Autor: Carlos A Lopes
Ticia,
irmã do meu bisavô, nasceu em 1890, no Sítio Cajazeiras, terras hoje
pertencentes ao município de Tabira.
Quando a conheci seu rosto já estava sulcado pelo tempo, como os leitos
dos rios extintos da região e a pele ressecada, feito a terra, que se desfaz em
areias levadas pelo vento.
Essa mulher soube como ninguém o significado
da palavra solidão. Seu Olhar profundo e vazio remetia a um passado distante, uma
infância de muitas obrigações e uma vida adulta reclusa, morando num canto de
cerca e de um caminho sinuoso e suficiente apenas para uma única pessoa.
Ticia
morava numa casa de taipa, simples, porém de muito esmero. Trajava sempre vestimentas
negras, encobrindo-lhe o corpo dos pés até a cabeça. Não me lembro de ter ido sozinho até lá,
algum primo sempre ia junto. Não sei
dizer se tinha medo da vereda embrenhada nos matos, quando sol a pino caçoava de
nossas cabeças, ou da imagem que surgia lenta e pacientemente e ao mesmo tempo
desaparecia por entre galhos retorcidos, vacas magras e ossudas, morros brancos
de poeira.
Ticia
não era mulher de frequentar casa alheia, porém, em casos de doenças ou morte,
fazia-se presente. No sofrimento e na
dureza da vida, aprendera a repartir o pouco que tinha. De maneira singular agradava
aos visitantes mais chegados oferecendo umbus graúdos e saborosos. Às pessoas com
as quais não tinha tanta afinidade oferecia umbus de qualidade e robustez
inferior. Esta era Ticia! Tinha mania de guardar tudo em tigelas de cabaças, ali
separava os frutos dos dois pés de umbus que encobriam o telhado da sua casa.
Aquelas
duas árvores eram algo sagrado para Ticia. Para se atrever ao desfrute, só
alguém bem aceitos ou da família. Zé Andrade foi um especialista na tentativa
de burlar este protocolo e quando percebido:
—
Quem está aí?
—
É Vicente, Ticia!
Este
sim, na condição de filho da sobrinha podia tomar chegada.
Extremamente
calada e retraída, o máximo que conseguiu de um amor foi a
união arranjada quando já estava mais velha e isso a marcou
profundamente. Luiz foi o bálsamo para afugentar a solidão, um
companheiro que estaria ao seu lado brigando com a terra na luta pelo sustento.
Dizia sempre:
— Lis me quer bem.
Seu
Luizinho sabia de cor e salteado o significado da palavra paciência. Meus tios
arremedavam o pobre coitado tangendo sua vaquinha:
—
Ôôô dá dá... Ôôô dá dá...
Fato que deixava Ticia muito aperreada se queixando
junto ao sobrinho:
—
Eu não vou contar a compadre, senão
vai bater nos bichinhos...
Outras vezes, os garotos de longe gritavam:
—
Seu Luizinho valente, partiu o
cagalhão com os dentes...
Além
dos umbus, o que acendia o brilho nos olhos de Dão e Tica, eram os reconhecidos
bolos de bacia feitos na frigideira. Ticia dava-lhes um tratamento quase ritual
no fabrico, em exato número de dez. A dupla aparecia no cercadinho pedindo-lhe
a benção e especulando sobre como caminhava o preparo dos bolos. Do mato
espreitavam o fundo da casa da tia. Quando sentiam que estava no último dos
dez, um deles se dirigia à porta. De lá de dentro só uma voz se escutava:
—
Espere aí que eu já vou.
Este
entrosava uma conversa sem propósito e logo a pobre velha dizia:
—
Eu vou embora que tem um bolo no fogo.
À
esta altura o roubo já tinha sido praticado nos fundos da casa. Os bolos seriam
devorados entre as plantações.
—
Fome a gente não tinha. Disse
Dão.
Jogavam pelos plantios afora após algumas
mordidas. Da boca da pobre Ticia só saia uma frase:
—
Ora, ora... Vou dizer a José. Não dizia!
Sabedor
que a esposa apreciava um aperitivo, Seu Luizinho jamais deixou de trazer da
feira uma garrafa de vinho, cerimonial que meu avô continuou a fazê-lo, quando
ela ficou na condição de viúva. A morte prematura de Seu Luizinho significou a
volta da solidão daquela mulher conformada com o seu destino.
À
medida que a idade avançava, familiares absorveram atividades diárias dela. Mãe
Neves lhe servia o café da manhã e o almoço; Maria José (Dó) tinha a obrigação
de servir o leite da tarde e o jantar. A higiene pessoal e da casa coube a
sobrinha Izabel, filha de Zé Loureto, cunhado de Ticia.
Todas
as manhãs, Pai Lopes ia levar o café e cuidar da ferida no seu rosto. No
desespero de não ver resultados, somado a ausência de medicina, aplicava no
rosto de Ticia remédios destinados a animais, enquanto o câncer continuava
devorando a sua face esquerda.
Numa
tarde, sem maiores explicações, de súbito minha avó, Mãe Neves, teve vontade de
ir até a casa de Ticia levar um café. Nem ela mesma entendeu como aquilo
aconteceu: Foi de repente. Sua
filha ainda tentou retê-la.
— Deixe ir, me deu
vontade.
Ao
chegar ao cercadinho sentiu cheiro de pano queimado.
—
É bosta de gado que está voando. Pensou.
Ela
normalmente queimava fezes de animal para defumar o ambiente contra insetos.
Das telhas via a fumaça saindo, mas só percebeu o mundo se acabando, quando entrou na casa. Ela estava imóvel em cima da cama já arriada
pelo fogo. De súbito, disse:
—
Mulher, o que é isto?
O
fogo se apossara do leito e das cobertas. Ticia estava toda queimada e não
respondia aos apelos. Minha avó naquele tempo ainda tinha forças nos
braços, a retirou dali, colocando-a no chão. Foi retirando suas roupas em
chamas a tal ponto que queimou o seu vestido. Depois de recomposta, buscou José
Lopes, sobrinho de Ticia, que estava no engenho. Ele veio com os trabalhadores
e cuidaram do resto.
Os
danos do incêndio causaram queimaduras desagradáveis em mais da metade do corpo
de Ticia. Quem a visitava logo sentia o cheiro de carne assada. Pouco ou quase
nada, os familiares podiam fazer. Em sã consciência ela não permitia sequer que
alguém tocasse em seu corpo. E daquele dia em diante passou as noites gemendo
de dores.
Dias
antes de morrer e sem lucidez, dizia a quem chegasse:
—
Aqui chegou uma doida, rasgou minha roupa e me botou no chão.
Por vontade da família seus pertences ficaram
com Izabel, que mesmo diante de tantas resistências da tia, a manteve bem
asseada até a sua morte.
Morreu
Ticia ou Cecília Lopes. O câncer lhe roubaria a vida em breve, mas o fogo
antecipou o prazo. Era a hora de prestar contas com quem sempre respeitou:
Deus!
Autor: Carlos A Lopes - Olinda - PE
4 comentários:
Boa tarde, Carlos. Não me pergunte o motivo, eu mesma não saberia dizer. Porém, essa história me emocionou profundamente. Abraço da amiga Mineira.
Ticia é um texto real. Ela existiu e a conheci pessoalmente, mesmo que pouco lembre dela. Os nomes citados são de familiares, enfim, é um pedaço da minha história. Eu escrevi esse texto para um trabalho de genealogia que fiz da minha família tempos atrás. A Maria Mineira foi muito gentil em dar mais cores e beleza ao texto, a quem agradeço muito. Obrigado Maria Mineira, fez um ótimo trabalho no texto.
Nossa! Que história!
.
.
.
Alice
Postar um comentário