quarta-feira, 11 de março de 2015

Mecânico de Casa de Farinha

Autor: Alberto Vasconcelos

A lua prateava a estrada naquela noite fria e eu morrendo de fome, botei tudo o que a mercedinha aguentava para chegar logo em Caruaru.
Sozinho na boleia iluminada pelas lâmpadas do tabelier e pelo luão bem em minha frente eu pensava na ironia da minha situação.
Azul de fome e carregado com duzentas e sessenta sacas de feijão. Se botasse na panela, aquele feijão iria me alimentar pelo resto da vida toda.
A mercedinha com capacidade para dezesseis toneladas chega parecia uma pata choca, abaixadinha por causa do peso.
Quando peguei a serra do mimoso, senti o motor perdendo força. Não era falta de óleo porque os tanques estavam cheios até a boca.
A mercedinha fazia seis quilômetros por litro. Com os trezentos litros que eu tinha, dava para rodar mil e oitocentos quilômetros, quase duas vezes do Recife até Afrânio, que é a última cidade de Pernambuco. Depois de Afrânio não existe mais nada porque lá é o fim do mundo.
Será que eram os bicos injetores entupidos pela má qualidade do diesel, quase sempre, adulterado?
Só um mecânico é que saberia responder. Desci a serra na banguela para pegar velocidade. Quando cheguei lá em baixo, engrenei uma terceira porque eu esperava que, com o tranco, fosse jogado fora o que estivesse entupindo os bicos. Mas a minha manobra não deu certo. O motor tossiu umas três vezes e  morreu. Para não ficar parado na estrada, dirigi a mercedinha para o acostamento e puxei  travão.
Aqui prá nós, eu só sei consertar fusquinha, daqueles com vela, condensador e platinado. Sei desmontar e montar o carburador com uma faca de mesa, mas mesmo assim, levantei o capô e fiquei olhando aquele filho duma égua que tinha me deixado, morto de fome, na estrada no meio do nada.
Era o mesmo que olhar para um dinossauro bêbado, deitadão, quente e fedorento.
- Tá veno u quê aí, moço? (o susto que eu levei, chega me deu um formigamento das pernas subindo pelas costas)
-  O motor parou. Que susto o senhor me deu. Eu pensava que estava só na estrada...
- Nói nunca tá só não. Principarmente quano si tem amigo, né não?
- É, eu acho que o senhor tem razão.
- U sinhô tem as ferramenta, mode cunsertá esse bichão?
- Prá lhe ser franco, eu nunca mexi na maleta de ferramenta desse caminhão. Não sei o que tem dentro dela, porque eu pego a mercedinha já carregada, faço as entregas, depois trago de volta e só pego outra vez quando já está pronta para viajar.
- Qué dizê que voimicê é impregado do dono?
- É mais ou menos isso. Eu recebo por serviço prestado depois de feito.
- Hum! Qui nem meieiro?
- É, é assim mesmo. O senhor sabe dizer se tem algum mecânico ou oficina aqui por perto?
- Ói, Timoti, meu fio é mecânico de casa de farinha. Mai vez pru ôta ele arruma seiviço di carro.
- E onde é que ele mora?
- Ele mora mais eu, é aqui bem pertim. Eu vô chamá ele modi ajudá o sinhô.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, o homem meteu-se no mato da beira da estrada. Algum tempo depois, ouvi o som de um trator e os dois homens chegaram para meu alívio.
- O senhor voltou logo.
- É qui nói mora aqui pertim in Serro Azul...
- Nunca ouvi falar.
- Oxe! É logo atrai desse morro. Todo mundo conhece. Vamo imbora arrebocá esse bichão qui é pru mode o sinhô cume e acabá cum essa cara di fome. Zefinha fêi angu. Nói come cum charque na brasa e café.
- Não posso deixar de aceitar essa oferta. Estou mesmo com uma fome do cão...
Amanhecia quando cheguei ao pátio da transportadora. O vigia, despertado pela buzina da mercedinha, veio abrir o portão.
- Chegou cedo, não foi?
- Que nada, estou é atrasadão. A mercedinha me deixou na estrada ontem de noite. Não fosse o mecânico que caiu do céu para me ajudar, eu ainda estaria penando quebrado na beira da estrada.
- É. Faz muita falta a pessoa não saber mexer nesses carros novos.
- Pois você pode acreditar. Quem consertou a mercedinha foi um mecânico de casa de farinha.
- Oxe! Onde você arrumou um, isso ainda existe?
- Em Serro Azul...
- Serro o quê? Onde é que fica isso homem...
- Logo abaixo da serra do mimoso. Eu estava olhando o motor quando seu Zé Ferreira, um senhor gordo e brincalhão, apareceu para me acudir.
- Ele é o mecânico?
- Não. O mecânico é Timóteo Ferreira, filho dele. É um rapaz magro, ainda bem moço, com um sinal de cabelo nas costas da mão direita. Seu Zé me levou para comer na casa deles e Timóteo rebocou a mercedinha com um trator velho. Quando eu sair daqui mais tarde, vou voltar lá porque tem festa da igreja na rua. Comi uns beijus feitos por dona Judite, mãe do seu Zé Ferreira. Uma velhinha animada que está trabalhando numa das barracas da quermesse que o padre Vicente está fazendo para juntar dinheiro para pintar a igreja. Fiquei na festa até de madrugada. Arrumei até uma namorada, Maria Edite, e vou me encontrar com ela junto da barraca de tiro ao alvo.
- Olhe meu amigo eu não quero lhe chamar de mentiroso. Mas o Timóteo Ferreira que você descreveu e que foi mecânico de casa de farinha, morreu faz uns dez anos. Ele vivia no abrigo espírita d’ali da esquina e sempre que alguém se dispunha a ouvi-lo, contava as histórias de uma tal cidade, cidade não, arruado, chamado serro azul, já a essa altura feita em ruínas pelo abandono dos moradores. Quando ele morreu tinha mais de noventa anos...

Autor: Alberto Vasconcelos - Santo André/SP

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GLOSSÁRIO
Banguela = ponto morto no jargão caminhoneiro
Mercedinha = caminhão Mercedes Benz
Tabelier = painel de automóvel

3 comentários:

Maria Mineira disse...

Esse conto é ótimo! Super criatividade do autor ao colocar esse gentil mecânico na história. E esse final ficou excelente.O Glossário também ajuda muito o leitor não familiarizado com as falas regionais. Parabéns a quem escreveu o conto!

Anônimo disse...

Uiiiiiiiiii!!! Finalizo com um arrepio, sob o impacto desse inusitado final. Conto pra lá de bem escrito! Destaque para o cuidado especial em não entregar o ouro ao leitor, que vai até à última linha, querendo saber no que deu o causo. Parabéns ao autor ou autora! Marina Alves.

Helena Frenzel disse...

Texto interessante e bem escrito, parabéns ao autor ou à autora :-)