Era por volta da segunda dezena de julho de 38, na Gruta do Angico, nas beiradas do Velho Chico, nas terras da povoação sergipana de Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo, tendo o município alagoano de Piranhas do outro lado, um pouco mais à esquerda.
Ali
ao redor da gruta se escondia o bando cangaceiro de Virgulino Ferreira da
Silva, o Capitão Lampião, em desconfortante repouso depois de chegar de longa
jornada pela aridez baiana do Raso da Catarina.
O
Capitão achava o local um refúgio seguro, pois de difícil acesso pelo lado
sergipano e podendo contar com o grande número de amigos que mantinha na região,
gente humilde, da mataria, mas também portentosos senhores de terras. Do coronel
ao matuto, era significativo o laço de amizade construído.
Mas
para se manter naquele coito, naquele refúgio de espinho, ao abrigo do sol e da
lua, Lampião precisava muito mais do homem do mato do que de outra pessoa
influente. E para tal não existia amigo melhor, mais confiável e mais
conhecedor das veredas sertanejas do que o coiteiro.
No
respeitante ao cangaço, coiteiro era aquele sertanejo que servia de
intermediário entre o bando e o mundo exterior, fazendo às vezes de
correspondente, de mercador, de assistente de quase tudo. Assim, era
responsável pelo transporte do alimento, do remédio, de dinheiro e tudo aquilo
que os cangaceiros necessitassem.
Muitas
vezes somente o coiteiro sabia o local onde o bando estava escondido. E aquele
que soubesse e lhe fosse confiado a manutenção do segredo - um juramento que
deveria ser inquebrantável - entre o bandoleiro e o matuto, suportaria até a
morte para não trair a confiança do Capitão. E muitos foram presos, torturados,
humilhados, mas mantendo sempre o silêncio da honra.
Por
isso mesmo que Lampião nutria uma amizade especial por cada um desses
sertanejos, cada coiteiro que arriscava a vida em nome da sobrevivência e
subsistência do bando. Sabia que seria muito difícil sobreviver nos escondidos
sem tão importante ajuda. Sabia que do seu silêncio dependia o amanhã do seu
povo marcado pelo destino das perseguições.
Daí
que estando refugiado no Angico e na tentativa de estreitar ainda mais os laços
de amizade e a rede de proteção, lá pra cima do dia vinte, mais precisamente no
dia 27 de julho, resolveu que seria a hora de convidar a coiteirama para um
regabofe, para um café à base de muita carne de bode e farinha seca. Tal evento
ficaria lembrado na memória nordestina como A Última Ceia de Lampião.
Denomina-se
ceia a refeição da noite, a última de cada dia; a última refeição do dia, entre
o jantar e o sono noturno, ou em lugar do jantar. A Bíblia também relata uma
santa ceia, que foi a última refeição de Cristo com os apóstolos, por ocasião
da qual instituiu a eucaristia, e antes de ser preso e crucificado. Foi também
nesta ocasião que Jesus revelou que um de seus discípulos iria traí-lo.
Talvez
predestinado, intuindo o que fatalmente lhe estaria prestes a acontecer,
Lampião resolveu que nesta refeição sertaneja homenagearia os fiéis matutos e procuraria
olhar bem nos olhos daquele coiteiro tentado a fraquejar e traí-lo, apontando
covardemente à polícia alagoana comandada pelo Capitão João Bezerra onde o
bando estava escondido.
Assim
foi feito. Aproveitou que o mais famoso dos coiteiros apareceu por ali cedinho
e pediu a Mané Félix que providenciasse tudo o que precisava para a janta do
anoitecer. E por ele mesmo mandou avisar, de boca em boca, a cada coiteiro para
comparecer. E cada cabra veio até de longe atendendo ao chamado do amigo
Capitão.
Quando
o entardecer começou a tomar outra cor a carne de bode era estendida por cima
das fogueiras abertas no chão. Coiteiro chegava trazendo uma pinga, uma comida
diferente e logo se reunia aos demais. Todos, coiteiros e cangaceiros, com
semblantes alegres e festeiros, menos o Capitão Lampião.
O
Capitão tentava, a todo custo, fingir o pressentimento ruim que sentia, fazia
de tudo para não abrir logo a boca e perguntar quem havia cometido o pecado da
traição, quem havia revelado o paradeiro do seu bando. Ainda não tinha certeza
do nome, mas tinha quase certeza de quem seria capaz de tal atitude.
Mas
se conteve e procurou palavras de agradecimentos para os destemidos sertanejos,
ainda que a todo instante tivesse vontade de apontar a arma em direção a um
deles e dizer que era melhor falar a verdade para não morrer. Não fez assim, e
por isso entristecia-se ainda mais. Sabia, pois, que o seu fim estava muito
próximo, sentia isso por dentro.
Com
pedaços de bode assado passando de mão em mão, Lampião enfim pediu silêncio e
disse que infelizmente tinha algo a dizer que lhe cortava o coração. Um dentre
vocês me traiu. Um dentre vocês que se serve do bode dessa refeição me traiu.
Foi o que disse o Capitão. Todos se olharam assustados e começaram a se
perguntar quem seria capaz de fazer tal absurdo.
Mané
Félix, que estava sentado ao lado do rei dos cangaceiros, perguntou-lhe se
podia dizer quem havia feito isto. E Lampião simplesmente respondeu que não adiantaria,
pois ainda que dissesse o nome este negaria três vezes trezentas vezes. E
completou dizendo que o remorso tomaria conta do coração traidor.
E
contam que Pedro de Cândido, um dos coiteiros ali presentes, saiu de lá
chorando. Nesse mesmo dia, mais cedo, na feira de Piranhas, ele havia contado à
volante do capitão João Bezerra que Lampião e seu bando estavam refugiados no
outro lado do rio, ali na Gruta do Angico.
E
horas depois dessa última ceia, na madrugada do dia 28 de julho, a polícia
atravessou o rio e cercou o bando, matando Lampião, Maria Bonita e mais nove
cangaceiros.
Autor: Rangel Alves da Costa -
Aracaju/SE
Poeta e
cronista
e-mail:
rac3478@hotmail.com
Publicação autorizada através de e-mail de 30/06/2012
2 comentários:
Excelente! Parabéns Rangel.
Nem Lapião escapou de um traidor! Não conhecia essa parte da história do cangaço.
Postar um comentário