segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Sala de Espera

Autora: Marina Alves

Observo-o sentado a minha frente na sala de espera do consultório médico: cabelos brancos emolduram o rosto sereno, acentuado por sobrancelhas densas e cerradas a cobrir os olhos um tanto escondidos sob rugas, marcas do tempo... Aparenta mais de oitenta...
Uma ternura esquisita me invade. Demoro-me naquela figura: calça marrom tipo social — “bolso faca”, preguinhas e presilhas — cingida por uma “correia” preta e fina com fivela metálica prateada; camisa manga longa, azul-clarinha, muito bem passada a ferro, abotoada no colarinho e nos punhos; as mãos,  a direita apoiada sobre a esquerda, dormem num repouso tranquilo sobre um dos joelhos.
Escorrego os olhos para os pés: permanecem juntinhos, bem alinhados um ao lado do outro; sapatos pretos, bem engraxados, deixando aparecer as meias escuras. Distraio-me a adivinhar um pouco daquele homem que, não sei por que, me toca de maneira especial. Nada sei sobre este simpático senhor, mas vejo que está cercado por pessoas que o tratam com cuidado  e carinho. Reparo que a mulher mais velha, à direita, é a esposa. A jovem senhora e o rapaz de calça jeans e camiseta vermelha são filhos.
— Pai, firma o corpo — diz baixinho, a filha.
— Hein? — responde ele fracamente, pondo a mão em concha no ouvido.
— Tô dizendo que é bom o senhor apoiar as costas na cadeira. Sua coluna pode doer do jeito que está...
À recomendação da filha, ele não esboça qualquer reação. Ela insiste. Parece preocupada com o corpo dele, meio emborcado, ameaçando escorregar. Ela se levanta e o ajuda a se recompor na cadeira. Ele  sorri levemente, num mudo agradecimento. Volta a ficar em silêncio. O burburinho das pessoas na sala não lhe chama a atenção. De súbito, aponta para o corredor e indaga:
— Por aí , a gente vai aonde?
A esposa se apressa:
— É a entrada, meu velho. Foi por aí que a gente chegou, e  é por aí que a gente vai sair, quando o médico lhe olhar... A porta fechada é a do consultório. O médico tá lá dentro...
Por um instante ele parece aflito. O filho intervém, no intuito de acalmá-lo:
— Já tá chegando sua vez, pai... Daqui a pouquinho, viu?
Ele retoma a posição anterior e volta ao seu mundo particular. A esposa percorre com o olhar os circunstantes e com voz trêmula e entrecortada por uma emoção que  mistura pesar e orgulho, vai dizendo:
— Ele era caminhoneiro. Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Ceará, Maranhão, Mato Grosso, eram lugar pertinho pra ele. Viajava sozinho e Deus aí por esse Brasil afora...
Um silêncio frio, cortante, quase dolorido pesa na sala. A emoção toma conta de mim  e de todos que ali estão. Disfarço, desviando os olhos para um galho de jabuticabeira que aponta numa nesga da janela. Não quero chorar diante deste homem que, depois de conhecer todos os rumos do Brasil, já não reconhece a saída da sala onde está...

(Natal é tempo propício para as reflexões, inclusive, sobre a efemeridade do homem neste plano terrestre. Que seja bem vivido cada momento oferecido).


Autora: Marina Alves - Lagoa da Prata/MG

Página da autora:

http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=64920

Publicação autorizada pela autora

5 comentários:

Anônimo disse...

Obrigada, Carlos, pelo incentivo de sempre. Grande prazer publicar aqui no Gândavos. Abraço da Marina.

Carlos A. Lopes disse...

Eu que agradeço a você, Marina Alves. Hoje consegui repor no blog a ferramenta de comentários visível na página principal. Esta é uma função que havia sido suprimida pelo fabricante do modelo e agora disponibilizada. Assim fica bem mais confortável comentar e ler comentários das matérias.

Carlos A. Lopes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Patricia disse...

Bela mensagem, Marina Alves. Além da constatação de tratar-se de uma escritora de respeito. Parabéns.

Michele C.Marchese disse...

Que lindo texto Marina, fiquei comovida com a situação. Acabamos sendo pais de nossos pais. Um retribuir o amor e carinho que foram dados em nossa infância. Amei! Beijos