Primeira semana de aula entre o meu povo.
"Vem cá. Senta aqui", disse, indicando com o dedo o novo lugar para
Taliko sentar. Contudo, quando acabei de dizer essas palavras, insistindo que
ele saísse lá de trás e viesse sentar mais próximo de mim, todos riram. Eu
dizia o nome "Taliko" e apontava para o seu novo lugar na sala de
aula. Fazia gestos com a mão, chamando-o para frente e indicando ao lado de
quem ele deveria se sentar agora. Mas eles continuavam rindo. "Vem,
Taliko, senta aqui ao lado da Kami", eu insistia, batendo com a palma da
mão aberta sobre o banco vazio ao lado da Kami.
Comecei a perceber que alguma coisa
constrangedora estava acontecendo. Taliko passava a mão pela cabeça várias
vezes e começou a tentar me dizer que não, não viria. Toda essa situação deve
ter durado uns vinte segundos apenas, mas para mim já se estendia numa
eternidade de risos nervosos.
-Professor - finalmente socorria-me o
Professor indígena que entrava para me ajudar nesses momentos, mas que até ali
não se manisfestara porque também estava rindo deste caraíba engraçado -
Professor, o Taliko não pode sentar aí. A Kami é esposa dele...
-Ah... Ele não pode sentar ao lado da esposa!?
-Não. Disse-me o Professor indígena. Bem,
diante desse fato cultural, lá se ia minha ideia de fazer um "trabalho em
grupo". Vi que não poderia simplesmente reunir os alunos uns com os
outros, porque eles não sentariam perto de suas esposas por exemplo.
Mas havia outras questões que fui descobrindo por causa da Escola. Uma delas é
que ao tentar fazer um exercício oral de "esquerda, direita, atrás, na
frente", surgiu novo momento de risadas. Perguntei a um deles quem estava
sentado à frente:-Professor, é esse aqui. Respondeu-me, apontando para o colega da frente.
-Sim, mas qual o nome dele?
-Professor, não posso dizer. Ele é meu
cunhado.
-Ah...!
Assim, a Escola sempre foi um momento mágico
de aprendizado e creio que essas "gafes culturais" nos aproximaram
muito uns dos outros. Aprendi a rir também com eles desse riso transcultural
gostoso por causa do estranhamento com o outro. O outro é outro mundo. Um mundo
rico, bonito e cheio das suas coisinhas que precisam ser descobertas para que
se possa alcançar uma comunicação efetiva. Como não foi imensa minha alegria
quando, ao terminar a aula um pouco mais cedo, vi que eles não saíam da escola.
Disse a palavrinha de todos os dias na língua deles para o encerramento, mas
meus alunos fecharam seus cadernos e ficaram ali, perto de mim e já bem mais à
vontade: eles não queriam sair. Um dos alunos, Kainterri, aproximou-se e disse
uma palavra que eu havia ensinado naquele dia em português:
"dedilhar". E enquanto ele repetia aquela palavra, fazia o gesto de
"dedilhar" os dedos sobre a minha mesa. Ele havia gostado daquela
palavra. "Dedilhar". Naquele momento, descobri que realmente era uma
palavra muito gostosa de se dizer e fiquei encantado com o encantamento dele
com uma palavra nova do português. Aí, olhando bem nos olhos dele, disse
sorrindo: "aingohegei". Também repeti várias vezes para ele a palavra
"aingohegei", que era a segunda palavra que eu havia aprendido na
língua (a primeira foi "saudade"). E eu e ele ficamos assim por um
tempo, um dizendo ao outro essas palavras novas e significativas para nós:
"dedilhar" e "aingohegei". Percebi que de maneira muito
delicada estávamos fazendo um encontro entre dois mundos que desejavam muito
aprender um com o outro.
Os outros alunos começaram também a dizer
palavras na língua deles e apontavam para os objetos aos quais aquelas palavras
se referiam. Naquela tarde, minha primeira semana de aula na aldeia, ficamos
ali, eu e meus professores, que riam de mim esse riso gostoso que aprendi tanto
a amar: o riso da graça de um caraíba tentando acertar o passo com a língua
deles. Por um momento, enquanto me ensinavam as cores do mundo deles, recostei
na cadeira e fechei os olhos pelos segundos suficientes para dizer em oração a
Deus: "Aingohegei", que quer dizer "muito obrigado".
Autor: Professor Wanderley Dantas
http://o-seringueiro.blogspot.com.br/
Publicação autorizada pelo autor
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2 comentários:
Boa noite professor. Acompanho todas as postagens. Gosto muito de ler suas histórias. Abraço aqui da Serra da Canastra.
Oi, querida Maria Mineira. É muito bom compartilhar contigo tudo isso. Abraços!
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