Michele Calliari Marchese
Seu
coração não bateu descompassado como acontece com os namorados, bateu
normalmente como se estivesse em casa preparando os filhos para a missa. Era
como se o Percival fosse seu próprio coração, e assim sendo, não haveria o
porquê de atrapalhar-se em suas batidas.
O
tom da voz do Percival tinha o mesmo timbre da sua alma e ressentiu-se da sua
vergonha em escutar o que ele lhe dissera naquele momento em que apertou a sua
mão. Vigorosamente. Aquela mão forte, de homem trabalhador, tinha o mesmo toque
da sua, quase não percebeu a diferença e confundiu-se por um instante, pois com
o nervosismo poderia ter acontecido dela ter juntado suas mãos numa atitude de retração.
Pensou
nele como uma metade do corpo pensa na outra, não há possibilidade de estarem
separados, a não ser que estejam em corpos diferentes, e a esse pensamento
suspirou que poderia ser amor ou poderia ser a coisa mais inexplicável que lhe
acontecera em todos esses anos. Porém, sabia lá dentro do seu ser que nunca
poderia ser. Não porque não podia, mas porque não precisaria.
O
olhar do Percival mostrou que eles eram um. Brilhavam a luz dos homens fortes e
íntegros, estavam úmidos como a mansidão do rio que corre à vida. E neles se
via tudo, toda a vida com eles.
Mas
em seu pensamento de mulher, aquele intenso segundo que conhecera o Percival,
foi o suficiente para ter vivido com ele a vida inteira. Olhou para o marido
que conversava com aquele homem e sabia que estava no lugar certo e com o homem
certo. Era feliz e conhecera a felicidade nos olhos do Percival.
Quando
encontrou o Percival pela segunda vez, havia passado alguns anos, e ele a
abordara saindo da mercearia. Deu uns vinténs às crianças dela para que fossem
comprar balas e falou naquela voz que ela conhecia desde sempre que ele estava
apaixonado e sabia que ela também. Diante do silêncio que se fez no meio
daqueles corpos que eram um, ele lhe disse que escreveria.
De
olhos baixos ela nem se despediu. Não respondeu sequer com um suspiro àquelas
perguntas que se detiveram na boca do Percival. Sabia que ele queria respostas
ao seu amor, porém ela não tinha nenhuma. Nunca estivera apaixonada por ele e
tampouco sentira falta. Lembrava-se do brilho dos olhos e da sua voz e do seu
aperto de mão, mas como uma lembrança que se perde cada vez mais no percurso da
estrada.
Recebeu
a primeira carta em agosto daquele ano, justamente no dia do aniversário do
primeiro filho. Leu porque achou tratar-se de algum “parabéns” que o Percival
estaria dando ao filho dela, mas o que estava escrito a tomou de surpresa e
pouco imaginava que aquelas palavras eram dirigidas à ela, pois o tamanho do
amor tingido de azul foi emocionante. Ela chegou a chorar e choraria também se
a carta não tivesse sido escrita para ela.
Muitos
anos depois, quando o marido convidou o Percival para os festejos das Bodas de
Ouro, ela finalmente encontrou-se com aquele olhar de homem acabado pela paixão
não correspondida, viu que as cartas que ele lhe escrevera tinham sido um
grande desabafo para continuar vivendo.
Encontraram-se
frente a frente e deram-se as mãos no cumprimento e se perguntaram coisas vãs,
coisas que já sabiam e então o Percival engasgou-se na sua emoção quando
perguntou se ela havia recebido suas cartas.
Mais
de doze mil cartas foram escritas pelo punho daquele homem apaixonado que nunca
repetiu uma vírgula em suas missivas e todas tinham o mesmo teor: do homem que
sofre com a ausência da mulher que ama.
Ela
baixou os olhos e disse-lhe que somente a primeira carta havia sido lida – por
um engano qualquer – e que todas as perguntas que tinha, nunca deviam ter
surgido em seu coração. E perguntou se ele queria as cartas de volta, para
acalentar os anos perdidos. Ou mesmo para entregar à outra mulher, pois ainda
havia tempo dele casar.
O
Percival negou lentamente com a cabeça, despediu-se com os lábios crispados de
dor e foi embora sem dizer adeus.
Escreveu
outras tantas milhares de cartas que lhe foi possível em vida e todas jaziam lacradas,
organizadas por data e amarradas por mês abarrotando o porão da casa dela até
que o marido finalmente lhe perguntou o que era aquilo e ela lhe respondeu não
saber, mas que guardara por respeito.
Quando
souberam da morte do Percival, ela e o marido esvaziaram o porão, e foi
necessária uma carroça para empreender a viagem das cartas que foram colocadas
dentro do caixão e foi preciso abrir uma tumba maior para que as outras
coubessem lá. Descansaria com suas palavras de amor, nunca lidas.
Autora: Michele Calliari Marchese - Xanxerê/SC
Autora: Michele Calliari Marchese - Xanxerê/SC
3 comentários:
Um eterno e grande amor construído e alimentado de silêncio e espera. Para quem duvida que existe amor assim, o conto vem provar que é a mais pura verdade. Sensacional! Parabéns ao autor.
Texto magistralmente escrito, real, e desafiador. Perfeitamente dentro dos parâmetros do concurso. Parabéns a quem o produziu.
Alberto Vasconcelos
Muito, muito boa historia. Historias de amor são sempre bonitas, principalmente de um amor assim. Conceição Gomes;
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