sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Unha de gato

Autor: Carlos A Lopes
 
Quando falei minha idade o jovem médico se calou, pensou por alguns segundos me observando dos pés a cabeça. Ele parecia querer que eu lhe dissesse algo antes de se pronunciar. Eu mordia os lábios, torcia as mãos suspirando, mas nada me surgia senão gabar-me, contando de um vizinho da minha idade tentando recuperar o fôlego entre um andar e outro do edifício onde me hospedei. No fim de algum tempo, o doutor sorriu ironicamente, e demonstrando superioridade levantou a sobrancelha exibindo seus olhos amendoados. Nesse momento eu já sentia o som da minha delicada estrutura se esmigalhando.
— Seu Aderbal, as pessoas da sua idade que aparecem aqui, soltam baba, não interagem e muito menos entendem o que digo.
Fomos interrompidos pelo barulho da porta atrás de mim, quando entrou um indivíduo todo de branco. Insensível a minha presença, perguntou o que fazer com um paciente que se dizia curado após ingerir o chá de uma planta com propriedades medicinais. Segundo disse, o paciente voltou a urinar sem dificuldades.
Enquanto falavam, observei o quase roçar do seu jaleco em mim, isso me fez lembrar o curso que fiz para aplicador de injeção. Fui infeliz no meu primeiro serviço, pois, o paciente foi esmorecendo e desmaiou aos meus pés. Dias depois, uma urgência me fez aplicar uma injeção e a criança nasceu minutos depois. Nem preciso dizer que fiquei consagrado na região, apesar do meu treinamento ter se resumido a enfiar a agulha da seringa cheia de água numa laranja.

— O senhor tem um coração de menino. Nas suas taxas, controle a glicose e o triglicerídeo.

— Eu nem sei por que estou aqui, doutor.

Senti um vazio dentro de mim ao ver o médico ensacar os exames no enorme envelope da clínica onde me mandaram fazer exames. Aquilo tudo parecia embrulhar mais ainda o meu estômago.

— Posso tirar uma foto sua, para mostrá-lo aos médicos de cabeça branca?, disse já de pé e posicionando o seu aparelho celular.

Deixei-me fotografar com a sensação de quem não havia produzido nada de útil naquela manhã. No entanto, aquele hospital era um velho conhecido, local onde padeci no meu tempo de militar.
 
Era o dia 25 de outubro de 1948 quando fui socorrido no Hospital de Pesqueira. O motorista do veículo em que viajava cochilou no volante e o caminhão desgovernado caiu da ribanceira. Das quatro pessoas que estavam na carroceria duas morreram. Saí com a perna “esbagaçada” por conta de um tonel que por pouco não me tirou a vida. Fui levado às pressas ao hospital.

Depois de onze dias de muito sofrimento me enviaram de trem com destino à Recife. No Hospital do Derby sofri muito, principalmente depois que me engessaram a perna. Doía, coçava e queimava o tempo inteiro. À noite eu não conseguia dormir. Quando não suportava mais, abriram o gesso e descobriram que o tecido da minha perna havia apodrecido. Depois de tratado e o gesso reposto, dormi por três dias seguidos.

Apareceu por lá um médico alemão e disse que a minha perna havia sido engessada com o pé torto. O gesso foi retirado e a anestesia aplicada não fez efeito em mim. Fui amarrado na cama e sem poder reagir, tive a perna quebrada como se fosse um pedaço de pau enquanto suava e gritava de dor.

Nunca sofri tanto em minha vida. Nos dias que se seguiram, eu tive exata impressão de que qualquer coisa que se movia ao meu redor me fazia doer a perna.

— Tempo atrasado aquele... Como veio parar na capital?

É uma longa história, mas vou lhe contar um pedaço. Era o início do ano de 1941, eu tinha a idade de dezessete anos e seis meses. Lembro-me por ter sido de boa invernada, quando depois da recusa do meu pai em ceder-me um pedaço de terra sem significado, era chegada a hora de deixar minha terra. 

Um dia de feira em Tabira, soube que haveria alistamento para a Polícia, na cidade de Sertânia. De imediato comprei uma mala e voltei a Solidão com o utensílio na lua da sela do cavalo. Ao chegar a Sertânia, fomos alojados no quartel e pelo chão cimentado todos se ajeitaram.

Pela manhã obtivemos os documentos e sentia estar próximo o alistamento. Já noite ouvi uma sanfona tocar: "Lá no olho do pau tem um ninho e isto é armação de comadre seriema..." Perguntei:

— Onde será aquela dança?

Alguém disse que a música vinha de um cabaré nas proximidades. Com mais dois outros desmantelados, seguimos o som do fole da sanfona. Nunca tinha visto uma coisa daquelas! Tinha putas quebrando para todos os lados. Isto é um inferno, pensei. Vou entrar no meio!

Uma morena de olhar agateado perguntou:

— Filho de onde você veio?

Disse-lhe que vim sem rumo e cairia pelas bandas do Recife. “Vamos lá e vem pra cá.” O suor escorria salgando a pele da morena e o seu cheiro entrava pelas minhas ventas de maneira intensa e gostosa. Lá pelas duas da madrugada a mulher perguntou se não gostaria de ir aos seus aposentos. "Só se for agora", respondi.

A esta altura eu estava cheio de cachaça misturada com Zinebra, o guaraná da época. Quando cheguei ao quarto quase caí de costas. Não tinha nada que se aproveitasse. Além de uma mesinha e um candeeiro velho, só o chão batido e empoeirado...

No outro dia amanheci todo sujo de terra. Ao chegar ao quartel, só ouvi um grito:

— Vai tomar banho!

Depois de asseado, começou aquele negócio de vai para lá e vem para cá. Chegada a minha vez perguntaram de onde vim.  Não tive dificuldade de citar minha procedência. Eu era uma “marra de homem.” Pediram que abrisse a boca e examinaram meus dentes e com expressão de satisfeitos me encaminharam para outros exames.

Algum tempo depois fui lembrado numa lista de uns trinta nomes dos homens que seguiriam para o Recife. Ainda chamaram mais uns oitenta e dispensaram o resto. Fiquei de alma aliviada.  Já no quartel e de banho tomado, contei meu apurado e constatei haver restado pouco dinheiro, mas estava satisfeito.

Para minha surpresa, chegou uma ordem de última hora, que, ninguém poderia sair à noite, pois o trem ia partir às cinco da manhã, mas eu precisava me despedir do “sertão”.  Havia uma pequena porta nos fundos do quartel e iria escapar por lá. Todos se deitaram cedo e havia dois soldados como vigias. Quando o primeiro caiu no sono, saí pela portinha e desapareci na escuridão. Ao chegar ao cabaré fui logo dizendo:

— Minha morena, vim me despedir!

Quatro horas da manhã, já no quartel,  ouvi o grito:

— Levanta mundiça!

Naquele tempo ninguém tinha educação. Em poucos minutos todos estavam de pé. O trem chegou apitando no horário anunciado. Fomos jogados dentro de um vagão como animais. Quando chegamos a Arcoverde, apareceu um menino vendendo sanduíche gritando:

— Olhe o sanduíche de galinha!

Logo que o garoto se aproximou da minha janela pedi um. E haja o menino a gritar para vender o seu produto. Quando o trem apitou o garoto disse:

— Moço, o dinheiro!

Respondi:

— Adeus meu amiguinho, eu vou ser soldado!

A esta altura confesso que estava bem alimentado e por algumas horas minha barriga ficaria em paz. Agarrei no sono enquanto o trem lentamente me levava em direção à capital do estado. Vez por outra acordava e observava um ou outro colega a conversar, logo voltava a dormir. Pouco me importava quanto tempo ainda levaria a viagem. Despertei do sono em Caruaru com o intenso movimento das pessoas na estação. Olhei pela janela e vi um número grande de vendedores. Uns vendiam umbus, outros tapiocas ou abacaxi. Nada daquilo me atraia.

Uma velhinha despertou meu interesse ao aproximar-se da janela e ofereceu pão com carne. Perguntei quanto custava aquilo:

— Quatrocentos réis!

Vendo minha indefinição, reforçou:

— Tem carne dentro, filho!

Simulei escolher entre um ou outro, quando o trem deu o sinal de partida, olhei-a nos olhos e sentenciei:

— Adeus minha velhinha! O seu pão com carne vai comigo!

A coitada colocou os pertences no chão e gritou com todo o ar do pulmão:

— Infeliz, tu vai morrer de dor de barriga!

Tive tempo de responder:

— Não quero saber se cago por cima ou por baixo, vou é tocar “vialejo” no seu pão com carne.

Na nossa chegada, descemos um atrás do outro. Um pouco mais de tempo e chegaram umas "sopas" vermelhas, que pareciam "uns chofreus." Pensei: ¨Seria tudo isto para nos conduzir até o quartel do Derby? ¨ Eu já estava com uma fome danada e começava a sentir dor de barriga.

— Desculpe seu Aderbal. Não seria o tal pão com carne da velhinha, disse o médico a sorrir.

— Os solavancos do trem misturado com a banha do preparo, podia sim, porque não?

— Uma vida e tanto a sua, Seu Aderbal. Voltando ao seu caso. Vamos fazer o exame retal, para avaliar as condições internas do reto? É importante para o diagnóstico de diversas doenças, entre elas, o câncer de próstata.

    Foi só um quase nada de sangue, doutor!

Houve um longo silencio, seguido de outro silêncio, desta vez constrangedor, pela parte de Aderbal.

Agora a pouco, lá fora, perguntei a minha esposa se ela se lembrava de quando eu tinha vinte e poucos anos. Disse isso enquanto percorria com o olhar toda extensão do beiral do quartel. Senão pelas tantas construções ao redor da Praça do Derby, tudo parecia igual há setenta anos, quando saí desse palacete na condição de soldado aposentado por invalidez e em seguida casei. Agora lhe pergunto:

— Como olhar nos olhos dela, dos filhos e dos amigos depois do constrangimento?

O médico me olhava em silêncio.

— Vamos fazer o seguinte, doutor:

— Diga, Seu Aderbal:

— Lembra-se daquele sujeito de jaleco branco que entrou na sala andando igual um sabiá? Pois bem, lá na minha terra tem a tal planta que curou o homem ao qual se referiu. Vou preparar e tomar o remédio, todos os dias, religiosamente...

— Espere Seu Aderbal. A coisa não é tão feia quanto o diabo pinta. Se me deixar fazer o exame pode evitar dor de cabeça daqui a algum tempo. Deixa explicar direito para o senhor...

Interrompi o doutor e levantei dali com uma baita pressa, acho que era mesmo medo dele me convencer ao contrário, macho que é macho, foge às léguas.

— Carece explicar não. O senhor conhece aquele ditado “pimenta nos olhos dos outros não arde”?

— Pois então Seu Aderbal, tem um outro que diz “o que arde, cura”.

— Só volto aqui depois de testar a tal raiz unha de gato e se não der certo, aí então venho experimentar da sua pimenta. Então, até mais ver doutor!

Autor: Carlos A Lopes
Olinda - Pernambuco

2 comentários:

Maria Mineira disse...

Boa tarde, Carlos. Muito bom esse conto! Com sua narrativa bem feita, você conseguiu fazer com que o leitor acompanhasse a história de vida do Seu Aderbal desde a juventude e também mostrou o preconceito, o medo e insegurança que muitas vezes faz com que a pessoa fuja de uma tratamento de saude procrand meios alternativos que nem sempre serão a solução. Gostei muito! Abraço.

chagoso disse...

Muito genial o seu conto.