sexta-feira, 1 de abril de 2016

A prisioneira

Autor: Geraldinho do Engenho

Presa na alcova da casa grande, ela passava as horas ruminando saudade daquele amor inocente, cuja semente germinava no seu ventre. Eram quase crianças, mas o amor falou mais alto.
A mãe submissa mal podia tocar o nome da filha. Aos amigos o pai dizia que a filha decidira pôr em prática sua vocação religiosa com seu voto de pobreza.
Do jovem que misteriosamente desapareceu, os pais esperavam pelo milagre de sua volta. A pobre mãe perdera em lágrimas toda alegria de viver.
Toda a hipótese seria válida, mas a mais viável seria a grande cheia tê-lo sugado impiedosamente, naquela ultima tempestade que desabou como um dilúvio.
A reputação do pai com a patente de coronel, e com seu poder, eram mais importante e acima de qualquer bem material, o imaterial não fazia parte de sua trajetória. Obviamente o que contava era apenas sua conotação social onde o poder do vil metal era o magistral juiz
Naquele cubículo quase sem claridade, a esperança era a única luz. Somente a bondosa Bá que a viu nascer e preparara com tamanhos mimos e carinho sua festa de 15 anos, tinha acesso a ela.             Despojada de suas jóias, restara apenas sua correntinha de ouro cujo pingente era uma medalhinha da Virgem Maria contendo as iniciais A.C. de Ana Cristina, nome escolhido pela mãe, o único desejo satisfeito pelo marido naquele matrimônio marcado por um angustiante machismo.
Já no sexto mês de cativeiro e angústia, seu único contato era quando sua BA e sua mãe furtivamente burlavam as ordens do pai, levavam-lhe um pouco de afeto.
Enfim chegara o momento. Fortes dores e contrações repetidas anunciaram o que deveria ser o fim de um martírio.  O choro de anjo, num bebê robusto de olhos azuis, quebrou a monotonia daquele quadrilátero sem ventilação. A alegria da mãe ao recebê-lo no seu aconchego cortou o coração de sua Bá, sabedora do destino incerto daquele indefeso inocente.
À exata zero hora, nascia o fruto daquele amor proibido. Duas horas após, uma carruagem desaprecia na curva da estrada deixando para trás os rastros da crueldade e, na sombra da noite, uma pobre mãe que mal teve tempo de colocar seu único bem, um pingente da mãe de Jesus, no pescocinho de seu bebê. As horas passaram moderadamente. Os apelos da nova avó só aumentaram o ódio do pai cujo objetivo era apenas lavar o que ele afirmava ser sua honra.
Mais duas semanas já não havia mais lágrima na fonte resignada daqueles olhos quase sem cor, tentando suportar a claridade de um novo presídio, desta vez liberta da escuridão, mas longe do único bem que lhe restou.
Aos poucos, a dor da alma petrificava. No coração, uma cicatriz profunda emoldurada por aquele rostinho que fora brutalmente arrebatado dos teus braços.
Penalizada com tamanha tristeza a madre superiora do convento onde fora aprisionada, compadecida, estendeu-lhe a mão num gesto de ternura maternal. E assim pouco tempo após, as chagas da solidão já sinalizaram um abertura para a alegria, embora a saudade obstruísse aquele sorriso que ficou tão distante, perdido na penumbra sombria da alcova. Mas os estudos e as orações preencheram aquele vazio. E a bondosa madre já conhecia todos os detalhes do seu martírio.
Agora seria possível, autorizada pela madre, arbitrar sua própria decisão na escolha do caminho a seguir. Pela primeira vez, sentiu-se aliviada sob o manto protetor da superiora que lhe delegou o poder de escolha. Sonhar sim, mas sorrir ainda era cedo, talvez impossível.
Estava decidida a obedecer a sua vocação e cursar enfermagem. Cinco anos de dedicação e o sonho realizado. Estava com o tempo dividido entre o primeiro emprego no hospital público mais as horas dedicadas ao convento que adotara como filha. Ocupações que preenchiam todo aquele espaço que um dia alimentou o sonho de um grande amor. E assim mais vinte anos de portas fechadas para o amor, sem uma única noticia de pai e mãe.
Conserva-se o caráter sombrio e profundo pela convivência com aquele filme engavetado na mente que vinha à tona quase sempre. Os anos de experiência, cursos e congressos a colocaram num patamar de capacidade e conhecimento indispensável para aquela instituição que se tornara como seu verdadeiro lar.
Era uma quarentona, agora, que jamais pensaria em amor, bastando-lhe seu círculo de amizade enriquecido no trabalho coroado pelo êxito profissional.
Isso até aparecer Júlio César, aquele médico dedicado de olhos azuis que reprisava um rostinho inocente que estivera em seus braços, por poucos momentos, há exatos vinte cinco anos. Seria amor à primeira vista ou ironia que viera mudar seu destino?
O fato é que ambos estavam perdidamente apaixonados. Há poucas semanas se conheceram, mas ambos tinham histórias a ser desvendadas e a perda de tempo poderia atrapalhar aquele amor que surgiu quase num estalar de dedos. Os colegas de trabalho e a velha madre do convento ficaram eufóricos quando anunciaram o noivado.
Travou-se uma disputa acirrada entre hospital e colégio pelo local na realização do enlace. Venceu a madre que ofereceu a capela do convento, alegando ser o lar de Ana Cristina e se dizendo em condições de providenciar um padre do orfanato vizinho para a celebração.
Tudo preparado, a capela superlotada, a noiva deslumbrante, o noivo, idem, e o padre, um jovem de vinte e cinco anos, rosto modelado, olhos azuis.  Ana Cristina encantada com aquele rosto jovial, que lhe parecia familiar, estava quase sem voz para responder o ritual da cerimônia.
Terminando, o jovem padre abraçou os noivos e num gesto de carinho começou a discursar fundamentado no tema bíblico sobre a paternidade. Dizendo lamentar-se não ter conhecido os pais. Fora entregue ao orfanato pelo avô juntamente com uma alta cifra em dinheiro, um valor suficiente para custear seus estudos. Embora tivesse pesquisado a respeito de sua origem, nada havia conseguido. Apenas possuía uma pequena medalha que segundo afirmaram, levaram com ele.
Admirado, Julio César retrucou:
—Curiosamente temos história parecida. Eu me chamava Antônio Carlos. De repente cai num profundo sono e fui seqüestrado não sei por quem. Quando acordei, estava preso num colégio interno e com uma certidão de nascimento com o nome de Júlio César e afirmando ser filho de pais desconhecidos cuja herança fora depositada em um banco. Esta herança seria liberada somente para o reitor do colégio custear meus estudos.  E assim eu cursei medicina e aqui estou, mas pretendo em breve procurar minha origem. O sonífero que me aplicaram apagou completamente meu passado, a minha memória tem registro obscuro. Lembro-me vagamente em sonhos, de ser chamado pelo nome Antônio Carlos.
Ana Cristina que até então só ouvia entra em cena.
—E tu padre responda-me... Tua medalha tem as iniciais A N.?
—Sim... Ei-la aqui!
—Me abrace, filho querido... Sou tua mãe e aqui está teu pai!  Dr. Julio César é teu pai! Somos vitimas da ganância e do preconceito do teu avô, um coronel tirano sem coração, que acredito deve estar ardendo nas chamas do inferno!
E sob os aplausos da platéia, os três se abraçam agradecendo a Deus o feliz encontro.

Autor: Geraldinho do Engenho - Bom Despacho/MG

3 comentários:

Anônimo disse...

Uma historia bem narrada,prende atenção do principio ao fim e com um final feliz e com certeza, muitos casos mparecidos, ouvimos contar.

marina Alves disse...

Um belo conto de amor em histórias de vidas entrelaçadas pelo destino. Ótimo! Parabéns!

Anônimo disse...

Muito bom texto para uma história bem conduzida. Parabéns a quem o produziu.

Alberto vasconcelos