sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

"Aingohegei" e "Dedilhar": um encontro entre dois mundos - Dias Índios (XXVI)

Autor: Professor Wanderley Dantas
Primeira semana de aula entre o meu povo. "Vem cá. Senta aqui", disse, indicando com o dedo o novo lugar para Taliko sentar. Contudo, quando acabei de dizer essas palavras, insistindo que ele saísse lá de trás e viesse sentar mais próximo de mim, todos riram. Eu dizia o nome "Taliko" e apontava para o seu novo lugar na sala de aula. Fazia gestos com a mão, chamando-o para frente e indicando ao lado de quem ele deveria se sentar agora. Mas eles continuavam rindo. "Vem, Taliko, senta aqui ao lado da Kami", eu insistia, batendo com a palma da mão aberta sobre o banco vazio ao lado da Kami.
 
Comecei a perceber que alguma coisa constrangedora estava acontecendo. Taliko passava a mão pela cabeça várias vezes e começou a tentar me dizer que não, não viria. Toda essa situação deve ter durado uns vinte segundos apenas, mas para mim já se estendia numa eternidade de risos nervosos.
 
-Professor - finalmente socorria-me o Professor indígena que entrava para me ajudar nesses momentos, mas que até ali não se manisfestara porque também estava rindo deste caraíba engraçado - Professor, o Taliko não pode sentar aí. A Kami é esposa dele...
 
-Ah... Ele não pode sentar ao lado da esposa!?
 
-Não. Disse-me o Professor indígena. Bem, diante desse fato cultural, lá se ia minha ideia de fazer um "trabalho em grupo". Vi que não poderia simplesmente reunir os alunos uns com os outros, porque eles não sentariam perto de suas esposas por exemplo.
 
Mas havia outras questões que fui descobrindo por causa da Escola. Uma delas é que ao tentar fazer um exercício oral de "esquerda, direita, atrás, na frente", surgiu novo momento de risadas. Perguntei a um deles quem estava sentado à frente:
 
-Professor, é esse aqui. Respondeu-me, apontando para o colega da frente.
 
-Sim, mas qual o nome dele?
 
-Professor, não posso dizer. Ele é meu cunhado.
 
-Ah...!
 
Assim, a Escola sempre foi um momento mágico de aprendizado e creio que essas "gafes culturais" nos aproximaram muito uns dos outros. Aprendi a rir também com eles desse riso transcultural gostoso por causa do estranhamento com o outro. O outro é outro mundo. Um mundo rico, bonito e cheio das suas coisinhas que precisam ser descobertas para que se possa alcançar uma comunicação efetiva. Como não foi imensa minha alegria quando, ao terminar a aula um pouco mais cedo, vi que eles não saíam da escola. Disse a palavrinha de todos os dias na língua deles para o encerramento, mas meus alunos fecharam seus cadernos e ficaram ali, perto de mim e já bem mais à vontade: eles não queriam sair. Um dos alunos, Kainterri, aproximou-se e disse uma palavra que eu havia ensinado naquele dia em português: "dedilhar". E enquanto ele repetia aquela palavra, fazia o gesto de "dedilhar" os dedos sobre a minha mesa. Ele havia gostado daquela palavra. "Dedilhar". Naquele momento, descobri que realmente era uma palavra muito gostosa de se dizer e fiquei encantado com o encantamento dele com uma palavra nova do português. Aí, olhando bem nos olhos dele, disse sorrindo: "aingohegei". Também repeti várias vezes para ele a palavra "aingohegei", que era a segunda palavra que eu havia aprendido na língua (a primeira foi "saudade"). E eu e ele ficamos assim por um tempo, um dizendo ao outro essas palavras novas e significativas para nós: "dedilhar" e "aingohegei". Percebi que de maneira muito delicada estávamos fazendo um encontro entre dois mundos que desejavam muito aprender um com o outro.
 
Os outros alunos começaram também a dizer palavras na língua deles e apontavam para os objetos aos quais aquelas palavras se referiam. Naquela tarde, minha primeira semana de aula na aldeia, ficamos ali, eu e meus professores, que riam de mim esse riso gostoso que aprendi tanto a amar: o riso da graça de um caraíba tentando acertar o passo com a língua deles. Por um momento, enquanto me ensinavam as cores do mundo deles, recostei na cadeira e fechei os olhos pelos segundos suficientes para dizer em oração a Deus: "Aingohegei", que quer dizer "muito obrigado".

Autor: Professor Wanderley Dantas

http://o-seringueiro.blogspot.com.br/

Publicação autorizada pelo autor

 

2 comentários:

Maria Mineira disse...

Boa noite professor. Acompanho todas as postagens. Gosto muito de ler suas histórias. Abraço aqui da Serra da Canastra.

Wanderley Dantas disse...

Oi, querida Maria Mineira. É muito bom compartilhar contigo tudo isso. Abraços!