domingo, 10 de janeiro de 2016

Notícias do passado

Autor: Augusto Sampaio Angelim

Fiz a mim mesma a promessa de nunca lhe procurar. Não escrever e nem telefonar. Já se passaram mais de trinta anos, porém, agora, um motivo mais forte me obriga a isto. Explicarei adiante. Amanhã à noite, embarcarei num ônibus e irei procurá-lo. Pelo menos é o que penso, enquanto escrevo esta carta. A angústia que tenho sentido estes dias é capaz de me enlouquecer e, neste momento, apesar da certeza do que  estou escrevendo, a dúvida me assalta. Talvez amanhã, quando acordar exausta desta noite mal dormida, rasgue esta carta e desista da viagem. Não, amanhã estarei mais resoluta que agora. Tomarei o ônibus e darei um jeito de me avistar com....Como devo lhe tratar? Simplesmente por C? Não se preocupe, sei das responsabilidades de seu cargo. Não lhe trataria com tamanha intimidade, apesar do passado. Acaso consiga vencer meus temores e dúvidas e lhe entregue esta carta, imagino que, a princípio não reconhecerás a remetente. Ou será que lembrarás assim que me avistares? Sinceramente, não sei, pois pouco te conheço, embora tanta ligação tenha consigo. Evitarás abrir o envelope e rasgarás a carta ou sua curiosidade lhe impelirá à leitura? Quem é essa mulher? Será que terás dúvidas a respeito da minha identidade e do meu segredo? Ficarás desesperado? Pensarás em extorsão, dinheiro, escândalos? Dobrarás os joelhos, ante o peso nos ombros e o amargor na boca? Tuas mãos tremerão com a leveza dessas páginas? Se esta carta chegou às tuas mãos e continuas a ler, é porque, no mais íntimo de teu ser, despertou, no mínimo, a dúvida sobre o passado. 
Estou cansada.
Mas não há outra saída, preciso de sua ajuda. Ou melhor, precisamos.
Certamente, lembras de quando vieste para esta cidadezinha perdida nos confins do interior. Jovem, bonito e forte. Eu também. Jovem bonita e afoita. Minha mãe (que Deus a tenha) trabalhava na sua casa. Era a “empregada”. Cozinhava, arrumava e passava. À tardinha, quando voltava da escola, literalmente vestida como uma colegial, de saia azul-marinho e blusa branca, ia ter com minha mãe em sua casa que, àquela hora, já estava aviando os preparativos do jantar. Numa dessas tarde, estavas no quintal, trabalhando a terra com uma enxada. O suor escorria pelo seu rosto e a camisa branca estava colada na sua pele, realçando-lhe a beleza. Não consegui desviar os olhos e percebi que notaras, pela satisfação de teu semblante. No outro dia, a mesma coisa. No terceiro dia, minha mãe disse que teria de ir, rapidamente, à padaria, pois tinha esquecido de comprar o pão. Eu fiquei, pois ela mandou arrumar a roupa passada e levar para seu quarto. Peguei, cuidadosamente, suas roupas. Não me contive e procurei teu cheiro nas roupas que já estavam guardadas. Demorei pouco, mas o suficiente para que passasses pela porta do quarto rumo ao escritório e me avistares. Dias depois, lembras? Sim, alguns dias depois, às escondidas, entrei em seu quarto, me despi e cobri o corpo com o lençol lavado por minha mãe. Imaculadamente branco. O instinto masculino lhe guiou até meus braços. A volúpia e o prazer tomaram conta de nossos corpos. Fui embora e não sei que fins destes ao lençol. No outro dia ouvi mamãe procurando saber seu destino. Assim, se passaram cerca de quinze dias de encontros furtivos e repletos da maior intimidade. 
Tenho certeza que não esquecestes desses dias. 
Estás envergonhado? Era a juventude, se procuras alguma desculpa. Ainda não tinhas vinte e seis anos. Eu, menina, estava perto dos dezoito.
Eu sei que é difícil, mas preciso de forças para lhe contar o resto. Como escrevi acima, talvez amanhã rasgue está carta e jogue os pedacinhos na bacia sanitária. 
R., que morava na minha rua e não escondia sua paixão por mim, foi a salvação. Salvação, neste caso, por expressar algo divino, talvez não seja a palavra apropriada. Mesmo no desatino daqueles dias, tive receio do que o pior tinha acontecido e tomei uma atitude drástica. Na festa da padroeira. Bonita festa, não é verdade? Na festa, R. dançou comigo e, por astúcia, lhe induzi a ingerir garrafas e mais garrafas de cerveja, para depois me levar até o canto mais escuro da praça. Na agonia do desejo e no desalinho da embriagues, ele pensou que o troféu era dele. No outro dia, à noite, falou preocupado comigo e com minha reputação. Cai no choro. Chorei de verdade. Chorei com raiva do que havia acontecido entre nós dois. Chorei com raiva porque enganara R. Ele me pediu em casamento. Na mesma noite, impulsionado pelo amor que me devotava e pela sua dignidade, falou com minha mãe. Dona M quase que caiu de costas. Não esperava aquilo. E vocês namoram desde quando? E vocês vão viver de quê, meninos? Uma pergunta atrás da outra. A resposta curta e certeira capaz de derrubar todas as indagações. Eu “mexi” com ela D. M. Mamãe levou às mãos ao coração e caiu no sofá. A pressão dela subiu e teve uma crise de angina. 
Destes detalhes não sabias, não é mesmo? Ainda estás a ler? Tuas mãos estão suando porque estás nervoso? Estás com raiva? Tens ódio? Eu sim, neste momento tenho tanto rancor que os dedos doem de tanta força que estou fazendo na caneta. Amanhã, talvez eu rasgue esta porcaria e deixe você, definitivamente, alheio a tudo o que aconteceu. Ou será que você sabe do que aconteceu? Sabe? Se estivesses em minha frente, agora, e eu permanecesse com esta coragem momentânea, lhe perguntaria: “Sabes, o que aconteceu, covarde?”.  Deixei de ir à sua casa. Dias depois, casei com R. Da cerimônia lembras com certeza. A minha mãe se esmerou em aprontar a igreja. Minha barriga já dava sinal, mesmo assim casei de branco. R. foi a melhor pessoa que conheci na vida. Sim, ele morreu. Faz dois anos. Tivemos duas filhas. A primeira barriga deu um menino. Ninguém nunca soube de nada. Mamãe, quando estava no seu leito de morte, no ano passado,  chamou-me e perguntou de quem P. era filho. Não minta, minha filha. Eu disse a verdade e ela descansou em paz. Eu e P. precisamos de sua ajuda, por isto lhe escrevo. Agora, deves ter rasgado a carta em mil pedacinhos, ou então, queimou-a. 
A noite já vai alta, mesmo assim preciso continuar a escrever, pois se parar agora, amanhã não terei coragem para recomeçar. Estando ainda com a carta em suas mãos é sinal de que estás ansioso para saber o que desejo. Tens medo de extorsão? Escândalo? Paciência, lês o restante do que tenho para te dizer. Se você não destruiu esta carta até o presente momento é porque tens medo, repito. Espere um pouco, ainda. Preciso lhe dizer que quando R e eu nos casamos, o pai dele nos deu terra e gado para criar. Com muito esforço, R. soube conduzir a propriedade, ser meu senhor e marido. E, principalmente, pai dos três filhos. Estás a amassar a carta? Não faças isso. Continue a leitura. R, apesar do pouco estudo, compreendeu que eu precisava continuar estudando e, todas as noites, eu vinha para o colégio e assim mesmo, entre uma barriga e outra, consegui concluir o ginásio. Mas não ficou nisto, fiz Faculdade de Pedagogia e consegui ser aprovada como professora do Estado. Um sorriso de sarcasmo talvez escape dos teus lábios agora. Professora? Professorinha? Afinal, todos aqui ficamos sabendo de sua ascensão e que fostes estudar até em Roma e obtivestes grau de “Doutor”. Quando os meninos cresceram viemos morar na Cidade. R., todos os dias, ao amanhecer do dia, rumava para a fazenda, cuidar da terra e dos animais. Assim prosperamos e conseguimos amealhar certo capital. Disto não me queixo. R., entretanto, de tanto lidar com vermífugos e carrapaticidas, contraiu um vírus fatal e morreu precocemente. 
Estás a se perguntar por que lhe digo estas coisas? Não desconfias da verdade? 
Bem, R. morreu, as duas meninas se casaram e foram morar em V.
P., também se casou, mas ficou aqui, tomando conta da fazenda, repetindo a vida de R. Ele tem dois meninos lindos. Estão os dois aqui em casa e daqui da sala ouço a respiração forte deles. Brincaram o dia todo, alheios à tristeza da casa.

Podes ser frio, canalha, covarde. Sim, penso estas coisas a seu respeito, se queres saber. Podes ser tudo isto, mas és inteligente e sabes aonde eu quero chegar. É. Isto mesmo. P. é seu filho! Desculpe-me, mas agora estou chorando de raiva. Ele está preso há vinte dias, acusado de receptação de cinco novilhas que comprou na feira do gado. Já contratei advogado e não teve jeito. Ele recorreu para o Tribunal e, como tenho visto na internet, és íntimo do desembargador que está com o processo dele. Uma palavra. Apenas uma palavra em favor de teu filho e de teus netos, é o motivo desta carta. Rogo-lhe por tudo que é de mais sagrado. Fazes isto e apagarei todas as mágoas que me causastes. Para teu consolo, juro de coração, que foi melhor você ter ido embora antes que P. nascesse. Eu fui feliz com R. durante toda nossa convivência. Por ele, pela dignidade póstuma dele é que eu também te afirmo, mesmo com raiva, que se não fizeres nada. Que, mesmo que não movas um dedo em favor de P., eu não falarei nada a ninguém. Este segredo somente eu, mamãe e você é que saberemos para sempre. Não por mim e por você, mas pela dignidade de R. Procuras o desembargador que eu te falei, tu sabes quem é ele, pois vocês estavam numa mesma solenidade na semana passada. 
Sim, quando assumistes o cargo de tanta distinção que ocupas agora, a cidade festejou e surgiu o boato de que virias até aqui, aonde principiarias teus dias de ministério. Eu tinha certeza de que não virias. Muitas casas, principalmente, na zona rural, exibem seu retrato oficial. Aqui não tem. Na casa de P., por iniciativa exclusiva da mulher dele, influenciada pela mãe, está sorridente e sereno na moldura da sala.
Estás aliviado? Já normalizou a respiração? Tuas mãos pararam de tremer? Fazes o que quiseres desta carta. Era tudo o que tinha a dizer, para sempre. Mas fazes este gesto, para curares tua vergonha. Reconheces o teu pecado. A Bíblia diz em Salmos 51:2-4 “Lava-me completamente da minha iniquidade e purifica-me do meu pecado. Pois eu conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim.”. Afasta-se, pois do pecado, eu te perdoo, se fizeres isto por seu filho.
O reverendíssimo bispo Dom C. sentou-se na cadeira de sua escrivaninha, fechou os olhos e aparentou dormir. Dois ou três minutos depois, se levantou, passou a mão pela cabeça totalmente calva e se dirigiu até o canto da sala onde ardia uma vela e queimou a carta.

Augusto Sampaio Angelim

São Bento do Uma/PE

5 comentários:

Ana Bailune disse...

Uau, que história!
O autor colocou tanta verdade nela, que o leitor pode pensar tratar-se de um caso real. Muito bom, adorei!

Carlos Costa disse...

Uma história fantástica!

Carlos Costa disse...

Uma história fantástica!

Anônimo disse...

Uma correspondência observando o tempo em sintonia com o passado,o espaço e o presente.Ótima...João Batista Silva-Bom Despacho/MG.

Anônimo disse...

História envolvente, escrita com maestria, que prende o leitor e revela a baixeza humana de forma contundente. Parabéns pelo magnífico texto. abraço.

Alberto Vasconcelos
Santo André/SP, 11/01/2016