terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Ticia e seus bolos de bacia

Autor: Carlos A Lopes

Ticia, irmã do meu bisavô, nasceu em 1890, no Sítio Cajazeiras, terras hoje pertencentes ao município de Tabira.  Quando a conheci seu rosto já estava sulcado pelo tempo, como os leitos dos rios extintos da região e a pele ressecada, feito a terra, que se desfaz em areias levadas pelo vento.
 Essa mulher soube como ninguém o significado da palavra solidão. Seu Olhar profundo e vazio remetia a um passado distante, uma infância de muitas obrigações e uma vida adulta reclusa, morando num canto de cerca e de um caminho sinuoso e suficiente apenas para uma única pessoa.
Ticia morava numa casa de taipa, simples, porém de muito esmero. Trajava sempre vestimentas negras, encobrindo-lhe o corpo dos pés até a cabeça.  Não me lembro de ter ido sozinho até lá, algum primo sempre ia junto.   Não sei dizer se tinha medo da vereda embrenhada nos matos, quando sol a pino caçoava de nossas cabeças, ou da imagem que surgia lenta e pacientemente e ao mesmo tempo desaparecia por entre galhos retorcidos, vacas magras e ossudas, morros brancos de poeira.
Ticia não era mulher de frequentar casa alheia, porém, em casos de doenças ou morte, fazia-se presente.  No sofrimento e na dureza da vida, aprendera a repartir o pouco que tinha. De maneira singular agradava aos visitantes mais chegados oferecendo umbus graúdos e saborosos. Às pessoas com as quais não tinha tanta afinidade oferecia umbus de qualidade e robustez inferior. Esta era Ticia! Tinha mania de guardar tudo em tigelas de cabaças, ali separava os frutos dos dois pés de umbus que encobriam o telhado da sua casa.
Aquelas duas árvores eram algo sagrado para Ticia. Para se atrever ao desfrute, só alguém bem aceitos ou da família. Zé Andrade foi um especialista na tentativa de burlar este protocolo e quando percebido:
— Quem está aí?
— É Vicente, Ticia!
 Este sim, na condição de filho da sobrinha podia tomar chegada.
Extremamente calada e retraída, o máximo que conseguiu de um amor foi a união arranjada quando já estava mais velha e isso a marcou profundamente. Luiz foi o bálsamo para afugentar a solidão, um companheiro que estaria ao seu lado brigando com a terra na luta pelo sustento. Dizia sempre:
— Lis me quer bem.
Seu Luizinho sabia de cor e salteado o significado da palavra paciência. Meus tios arremedavam o pobre coitado tangendo sua vaquinha:
— Ôôô dá dá... Ôôô dá dá...
 Fato que deixava Ticia muito aperreada se queixando junto ao sobrinho:
— Eu não vou contar a compadre, senão vai bater nos bichinhos...
 Outras vezes, os garotos de longe gritavam:
— Seu Luizinho valente, partiu o cagalhão com os dentes...
Além dos umbus, o que acendia o brilho nos olhos de Dão e Tica, eram os reconhecidos bolos de bacia feitos na frigideira. Ticia dava-lhes um tratamento quase ritual no fabrico, em exato número de dez. A dupla aparecia no cercadinho pedindo-lhe a benção e especulando sobre como caminhava o preparo dos bolos. Do mato espreitavam o fundo da casa da tia. Quando sentiam que estava no último dos dez, um deles se dirigia à porta. De lá de dentro só uma voz se escutava:
— Espere aí que eu já vou.
Este entrosava uma conversa sem propósito e logo a pobre velha dizia:
— Eu vou embora que tem um bolo no fogo.
À esta altura o roubo já tinha sido praticado nos fundos da casa. Os bolos seriam devorados entre as plantações.
— Fome a gente não tinha. Disse Dão.
 Jogavam pelos plantios afora após algumas mordidas. Da boca da pobre Ticia só saia uma frase:
— Ora, ora... Vou dizer a José. Não dizia!
Sabedor que a esposa apreciava um aperitivo, Seu Luizinho jamais deixou de trazer da feira uma garrafa de vinho, cerimonial que meu avô continuou a fazê-lo, quando ela ficou na condição de viúva. A morte prematura de Seu Luizinho significou a volta da solidão daquela mulher conformada com o seu destino.
À medida que a idade avançava, familiares absorveram atividades diárias dela. Mãe Neves lhe servia o café da manhã e o almoço; Maria José (Dó) tinha a obrigação de servir o leite da tarde e o jantar. A higiene pessoal e da casa coube a sobrinha Izabel, filha de Zé Loureto, cunhado de Ticia.
Todas as manhãs, Pai Lopes ia levar o café e cuidar da ferida no seu rosto. No desespero de não ver resultados, somado a ausência de medicina, aplicava no rosto de Ticia remédios destinados a animais, enquanto o câncer continuava devorando a sua face esquerda.
Numa tarde, sem maiores explicações, de súbito minha avó, Mãe Neves, teve vontade de ir até a casa de Ticia levar um café. Nem ela mesma entendeu como aquilo aconteceu: Foi de repente. Sua filha ainda tentou retê-la.
           — Deixe ir, me deu vontade.
Ao chegar ao cercadinho sentiu cheiro de pano queimado.
— É bosta de gado que está voando. Pensou.
Ela normalmente queimava fezes de animal para defumar o ambiente contra insetos. Das telhas via a fumaça saindo, mas só percebeu o mundo se acabando, quando entrou na casa. Ela estava imóvel em cima da cama já arriada pelo fogo. De súbito, disse:
— Mulher, o que é isto?
O fogo se apossara do leito e das cobertas. Ticia estava toda queimada e não respondia aos apelos.  Minha avó naquele tempo ainda tinha forças nos braços, a retirou dali, colocando-a no chão. Foi retirando suas roupas em chamas a tal ponto que queimou o seu vestido. Depois de recomposta, buscou José Lopes, sobrinho de Ticia, que estava no engenho. Ele veio com os trabalhadores e cuidaram do resto.
Os danos do incêndio causaram queimaduras desagradáveis em mais da metade do corpo de Ticia. Quem a visitava logo sentia o cheiro de carne assada. Pouco ou quase nada, os familiares podiam fazer. Em sã consciência ela não permitia sequer que alguém tocasse em seu corpo. E daquele dia em diante passou as noites gemendo de dores.
Dias antes de morrer e sem lucidez, dizia a quem chegasse:
— Aqui chegou uma doida, rasgou minha roupa e me botou no chão.
 Por vontade da família seus pertences ficaram com Izabel, que mesmo diante de tantas resistências da tia, a manteve bem asseada até a sua morte. 
Morreu Ticia ou Cecília Lopes. O câncer lhe roubaria a vida em breve, mas o fogo antecipou o prazo. Era a hora de prestar contas com quem sempre respeitou: Deus!

Autor: Carlos A Lopes - Olinda - PE

4 comentários:

Maria Mineira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Maria Mineira disse...

Boa tarde, Carlos. Não me pergunte o motivo, eu mesma não saberia dizer. Porém, essa história me emocionou profundamente. Abraço da amiga Mineira.

Carlos A. Lopes disse...

Ticia é um texto real. Ela existiu e a conheci pessoalmente, mesmo que pouco lembre dela. Os nomes citados são de familiares, enfim, é um pedaço da minha história. Eu escrevi esse texto para um trabalho de genealogia que fiz da minha família tempos atrás. A Maria Mineira foi muito gentil em dar mais cores e beleza ao texto, a quem agradeço muito. Obrigado Maria Mineira, fez um ótimo trabalho no texto.

Anônimo disse...

Nossa! Que história!
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Alice