joana poderia ajudar nos serviços de casa.
Mas quando João chegou, não viu sinal de seus filhos e de sua Joana. ‘Seu’ Tinoco deu-lhe as notícias: “Eles foram embora. Pra Califórnia.” Agoniado, João indagou: “Mas... quando?” Seu Tinoco, montando um cigarro de palha, respondeu: “Faz uns mês... foram naquela direção!” 
Ao ver que ‘seu’ Tinoco apontava a direção do deserto, João sentiu seu coração encher-se de agonia.
Voltou para o casebre. Deitou-se na esteira de palha semicoberta pela areia, e chorou, desejando do fundo de seu coração, que sua mulher e seus filhos tivessem conseguido alcançar a Califórnia.

Autora: Ana Bailune - Petrópolis/RJ
Texto vencedor do Primeiro Concurso do Blog Gandavos

domingo, 23 de abril de 2017

As aventuras de ¨A Fábrica¨

Autora: Ana Bailune

Quando eu era pequena, tínhamos muitos cães em casa, e não consigo lembrar-me de alguma fase de minha vida em que eles não estivessem presentes - a não ser, assim que eu me casei, pois moramos em apartamento por sete anos. Mesmo assim, tinham os cães de minha irmã, com quem eu brincava quando a visitava.
Houve um tempo em que uma das cadelas era apelidada de "A Fábrica", que era o título de uma novela que passava na falecida Rede Tupi (pronto! acabo de revelar a minha idade!). Bem, demos este nome a ela porque A Fábrica sempre tinha muitos filhotes de uma só vez, que nós doávamos para os vizinhos.
Ela era uma enome vira-latas preta, e tinha uma peculiaridade, ou seja, duas: a primeira, é que ela sabia sorrir. Logo que nos via, arreganhava os dentes, abanando a cauda. Era só a gente pedir: "Fábrica! Ri!" E lá vinha ela, dentes de fora, toda faceira.
A segunda peculiaridade (acreditem ou não) é que ela... voava! Não, não é lorota, não! Ela voava mesmo, por cima da plantação de bananeiras e depois, ainda passava pelos galhos mais altos de um bambuzal, que lhe amparavam a queda. Bastava que ela visse uma galinha. Era campeã de Caça às Galinhas da Dona Teresa!
Também... a Dona Teresa era uma folgada, que mesmo sabendo que todos os vizinhos tinham cachorros em casa, deixava suas galinhas soltas pelo terreiro, e elas sempre acabavam indo parar no meio da rua ou no terreno de outros vizinhos. Era sempre a mesma história: a Fábrica escutava um cacarejar no morrinho (lugar onde brincávamos quando crianças, logo acima de nossa casa e da plantação de bananeiras e bambus de meu pai) e corria atrás. Não tínhamos como segurá-la, pois ela parecia totalmente possuída por alguma força atávica incontrolável.
A galinha, na tentativa de salvar-se, voava desajeitadamente por sobre as bananeiras, e A Fábrica, que jamais desistia, voava atrás dela, lá de cima do morrinho.
Daí, escutávamos um agoniado "Cóóóó..." e lá vinha A Fábrica, com a pobre coitada na boca.
Na manhã seguinte, lá vinha a Dona Teresa perguntar: "Ruth (minha mãe), não viu uma galinha carijó por aí não?" E minha mãe, com ar distraído: "Não... por que, sumiu?"
Mas acho que a Dona Teresa acabou descobrindo sobre o paradeiro de suas galinhas, pois um dia, A Fábrica amanheceu morta: envenenada...


Autora: Anabailune - Petrópolis/RJ



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segunda-feira, 13 de junho de 2016

Entrevista: Ana Bailune

        

A literatura é a possibilidade de expandir através das letras, seja em verso ou prosa, emoções, pensamentos e sensações.
        O bom escritor tem domínio sobre a linguagem escrita e detém o dom de manter as sutilezas da percepção original acerca de fatos ou pensamentos.
        O que admiro em Ana Bailune é justamente essa qualidade fundamental.

Nasci em setembro de 1965, em Petrópolis. Tenho três irmãs e um irmão. Meus pais são falecidos. Sou casada há 25 anos, e não tenho filhos. Adoro minha casa, o lugar onde eu moro e minha cidade. Amo escrever e ler. Amo cachorros (tenho dois) e todo tipo de animais (exceto aranhas), e adoro ficar perto da natureza, especialmente de árvores e montanhas, riachos entre pedras e lugares frios. Adoro borboletas, pássaros e joaninhas. Adoro fotografar. Amo a solidão, o silêncio e a paz de espírito. Não acredito em muitas amizades. Relaciono-me com poucas e selecionadas pessoas. Sou de libra, meu elemento é o ar, e não poderia ser diferente: amo voar, amo aviões. Sou crítica, e às vezes, um pouco ácida. Odeio mentiras.

Blog Gandavos: 1- Quando e como surgiu seu interesse pela leitura e escrita?
Ana Bailune - Desde muito cedo. Minha mãe costumava ler histórias para mim na hora do almoço (ou eu não comia). Depois, ela comprou-me cartilhas de alfabetização, e com sua ajuda, aos cinco anos de idade eu já sabia ler e escrever. Desde então leio tudo o que passa na minha frente, desde bulas de remédio, manuais de instrução, livros de vários estilos, reportagens, etc...

Blog Gandavos: 2 - Quais foram seus livros preferidos quando era criança e os livros favoritos atualmente?
Ana Bailune - Bem, quando eu era criança, após terminar a primeira série primária, em 1971, ganhei de presente da “Tia Tânia” um livro chamado “As Aventuras da fada Cacetinha”, de Virgínia Lefévre. Este tornou-se meu livro favorito, e em seguida, “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carrol. Já adolescente, li e fiquei muito impressionada com “Uma Arma Para Johnny”, de Dalton Trumbo. É um terrível relato sobre um soldado ferido de guerra. Também adorei “Floradas na Serra”, de Dinah Silveira de Queiroz e “O Sol é Para Todos”, de Harper Lee. Já adulta, vários livros me marcaram, como por exemplo, “O Convite”, de Oriah Mountain Dreamer, “Memórias, Sonhos e Reflexões”, de Jung,“ A Criança Roubada”, de Keith Donohue (amo), e todos de Cecília Meirelles e Fernando Pessoa. Há muitos, muitos mais, mas eu passaria horas citando-os... porém, não posso esquecer-me de “Cidadela” e “O Pequeno Príncipe”, de Saint-Exupéry, e “Ilusões”, de Richard Bach.

Blog Gandavos: 3 - Quais escritores são suas fontes de inspiração?
Ana Bailune - Desde muito cedo, ler Cecília Meirelles me inspira muito. Sinto uma empatia muito grande com os pensamentos dela. É como se ela fosse uma fonte de água fresca para mim.

Blog Gandavos: 4 - De que forma o conhecimento adquirido, seja pelo senso comum, ou pelo meio acadêmico, ajuda na hora de escrever?
Ana Bailune - Acho que, para escrever sobre determinados assuntos, é essencial conhece-los bem, o que demanda estudo e muita dedicação e pesquisa. Porém, quando se trata de poesia, o conteúdo não vem de conhecimento adquirido, mas de nossas experiências de vida – coisas bem pessoais mesmo -, pensamentos e principalmente, sentimentos. Não me prendo em rimas, métricas e estilos, deixo correr solto da veia para o papel, pois acho que poesia não é fórmula. Também não ligo muito para erros de gramática, e desdenho completamente a reforma ortográfica. Concordo com Patativa do Assaré, que disse: “Melhor escrever a coisa certa da maneira errada do que a coisa errada da maneira certa.” Meus poemas são inspirados em fatos reais da minha vida, coisas que vejo, perdas, tristezas e alegrias também. Mas é claro que às vezes são pura fantasia. Já quando escrevo contos, eu não me perco em detalhes que acho chatos e desnecessários e que encompridam a história, como descrições detalhadas de cidades, casas e roupas. Gosto de ir direto ao assunto, e 99% do tempo, as cidades nas quais meus personagens vivem são fictícias. Confesso que tenho muita preguiça de pesquisar.

Blog Gandavos: 5 - Segundo o escritor Rubem Fonseca, “a leitura, a palavra oral é extremamente polissêmica. Cada leitor lê de uma maneira diferente. Então cada um de nós recria o que está lendo, esta é a vantagem da leitura". É isso mesmo? Concorda com essa proposição?
Ana Bailune - Concordo total e plenamente! Um exemplo: certa vez, escrevi um poema chamado “Somos Irmãos”, que falava justamente de meu relacionamento com meus irmãos. Uma pessoa, ao lê-lo, declarou: “Adorei! Ele fala exatamente de tudo o que está acontecendo no mundo neste momento!” (Era a época do 11 de Setembro). Já tive muitos problemas na internet devido a poemas que publiquei e pessoas me atacaram achando que eu os compus para elas. Na verdade, quando isso acontece – escrever um poema pensando em alguém – eu normalmente ponho o nome da pessoa em questão, ou então deixo bem claro sobre quem estou falando.

Blog Gandavos: 6 - Ainda segundo o Escritor Rubem Fonseca: “um escritor tem de ser louco, alfabetizado, imaginativo, motivado e paciente.” É o suficiente para ser um bom escritor?
Ana Bailune - Acho que principalmente “louco.” A imaginação não funciona muito bem nas pessoas ditas ‘normais.’

Blog Gandavos: 7 - Para qual público se destina sua criação?
Ana Bailune - Nunca pensei nisso... acho que para quem gostar e quiser ler.

Blog Gandavos: 8 - Como funciona o seu processo de criação? Quais sãos suas manias (ritual da escrita)?
Ana Bailune - Não sigo nenhum. As coisas vêm à minha cabeça, sento-me e escrevo-as da maneira como aparecem. Quando uma história me aparece com princípio, meio e fim, eu me sento para escrever e, em determinado ponto, ela muda totalmente de direção, como se os personagens me dissessem: “Hey! Deixa a gente contar!” E quando isso acontece, eu não interfiro. Escrever para mim é diversão, e portanto, a parte chata (corrigir erros, revisar, etc...) eu deixo para lá. Se eu fosse uma profissional das letras, certamente teria alguém que cuidasse desta parte para mim.

Blog Gandavos: 9 - Em geral, os seus personagens são baseados em pessoas que você conhece, ou são ficcionais?
Ana Bailune - Pergunta perigosa, mas vou tentar explicar: Às vezes, um personagem meu pode ter características de várias pessoas que conheço, ele é uma colcha de retalhos. Porém, outras vezes ele é apenas ficção, alguém que se autocria, cuja personalidade vai surgindo ao longo do texto. Em meu último conto, “O Anjo no Porão” (publicado em meu blog Histórias de Ana Bailune), eu me baseei nas histórias que minha mãe me contava sobre seu passado, sua infância, sua família. Mas nem todos os personagens foram baseados em fatos reais, e há muita ficção também no enredo. Minha mãe realmente foi criada em colégio interno, ela realmente perdeu a mãe muito cedo, meu avô era mesmo muito mulherengo, as irmãs de meu avô foram baseadas nas irmãs reais, embora suas histórias de vida sejam apenas ficção.

Blog Gandavos: 10 - Você tem outra atividade, além de escrever?
Ana Bailune - Sou professora de inglês, e dou aulas em casa, isto há mais de onze anos. Além disso, cuido eu mesma da minha própria casa (não tenho empregadas), o que me ocupa grande parte do tempo, e escrevo em vários blogs e sites na internet. Meu dia é cheio de atividades, e ainda caminho uma hora por dia pelo menos quatro vezes por semana. Nas horas vagas, brinco com meus cachorros, leio muito, escuto muita música e fico lá fora, no jardim.

Blog Gandavos: 11 - Você faz parte das Coletâneas Gandavos. Qual a sensação de participar ao lado de escritores de várias regiões do país?
Ana Bailune - Acho muito emocionante, bacana mesmo, foi algo que a internet nos proporcionou e eu recebi com todo carinho. Acho que você, Carlos Lopes, é corajoso, arrojado e muito empreendedor.

Blog Gandavos: 12 - O financiamento coletivo e a publicação independente têm se mostrado a opção das publicações Gandavos. Quais são os pontos positivos e negativos desse tipo de publicação?
Ana Bailune - Bem, quando publicamos coletivamente, nem sempre o trabalho individual se destaca. Mas se pensarmos bem, da mesma forma acontece quando investimos para publicar individualmente, pois nos dias de hoje, são muitos autores, e a publicação virtual, seja em blogs, sites ou e-books, por exemplo, abriu as portas para todos os anônimos, fazendo com que nos percamos neste mar imenso de autores, bons e ruins, que surgem a cada segundo. Antigamente, ser publicado significava ser necessariamente muito bom. Hoje, nem tanto. Vemos totais absurdos aparecendo a todos os instantes, e muitas vezes eu penso que no futuro, ninguém será lembrado.

Blog Gandavos: 13 – Você já fez publicação de livros sozinha, seja impresso ou virtual? Quais e como o leitor pode adquiri-los?
Ana Bailune - Publiquei um livro impresso de poemas, “Vai Ficar Tudo Bem”, esgotado. Virtualmente, todos os livros que publiquei, inclusive o primeiro, em edição revista e ampliada – contos, crônicas e poemas – estão disponíveis gratuitamente aos leitores da amazon.com.br. Basta digitar Ana Bailune na busca do site, e todos eles aparecerão listados. Podem ser lidos em computadores, smartphones, tablets ou nos leitores de livros virtuais, principalmente, o Kindle.

Blog Gandavos: 14 - Qual mensagem você deixaria para autores iniciantes, com base em suas próprias experiências.
Ana Bailune - Escreva. Nem sempre você se tornará famoso, e provavelmente, não se tornará; pode ser que você seja criticado, que receba e-mails anônimos falando da sua falta de talento, ou então você poderá ser atacado e ridicularizado por anônimos ou não-anônimos; mesmo assim, escreva. Pode ser que você passe horas caprichando em um texto para que alguém vá até o seu blog, e publique o seguinte comentário: “Lindo e reflexivo! Visite-me em meu site/escrivaninha/blog.” Mas um dia, alguém vai realmente ler alguma coisa que você escreveu, e você saberá que aquela pessoa valorizou o seu trabalho. Um exemplo: aqui na minha cidade, já me reconheceram na rua duas vezes; a primeira, na loja da operadora Claro: o atendente pediu meu nome para executar o serviço, e quando eu disse, ele sorriu: “Ah, então você é a Ana Bailune? E há apenas alguns dias, eu caminhava na rua quando fui parada por uma mulher que disse acompanhar-me na internet e adorar as coisas que eu escrevo. Apesar de não ganhar nada, financeiramente, com as coisas que eu escrevo, estes momentos são gloriosos. É durante eles que eu compreendo porque eu escrevo.


terça-feira, 29 de dezembro de 2015

A Quinzena do Autor: Ana Bailune

Autora:  Ana Bailune

Comecei a escrever muito cedo, ainda criança. Participei de alguns concursos literários em minha cidade natal, dos quais venci um, realizado pelo Silogeu Petropolitano em 1986, com o poema "Somos Irmãos", e nos demais,  fiquei sempre entre os quatro primeiros colocados. Tenho um livro publicado pela editora Pimenta Malagueta, "Vai Ficar Tudo Bem." Ele foi reeditado e relançado em agôsto de 2013 pela amazon.com.br, juntamente com um livro de contos - A Ilha dos Dragões -  uma coletânea de meus melhores poemas - Sempre Cada Vez Mais Longe e recentemente, um livro de poemas - Lixo Existencial. Todos disponícveis na amazon.com.br. Participei de várias antologias, entre elas: do blog Gândavos, de Carlos Lopes, os livros Gândavos - Contadores de Histórias I, II e II, tendo vencido recentemente o concurso de contos promovido por este blog, com o conto Califórnia. Participei também da antologia de Miriam Salles, Passos & Compassos. Abri a série da coletânea Quinze Poemas + , convidada por Helena Frenzel, e  participei dos Quinze Contos +, também de Helena Frenzel. Ainda publicarei, enquanto eu estiver viva, muitos outros livros, impressos ou virtuais, pois este é meu objetivo: escrever.

Tenho cinco blogs; basta digitar no Google, e você os encontrará facilmente:

Liberdade de Expressão
A Casa & a Alma
Passagem
Histórias- Por Ana bailune
Nada a Dizer - apenas fotografias

Também participo, à convite, dos blogs
Gândavos, de Carlos Lopes
e
Quiosque do Pastel, de Lu Cavichioli.


1-Dedico este conto a Carlos Lopes, do blog Gândavos


NEVE NO SERTÃO

Toquinho era o apelido de José Jorge da Silva, um menininho de oito
anos, mais novo entre cinco irmãos dos doze que Mariazinha, sua mãe,
tivera e que sobreviveram. Ele morava com a família em alguma
cidadezinha lá no sertão baiano, cidadezinha que nem está no mapa, no
meio do nada, cercada de cactos e com paisagem desoladora. O apelido
de José Jorge vinha de sua aparência física: pequeno, franzino, desses
que dá a impressão que um vento mais forte conseguiria levar embora. E
todo mundo comentava, quando havia alguma morte de criança (coisa que
naquela época não era nada raro de acontecer) que Toquinho seria o
próximo. Ninguém acreditava que o menino vingaria... o pai, ‘seu’
Juvêncio, tinha uma hortinha que mal garantia o sustento da família,
onde plantava mandioca, batata e feijão. O resto vinha do governo, de
vez em quando. Trabalhava quando dava. Quando tinha caixa para
carregar na venda do ‘seu’ Manoel, capim para cortar ou laranjas para
colher nas plantações dos mais abastados. Iam levando. Ou sendo
levados.
‘seu’ Juvêncio e Mariazinha já tinham perdido sete crianças, e lá pela
quarta, já nem choravam tanto assim. A gente se acostuma a tudo nessa
vida. Tudo que Deus manda, é bem-vindo e sábio. Assim, continuavam a
colaborar com a fábrica de anjinhos do Divino.

Toquinho, de tanto escutar por trás das portas, acabou descobrindo que
seu destino era ser levado dentro de uma daquelas caixas que ‘seu’
Manoel da venda fabricava às pressas com sobras de caixote, e nem
cobrava das famílias. Desde então, ele achou que se todo mundo falava,
deveria ser verdade. Passou a não brincar mais, e a comer menos ainda
– para preocupação dos pais e alegria dos irmãos, que dividiam a
comida de Toquinho entre eles sem culpas, já que ele também sabiam que
a morte do menino era apenas uma questão de tempo. Mariazinha fazia de
um tudo para que o menino comesse; preparava mingau de fubá com leite,
mandioca cozida passada na margarina (quando tinha), feijão com
charque (sempre ganhava um pedacinho quando alguém matava um porco).

Ele às vezes comia, só para ver a mãe dar um sorriso. Mas um dia, ele
finalmente caiu doente. Ficava o dia todo na esteira sem levantar
muito e sem ir à escola. A professorinha foi visitar, e ficou doída de
ver o seu aluno mais novinho naquele estado. Deu à família um cartão
de Natal que recebera da família que morava na cidade grande, onde
tinha o desenho de uma casinha iluminada no meio da neve, que era
coberta de brilhinhos de purpurina. Quando alguém abria o cartão,
tocava uma música natalina. Ela apagou a mensagem com corretor de
texto, e escreveu por cima: “Nunca percam as esperanças. Um Feliz
Natal!”

Quando Toquinho viu o cartão, tratou de perguntar: “Professorinha, o
que é essa coisa branca e brilhante, linda demais?” E ela respondeu:
“É a neve, Toquinho. Ela cai do céu nos lugares muito frios na época
do Natal. Fica tudo assim, coberto de branco... é lindo de se ver!”
Ele pensou um pouco, passando o dedinho magro sobre a imagem, e
olhando a purpurina que ficou na pontinha do indicador: “E você já viu
de perto? A neve, já viu?” A professorinha lembrou de sua única viagem
ao estrangeiro, quando se casou, há muitos anos: “Vi, sim.” E o menino
indagou: “E como é?” “Ah, Toquinho... é linda, macia e fria. Muito
branquinha também. Quando o sol bate, ela brilha, brilha... As pessoas
gostam de fazer bolas com ela e brincar de jogar umas nas outras, de
brincadeira. As crianças fazem bonecos com nariz de cenoura, e colocam
chapéus neles. É mágico...”
O menino suspirou fundo. Olhou para a professora bem dentro dos olhos,
um olhar daqueles que a gente jamais vai esquecer enquanto viver, e
declarou: “Eu queria muito ver a neve!”

A professorinha foi embora com lágrimas nos olhos. A frase do menino
quase moribundo ressoando em seus ouvidos, espetando o seu coração:
“Eu queria muito ver a neve!”

No dia seguinte, enquanto fazia compras na venda do ‘seu’ Manoel para
levar para a família de Toquinho, a professorinha ainda não tinha
conseguido esquecer as palavras do menino. Mas como fazer nevar no
sertão? Era impossível! De repente, um caminhão parou em frente à
venda, e uns homens começaram a descarregar umas caixas grandes. Eram
árvores artificiais e enfeites de natal para ‘seu’ Manoel colocar à
venda. Encomenda dos grandes fazendeiros da região, pois os clientes
mais pobres jamais poderiam pagar por coisas como aquelas. A
professorinha ficou observando enquanto ‘seu’ Manoel abria as caixas e
ia separando as encomendas, segurando uma lista, caneta atrás da
orelha. E conforme ele ia puxando as mercadorias de dentro das caixas,
enfileirando os enfeites para separar em cima do balcão, iam caindo no
chão bolinhas minúsculas de isopor, que o vento espalhava (aquilo se
deu antes do advento do plástico bolha).

A professorinha começou a ter uma ideia genial, e pegando algumas das
bolinhas de isopor, perguntou ao ‘seu’ Manoel: “Como é que eu faço
para conseguir mais destas, ‘seu’ Manoel?” O homem coçou a cabeça, sem
entender: “O que? “ Ela repetiu: “Essas bolinhas de isopor! Como eu
faço para conseguir mais, uma quantidade muito grande delas?” Seu
Manoel riu: “E pra que a senhora quer isso, Dona Professorinha?” A
professorinha contou a ele a história do Toquinho, menininho doente
que queria ver neve no sertão. Quando ela terminou a história, ‘seu’
Manoel tinha os olhos rasos d’água. Disse: “Dona Professorinha, eu
tenho caixas e mais caixas disso lá atrás no depósito. Engraçado... eu
sempre achei que um dia elas iam servir pra alguma coisa!” A
professorinha ficou feliz da vida!

Dizendo aquilo, ‘seu’ Manoel decidiu que doaria uma árvore de natal
que viera faltando alguns galhos, e uns enfeites que tinham quebrado
na viagem. Os dois confabularam durante algum tempo, fazendo planos.
Puseram-se a montar a árvore com os enfeites. Todo mundo que passava
por ali perguntava o que eles estavam fazendo, e eles repetiam a
história. As crianças tiveram a ideia de montarem um presépio vivo em
frente à casa de Toquinho. Algumas mães confeccionariam as roupas com
sacos de estopa. A festa de Natal foi sendo montada.

Alguém se lembrou que tinha em casa um velho gramofone e um disco de
canções natalinas. ‘Seu” Alonso da farmácia emprestaria um ventilador
grande para ajudar a fazer a neve voar.

Tudo pronto, na véspera de Natal todo mundo foi para a casa de
Toquinho sem fazer barulho, pois queriam que o menino tivesse uma
surpresa. Montaram tudo: o presépio, a árvore de natal com os enfeites
(nem dava para ver que estavam quebrados), uma mesa com a ceia, doada
pelos mais abastados da região, o gramofone. Alguns meninos mais
levinhos subiram no telhado da casinha com os sacos de bolinhas de
isopor, posicionando-se bem por cima da janela onde Toquinho estava.
Quando a professorinha deu o sinal, o gramofone começou a tocar “Noite
Feliz”, e as pessoas, que já tinham decorado a letra, cantavam junto.
A família despertou dentro da casa, e assim que abriram a janela, os
meninos começaram a derramar as bolinhas de isopor bem devagar, que
era para elas durarem mis tempo. Foi mágico! Mariazinha, pegando o
filho já bem fraquinho no colo, levou-o para a janela, dizendo entre
lágrimas: “Vem ver! Tá nevando!”
Toquinho nem acreditava no que estava vendo: quase igual ao cartão de Natal!

Uma força surgiu de dentro dele (dizem que antes de morrer, algumas
pessoas há muito tempo doentes despertam se sentindo muito bem,
conversam, riem e depois, morrem. É como se fosse uma despedida).
Aquela foi a festa de Natal mais linda que já se ouviu falar.

FIM

Ah, já ia esquecendo! E quanto ao Toquinho?
Bem, ele melhorou. Morreu não. Cresceu, foi para a cidade grande
estudar e virou doutor. Acreditou que tudo era possível depois que
nevou no sertão, e assim foi.

Dizem que ainda tem bolinhas de isopor agarradas aos espinhos de
alguns cactos, só para lembrar a quem ficou por lá, vazios de
esperança, que é possível nevar no sertão.


2-Ficou


Ficou tudo pelo chão,
E é bom que tenha ficado.
Um vento lento a soprar
Desfez as tramas do passado
E levou, consigo, o legado
Para bem longe do mundo.

-Toda a inútil ilusão,
Arrogância, presunção,
Palavras de amor ou de ódio,
Escárnio, riso, e o punho
Que arremeteu os punhais
Cravados no coração.

Ficou sim, tudo no chão,
E a chuva que chegou
Lavou, levou e depois
Veio o sol, e desbotou
Os restos do que ficou.

Descoloriu sentimentos,
Apagou os pensamentos,
Preencheu de vazio os momentos
E nada, nada mais ficou

Além do que ficou no chão,
A fim de ser esquecido,
Daqui levado, varrido,
Como será carregado
Tudo aquilo que ainda está.

E agora, eu me pergunto:
Do que será que valeu
Tanto ódio, tanto pus,
Tanta mentira inventada,
Tantas lâminas cravadas
No caule frágil da flor?...

No fim, só fica o amor,
E mesmo este, algum dia
Segue a mesma estrada fria,
Vai no rastro indefinível
De quem nunca mais voltou.

Ficou no chão o sentido,
Derramado feito água
No meio daquela estrada
Que ninguém mais percorreu...

Ficou toda a injúria vil,
De um coração desabrido
E desta, nem mesmo um til
Poderá ser removido.

Valeu?...

3-INVENÇÃO

Invento cores,
Cheiros, sabores
Invento caminhos
Cheios de flores,
Invento os sons
Da trilha sonora
Que cantam-me a vida,
Invento as horas.

Demoras, atrasos,
Flutuam nos rasos lagos.
Esperas, anseios
Tentando encontrar os meios.

Mas a mente pensa,
A mente divaga,
A mente desliga,
A mente se lava!...

Assim, eu invento
As cores e tons,
Os temas e sons
Que espalho no ar.

Assim, eu aguardo
Acontecimentos
Que ficam suspensos
Acima, no ar.


4-A Tua Rosa Não Tarda!


Se queres tanto escutar,
Então cala a tua voz,
Pois Deus não tem paciência
Com quem distorce a Ciência
De maneira tão atroz!

Se queres tanto entender,
Respeita a filosofia!
Pois ninguém há de enxergar
Arrotando tanta azia...
-Fingida sabedoria!

Aceita o negro da noite,
Abençoa a luz do dia!

Mergulha na escuridão,
Traz contigo uma canção,
Faz da vida uma alegria!

Ajoelha-te em silêncio,
Olhos fechados, rendidos,
Baixa as armas, sente o vento!

Cavando em meio à tristeza,
Acharás mudas de rosas...

Deixa que essas mudas falem,
Planta-as com fé e aguarda:
-A tua rosa não tarda.


5-A Vingança das Flores


As flores me olham quando eu passo,
Balançam suas leves cabeças e riem,
Em sinal de desaprovação:

-"Estúpida criatura humana,
Nem és capaz de cumprir uma promessa
Que há tanto tempo, fizeste a ti mesma!"

Então, eu as colho em um buquê bem apertado,
E as amarro, todas juntas em um vaso
Que coloco em algum canto escuro da sala.

Penso em, mais tarde,
Brincar de mal-me-quer.

Em resposta, elas murcham.

6-Varrer - Exercício Meditativo da Vassoura


Varrer: atividade que muitos consideram monótona, suja e cansativa.
Mas na verdade, varrer me faz pensar... para mim, é um exercício
mental melhor do que qualquer tipo de meditação formal. Enquanto eu
varro, eu me sinto mais calma, e fico presente no momento, prestando
atenção às sujeirinhas do caminho que se entranham pelos cantos e
degraus. Alcanço-as com o cantinho da vassoura, não deixando que fique
nenhuma impureza.

Depois, recolho todo o lixo em um saco plástico e jogo fora. Em volta,
tudo limpo, renovado.

E enquanto executo este simples ritual, tento limpar também a minha
mente das coisas que não me fazem bem.

Procuro dar algumas pausas em meu trabalho e olhar em volta, para um
passarinho pousado na árvore, um esquilo que chega, caminhando sobre o
muro, uma nova flor que desabrochou.

Varrer deixa-me mais limpa.

No dia seguinte, haverá novas folhas caídas sobre o gramado, caroços
de ameixa derrubados pelos morcegos durante a noite, em suas
refeições, um pouco de terra... ainda bem.


7-LEMBRANÇAS DE NATAL


Quando a gente é criança, tudo é mágico. Porque as crianças tem uma
visão que não é baseada em preconceitos e cinismos. Para mim, o Natal
- assim como a Páscoa - eram datas especiais. Mesmo sabendo que Papai
Noel não era real, eu gostava de fingir que acreditava, pois aquilo
deixava a existência mais leve e colorida.

Quem foi criança na minha época, com certeza lembra-se da boneca Suzi,
uma antiga versão da moderna Barbie, só que com mais cara de ser
humano normal, mais cheinha do que esta última, que tem a aparência de
uma maneca de passarela.

Um dia, inventaram um namorado para ela, o Beto. Lembro-me de quando
eu vi o comercial na TV pela primeira vez, onde uma menininha cantava
uma música estúpida, mas que na época, era o máximo para mim: "Beto é
da Suzi, Suzi é do Beto, tralálálá..." imediatamente, decidi: eu
queria o Beto!

Escrevi cartinhas para meu pai e minhas irmãs mais velhas. Quando eu
queria alguma coisa, eu literalmente sonhava com aquilo como se já
existisse. Acordava de manhã pensando, e ia dormir pensando no que eu
queria. Conversei com a Suzi, e prometi-lhe um companheiro adequado;
afinal, o Juca (um boneco grandalhão que eu tinha) era alto demais
para ela!

A "Suzi" escreveu cartas de amor para o Beto, e o Beto, respondeu a
todas elas. Trocaram declarações de amor apaixonadas, ansiosos pelo
encontro que os uniria para sempre. Fiz uma casinha de boneca em uma
caixa de papelão, onde os dois morariam para sempre e teriam seus
filhos, quem sabe... o casalzinho apaixonada conversava muito por
'telefone' (naquela época não existia Internet, muito menos,
computadores nas casas). Enfim: preparei com carinho a chegada do novo
membro do meu clube de bonecas.

Conforme o Natal ia se aproximando, mais ansiosa eu ficava, e quase
tremia de expectativa.

Uma semana antes do Natal, minha mãe e minha irmã mais velha foram às
compras. Voltaram cheias de caixas de presentes, que colocaram, como
sempre faziam, sobre o armário mais alto do quarto. Impossível, para
mim, alcançá-las... eu ficava olhando para as caixas, tentando
imaginar em qual delas estaria o Beto.

Finalmente, o Natal chegou. Hora de abrir os presentes. Ganhei roupas,
um jogo de panelinhas e outras coisas, mas o Beto não veio.

Acho que foi uma das maiores decepções de minha infância. Não sei por
que cargas d'água, tinham se esquecido do meu Beto.

Suzi ficou arrasada! Todos os sonhos de amor destruídos, as noites de
sonhos transformando-se em pesadelos. Ela mal pode lidar com aquela
tremenda decepção amorosa, e caiu em depressão profunda, por pelo
menos, três dias. Mas logo, vendo que de nada adiantariam suas
lágrimas - o Beto estava perdido para sempre, e nunca mais lhe
escrevera cartas de amor apaixonadas - ela acabou se conformando, e
aos poucos, foi conseguindo reconquistar o amor do Juca.


8-Experimental

Monoverso

Não desejo que sejas, jamais
O que eu venha a desejar que sejas
Sê aquilo que só tu desejas:
- Meus desejos far-se-ão reais.

Interação e Helena Luna:

HLuna
Só eu mesmo mando em mim,
Não aceito, não, conselhos,
Se quiser sou um jasmim,
Ou um cravo bem vermelho.


O Monoverso é um estilo criado por Rosa Ambiance.


9-DESTINO


O destino é um oceano
De conchas abertas e fechadas
Por onde navegam as almas
Que já nascem naufragadas.

Não há remos para os barcos,
São as ondas que os levam.
À deriva, eles flutuam
E ao destino se entregam.

Sopram os ventos tão frios
Maremotos, calmarias...
E o porto é sempre o mesmo:
O fundo azul do oceano
Onde dormem os navios.



10-Atiraste Uma Pedra...


Ela me pedia, entre gemidos, que a ajudasse a levantar-se da cama de
hospital, após uma dolorosa cirurgia que, pelo que tudo indicava, não
tinha dado certo. Eu tentava acalmá-la, segurando-lhe a mão e dizendo
que não podia levantar-se ainda, e mentia, dizendo que na manhã
seguinte, tudo ficaria melhor.

Ela delirava, ás vezes, dizendo coisas que eu não conseguia
compreender. Percebi que muitas e muitas vezes, tentava fazer o sinal
da cruz, e sem querer, arrancava do dedo o aparelhinho que media suas
batidas cardíacas, fazendo a máquina apitar. Eu o colocava de volta, e
segurando-lhe a mão, tentava distraí-la:

-Quer rezar uma Ave-Maria?
Ela murmurava: "Hã-hã..."

E eu começava, o coração vazio das palavras que eu mesma proferia. À
sua maneira, ela tentava acompanhar minha oração, e ao final, tentava
fazer o sinal da cruz. Os olhos sempre fechados, estava inquieta, e
dizia que estava morrendo.

De repente, o inusitado: debaixo da janela do quarto, já às nove da
noite, um grupo de seresteiros começa a tocar:

"Atiraste uma pedra
No peito de quem
Só te fez tanto bem..."

Pela primeira vez, ela abriu os olhos, e fitando a parede branca,
pareceu acalmar-se de repente. Acho que estava se lembrando do seu
grupo de idosos, e de quando costumava reunir-se com eles nas tardes
de sábado a fim de dançar e ouvir serestas. Menti mais uma vez:

-Viu só, mãe? Está ouvindo a seresta? É para você! Seus amigos vieram
aqui tocar para você!

Ela soltou novo gemido de dor, fechando os olhos. Mais uma canção, e
os seresteiros se foram. Mais tarde, ao ajeitar a colcha da cama,
percebi o lençol empapado de sangue. Tivemos que trocá-la. Jamais
esquecerei o cheiro do sangue.

Depois daquilo, ela foi definhando cada vez mais.

A morte jamais será algo bonito de se ver.


Abraços,


Autora: Anabailune - Petrópolis/RJ



Blog: Ana Bailune - Liberdade de Expressão
Postagem: Face
Link: http://ana-bailune.blogspot.com/2012/03/face.html


Comentários:


Grande escritora que demonstra em cada obra a intimidade com as palavras perfeitamente colocadas para que o leitor construa a imagem sugerida. Ana é dessas autoras que nos fazem sentir o gosto do quero mais ao final da última página e é sempre surpreendente ao fugir do lugar comum em seus trabalhos. Parabéns Ana e felicitações ao Gandavos por tão oportuna escolha nessa quinzena do autor.

Alberto Vasconcelos
Santo André/SP, 30/12/2015 




 Carlos A. Lopes disse...
Ana, obrigado. Ser homenageado por você com NEVE NO SERTÃO é um presente de natal e uma prova de amizade.
24 de dezembro de 2014 09:40
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Anônimo Marina Alves disse...
Grande autora, Ana Bailune, sempre me encanto com sua versatilidade, pois se sai maravilhosamente bem em qualquer que seja o desafio. Realmente um presente pra nós seus leitores, esses fragmentos reunidos de sua grande obra. Parabéns, Carlos pela oportunidade de mostrar ao Brasil, ao mundo, os nossos valores. Abraço aos dois.
26 de dezembro de 2014 21:59
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Blogger Sandra Amorim disse...
Ana. parabéns por tamanha sensibilidade. Te ler é viajar na imaginação. Adoro esse exercício. Um beijo cheio de luz!
28 de dezembro de 2014 15:50
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