segunda-feira, 4 de maio de 2020

XARAPA


       
          A canção vem de longe. Acorda a lembrança e sacode a memória, vinda do fundo do Tempo, doce e envolvente, percorrendo de volta os caminhos da infância.
           Eu era o mais taludinho do grupo, criado ao sol e à chuva, seis a oito “capitães da areia” dos marmeleiros e das malvas da Fazenda Cangalha, na vila de Custódia, que branquejava ao sol do sertão.
          Devia ser maio ou junho, íamos pela vereda estreita e de repente, num deslumbramento, apareceu aos nossos olhos atônitos o açude cheio, sangrando na fúria da enchente. Moitas verdes boiavam na água barrenta, onde o sol rebrilhava e as andorinhas ligeiras molhavam as penas nos voos curtos de flechas.
         No ar pairava o cheiro forte da terra molhada, o odor da vegetação que surgira, de noite para o dia no milagre das primeiras chuvas, tapetando de verde o sertão, que ressurgia feliz. A babugem enchia o olfato, perfume agreste de mato novo surgindo da terra molhada, estadeada ao sol, salpicada de flor-de-jurema na festa da fecundação.
           Paramos no alto e ficamos olhando a paisagem fulgurante, diante dos nossos olhos. Depois sentei-me à sombra de um pé-de-turco que floria ao lado, crivado de florzinhas amarelas. Ao redor em silêncio, o grupo aguardava ordens: Jobelino, de riso largo, Pedrinho que chamava manancia, Apolínio, invencível na baleadeira. Erasmo, orgulhoso no canivete Corneta, “Lulu” de claros olhos e cabelos caídos à testa, Quincas e Abraão, este o caçula da turma, gordinho e rosado, chorando com a picada das urtigas. Também havia a índia. Sim, ali estava Xarapa, de negros cabelos e talhe delgado, ágil como as corças, que a fome tangera de Vila-Bela para a vida farta da fazenda de “seu” Nemésio Rodrigues.
          Um dia ela chegara, de olhos baixos e voz sumida, vestida de trapos, cabelos endurecidos pela poeira das estradas, quase nua e faminta, pedindo um pouco dágua e um pedaço de pão.
            Dona Marta lhe matou a fome e lhe cobriu o corpo que desabrochava.
            Ela ficou ajudando a preta Ana, nos afazeres da copa.
          E quando a gente varava o mato em busca de fruta silvestre e de ninhos de pássaros, de uma curva qualquer dos caminhos, ela saltava à nossa frente, de olhos brilhando, o cabelo solto, o corpo esguio e moreno, ligeira como as corças. Nós a batizamos de Xarapa.
          Porque ela era do grupo, tinha direitos adquiridos, tomava parte nas brincadeiras e nas traquinadas e quando menos se esperava, desaparecia, voltava para a preta Ana, chegava desconfiada, a malícia nos olhos de amêndoa, pisando de leve, com pés de gato.
             E sem palavras, lavava os pratos, levava a ração aos porcos, varria o alpendre e o terreiro. Logo mais, porém, quando menos se esperava, lá estava ao nosso lado, caçando ninho de rolinhas e de pomba avoante, procurando umbu maduro e murta cheirosa. Ali à beira do açude, fiamos olhando a água nova, o voo certeiro das andorinhas, a paisagem deslumbrante do açude sangrando.
          De repente Xarapa começou a cantar uns versos magoados que ela trouxe de Vila-Bela. Talvez a lembrança do pai morrendo à míngua, intoxicado com farinha de mucunã, a mãe desgarrada pelo mundo; dois filhos nos braços e um no ventre, talvez a via crucis da retirada exaustiva, sangrando os pés nos caminhos, tudo isso amolentou a garganta e adocicou a voz de Xarapa.
                Porque a música era tão triste que doía na alma e nos chumbava em silêncio.
                O tempo apagou os versos daquela canção dolorosa.
               Só a música persistiu, a melodia é que ficou na memória, plangente e magoada como um poema que tivesse perdido as palavras e ficasse gravado na lembrança feito somente de sonoridade.

Crônica de Luiz Cristóvão dos Santos, extraída do livro Caminhos do Pajeú. Ed. 1954
Texto enviado por Jorge Farias Remígio em 03/05/2020

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