segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Dagoberto

Autora: Helena Frenzel

SÃO da fazenda as primeiras lembranças que tenho. Acho que foi lá que nasci. Éramos muitos e de várias procedências. Minha mãe e meu pai também perambulavam por lá, mas não havia fortes laços entre nós, algo que nos unisse além da luta pela vida. Era cada um por si e os donos da fazenda por todos.
A vida por lá até que não era má. Os donos eram bons para conosco. Nos acolhiam. Deixavam-nos ficar, davam-nos abrigo e comida, tudo isso em troca de pequenos trabalhos. Roedores e outros pequenos animais eram para os fazendeiros uma peste e nós os ajudávamos a espantá-los, além de vigiar as vacas, pois no curral, junto a elas, era onde dormíamos. Ah, aquele cheiro de esterco fresco nunca me saiu da cabeça... Gosto de cheiros de fazenda.
Ainda pequeno apareceu uma família para me adotar. Os fazendeiros não se opuseram. Até mesmo porque éramos numerosos e, por mais que fossem bons, éramos também muito custosos para eles. Nos acolhiam porque eram gente de bom coração.
Se bem que por aqui, outros iguais a nós, que nascem sem um lar, não perambulam muito tempo pelas ruas sem eira nem beira. Se não houvéssemos encontrado guarida nos celeiros e currais desta fazenda, por certo estaríamos em algum abrigo desses espalhados pela cidade. Ouvi dizer que a vida nos abrigos era muito mais triste do que a que levávamos na fazenda.
Bem, isso ouvi da família que me adotou. Estava feliz com a chance de um novo lar, porém minha alegria durou pouco. Os filhos naturais, pequenos todavia malvados, tornaram minha vida um inferno. Usavam das brincadeiras para judiar de mim. Vivia tão assustado que só a proximidade dos pequenos fazia-me urinar as próprias pernas. Retraí-me cada vez mais.
Pouco tempo depois a família arrependeu-se e devolveu-me à fazenda. Essa rejeição fez-me amargo e arisco. Seus resquícios marcaram minha alma para sempre e inda hoje dão o tom do meu jeito de ser. Vai ver é por isso que sinto-me como pisando em ovos quando crianças estão por perto.
De volta à fazenda — ainda bem que os donos me aceitaram — tratei de readaptar-me. Não foi tão difícil. A vida por lá era dura, mas eu era feliz. Não passava bem, mas também não passava mal. Era livre, podia correr solto pela campina sempre que me desse vontade. E não há maior bem do que a liberdade. Sentia-me aceito pelos fazendeiros e feliz entre meus iguais.
Uma bela tarde ficamos muito ouriçados ao ouvir rumores de uma conversa entre os fazendeiros e um homem, um tal que sempre os visitava. Falaram em “vontade de adotar”. Combinaram com os fazendeiros voltar no dia seguinte para dar uma olhada na gente. A mulher do fazendeiro parecia estar feliz. O homem era amigo deles e de sua aura emanavam coisas boas. No entanto, a princípio, mantive a desconfiança. "Gato escaldado tem medo de água fria."
No dia seguinte não apareceu ninguém. Meus pares pareciam excitados, ansiosos. Eu esforçava-me para “não estar nem aí”. Os mais velhos, esses eram indiferentes pois sabiam que o interesse sempre se voltava para os mais jovenzinhos.
No final da semana, quando não mais esperávamos, o casal apareceu. Eu os observava de longe. Ficaram por ali, fazendo gracinhas, tentando fazer contato. Ouvi a esposa do homem dizer que era só uma visita e que éramos todos “muito bonitinhos”. Conversaram muito com os fazendeiros, andaram por toda a fazenda, visitaram o celeiro e o curral, conversaram com as vacas, fizeram-lhes carinho...
Da esposa do homem emanava também um sentimento bom, o mesmo tipo de bondade que vinha da mulher do fazendeiro. Por isso, na hora da distribuição da comida, que a mulher do fazendeiro fazia ao final de cada dia, senti diminuir meu receio e aproximei-me da estranha.
Nossos olhares se cruzaram. A mulher tinha uns olhos doces, através dos quais se podia ver. E no brilho negro de suas pupilas espelhei-me. Seria possível que nos entendêssemos, que buscássemos as mesmas coisas? Na escuridão do fundo daquele olhar vira eu muitas possibilidades.
Ela aproximou-se, tentou tocar-me. Não me esquivei. Perguntou-me: “Queres vir com a gente?” Encabulado, assenti com a cabeça. Ouvi a mulher do fazendeiro dizendo que a adoção viria a calhar, já que o casal não tinha filhos. Isso encheu-me ainda mais de esperança. No mesmo dia levaram-me com eles para sua casa.
As primeiras semanas não foram fáceis, como o são períodos de adaptação; embora a energia da casa fosse muito boa e todos me recebessem com muito carinho. Além do casal, havia também os pais do homem. Ouvi a mulher comentando que temia a reação do sogro. Mas tendo ele também me recebido muito bem, o clima desanuviou-se, tornando-se mais uma vez puro e límpido.
O tempo foi passando, laços se criando e apertando. A família me respeita. Amam-me e querem-me do jeito que sou.
Não sei exatamente o dia do meu aniversário. Sei que nasci num dia qualquer num mês de agosto. Mas isso não me importa. Conto meus anos a partir do dia em que essa família me adotou, 7 de novembro de um ano iluminado.
Conservo meu sentimento de liberdade, podendo ir e vir como e quando bem entender. Não dou trabalho. Se bem que no início de nosso relacionamento — numa reação natural de quem já sofreu muitas rejeições na vida — tentei mostrar-lhes logo o que tinha de pior, uma forma de testar se me queriam mesmo, exatamente do jeito que eu vinha.
Para minha surpresa, foram muito pacientes e compreensivos. Deram-me tempo para que em minha alminha ferida brotasse a confiança em seu amor por mim. Por vezes até me agradeceram por eu os ter escolhido como família. Fiquei comovido.
Com o tempo e a segurança, não houve mais em mim alimento para o mal, e o bem floriu. O amor que me dão, recebo alegremente e retribuo com prazer. Sou parte da família. Todos gostam de mim e muitos me elogiam. Dizem que demonstro saber muito bem o que quero, que sou independente e esperto como nenhum outro.
Quando me meto em confusão, desde que não tenha sido eu o culpado, há quem me defenda. O sogro — que um dia temeram vir a não gostar de mim — hoje é o primeiro a se levantar para me defender quando os gatos da vizinhança, maiores do que eu, se metem a besta e vêem aqui me bater. Sim, sou um gato. Mas isso não desvirtua nem diminui a minha história. Sou um gato amado, sortudo e feliz.


Autora: Helena Frenzel - Alemanha


Página da autora no Recanto das Letras:




Publicação autorizada pela autora


Publicado originalmente no Recanto das Letras sob o Titulo Uma Família Para Mim em 02/06/2009. Código: T1628086. Também é parte da coletânea de narrativas Perfis Interessantes.

6 comentários:

Carlos A. Lopes disse...

Helena, adorei seu texto. Ele é muito envolvente e sobretudo humano, do jeito que eu gosto. Só tenho que agradecê-la pela sua generosidade para comigo e os demais amigos que frequentam e colaboram com o blog.

Ana Bailune disse...

Que lindo! Com certeza, este fato não desvirtua a beleza da história.

Celêdian Assis disse...

Genial Helena, o desenvolvimento de um tema que é tão doído para tantos, indiferente para outros tantos e de tão profunda importância: a dureza da vida, a rejeição e o contraponto da adoção, do colo, da compreensão. Desfecho surpreendente e que valorizou ainda a mais a qualidade da sua mensagem. Gostei demais!
Um grande abraço,
Celêdian

Helena Frenzel disse...

Muito obrigada Carlos, Ana e Celêdian, aqui vai um pedaço de mim. Grande abraço!

Anônimo disse...

Parabéns Helena! O seu conto é espetacular. Abraço,
Anajara.

Anônimo disse...

Danada! Me prendeu até o final achando que era um garotinho. Minha imaginação foi a mil.E quem consegue parar de ler uma beleza dessa, tão bem escrita, tão envolvente? Parabéns. Você é mesmo genial! Marina Alves.