segunda-feira, 14 de outubro de 2013

As núpcias de Ritinha

Autora: Meire Boni
 
Ritinha  perdeu a mãe muito jovem,  foi criada pelo pai e pelos irmãos maiores.  A  figura feminina mais próxima  era  a madrinha que morava na cidade vizinha que a visitava de vez em quando.  Era ela quem lhe ensinava a  lidar com os trabalhos domésticos e a bordar, mas nunca conversou com a menina sobre certos assuntos.  Achava  Ritinha  muito nova, quando fosse o tempo, teria a tal da conversa com a menina.   
Mas o destino se encarregou de interromper o aprendizado. A madrinha morreu , e Ritinha passou a viver em um mundo de homens, e era com eles passava a maior parte de seu tempo. Ajudava na lida com o gado, na roça e ainda nas tarefas domésticas.  No tempo livre era mais um dos vários moleques da fazenda.
O tempo passou e quando as primeiras chuvas da primavera  chegaram, Riitinha estava trepada nas grimpas de um pé de jabuticabas  quando percebeu que havia sangue escorrendo pelas pernas. Procurou por um ferimento, não encontrou nada. Sozinha, desceu rapidamente, e já em terra firme se examinou, e quando percebeu a origem do sangramento, abriu a boca a chorar.  Não sei se por falta de lágrimas ou por  entender  que o choro não faria o sangue parar, ela  fechou a boca e em soluços  pediu ao Divino Pai Eterno que não a deixasse morrer daquilo.  Correu para o banheiro e ficou lá emburrada.
Já desconfiado do que se tratava o emburramento da filha, o pai tratou de chamar a mulher do vizinho para acudir a menina. A mulher interveio, e conseguiu fazê-la abrir a porta e lá dentro mesmo deu uma aula rápida sobre o assunto. Ritinha de olhos inchados, apareceu na hora da janta , e  nos dias que se seguiram os irmãos notaram  seu andar um tanto estranho, mas  pensaram que se tratava de alguma sequela do acidente que a pobre sofrera no pé de jabuticaba.
Ritinha agora era uma mocinha. Mas apesar disso,  ainda mantinha semblante e atitudes de menina.
Na véspera de  completar  quinze anos seu pai lhe chamou na sala, depois do jantar.  Estava lá um homem que Ritinha já tinha visto algumas vezes na fazenda. Era José, filho de um conhecido da família.  Foi assim que Ritinha soube que seu destino já havia sido traçado pelo seu pai, muito antes dela adentrar-se naquela sala.  
Foi através de um aviso, não de uma pergunta que Ritinha  que a mão de Ritinha foi entregue: “Rita de Cássia, minha fia, este é Zé, fio do compadi Mané,  ele vei pidi sua mão, eu consenti, só falta agora acertar a data, modi o’cêis casá.”   Ela assentiu, e foi chamada a retirar-se.  Até que achou que seu pai falou muito, em seus quase quinze anos de vida, nunca ouviu o velho lhe dirigir mais que uma frase por vez.
Manteve sempre a cabeça baixa, mas antes  de sair, só deu uma olhada no tal do Zé, este  era todo sorriso.
Desde acontecimento  até o  casamento se passaram menos que trinta dias.  Zé arrumou tudo bem depressa,  a pedido do sogro: “Minha fia não teve mãe, a madrinha morreu, e aqui tem homi demais. Ela  pricisa casá logo, ou vai virá machi e fema.”
E tudo correu dentro dos conformes, tirando o fato de Ritinha ter se casado inocente de tudo.
Já casada  e instalada em sua casa cheirando a nova, Ritinha entrou para o quarto, tirou o vestido de noiva, vestiu sua camisola e se deitou. Estava muito cansada, só pensava nos presentes, queria abri-los o mais rápido possível,  mas combinou com Zé que deixariam para o dia seguinte.  Até que ela gostava dele, nas poucas vezes que se encontraram,  sempre foi muito gentil e educado. Mas estava com medo de ficar a sós com ele. “Ele me olha de um jeito...parece que tá me vendo pelada! Curuizz!”
Quando Zé entrou no quarto, ela ainda estava acordada, mas fingiu dormir. Percebeu que ele já havia tirado sua roupa de noivo, que tinha tomado banho, pois cheirava a sabonete e a pasta de dente. Ele se deitou ao seu lado e foi chegando perto.  Na medida que ele chegava, ela se afastava. De olhos fechados e ressonando de mentira, Ritinha chegou tanto para o lado que acabou por cair da cama. Fez um barulhão.  “Ritinha, meu amor, você se machucou?” Ela fingindo acordar naquele instante:  “Que nada, sonhei  e assustei!  É melhor a gente ir dormir, estou muito cansada!” Zé emburrado, resolveu ir dormir no sofá.
Três dias se seguiram, ou melhor, três noites, e nada. Toda noite, quando Zé se aproximava, Ritinha inventava uma desculpa, e ele acabava no sofá.  A paciência  se esgotou na quarta noite. Na primeira tentativa, quando Ritinha recuou, Zé esbravejou  “Ritinha, o que tá acontecendo com você? Nóis casó tem quase uma semana e ocê num deixa eu triscá nem no seu cabelo?  Eu tive paciência até hoje, mas assim num dá né? Sou um homem casado e quero o que é meu por direito!” Quando Zé parou de falar, Ritinha  abriu o berreiro.
Zé, sem saber o que fazer, ameaçou: “Tá bão, hoje num vou mais triscá n’ocê, mas se amanhã de noite num acontecê nada, vou devorvê ocê pro seu pai... Bem que a mamãe me avisou, que fia criada sem mãe num dá muié que presta! Amanhã..”  Disse isso, pegou seu travesseiro e foi dormir na sala de novo.
No outro dia, quando Ritinha se levantou,  Zé já havia saído. Ficou em casa amanhã inteira pensando em uma saída.  Sabia que o pai não a aceitaria de volta, teria que dar um jeito naquela situação. Mas o que deveria fazer? Tinha uma ideia muito vaga sobre a coisa, nunca teve uma amiga, com quem conversasse. “Não sou chucra, tenho educação. Estudei, sei lê e escrevê. Sempre cozinhei e até sei bordá e costurá.  Como a sogra falou isso de mim? Que  eu num presto porque num tive mãe? Eu presto sim! Veia iscumungada, eu presto mais que ela!  O que Zé quer  fazer comigo é feio e eu acho mei nojento! Será que todo mundo que é casado faz isso? Meu pai fez com a minha mãe?”  
Como sempre fazia em momentos de desespero, Ritinha se pôs a rezar e a pedir ajuda a todos os santos que sabia o nome. Criou coragem e tomou uma decisão.
Quando Zé chegou, ela já o esperava no quarto.  Antes que ele  fizesse alguma coisa, ela mandou que se sentasse. Ele se sentou, e ela falou: “Zé, você tá certo, eu não deveria ter feito isso! Sei que te devo e vou pagar.  Pensei que ocê num fosse cobrá, mas já que cobrô. Mas antes, quero que ocê me responda uma coisa.” Zé,olhou para Ritinha que se mantinha de pé, com as mãos na cintura: “Pode falar, Ritinha!” E ela soltou: “Oiá Zé, o’cê sabe que num tive mãe, que num tive ninguém pra me ensiná  essas coisas, intão como eu vou sabê fazê...  Mas é verdade que todo mundo que é casado faz isso?”
“É verdade Ritinha”
“Até sua mãe e seu pai?”
Zé engoliu seco “É, eu acho que eles ainda faz!”
“O’cê vai tê paciência de me ensiná?
“Mas é claro, eu amo o’cê!”
“Num tem outro jeito, tem?”
Ele balançou a cabeça negativamente. E ela acrescentou:
“Então hoje,quando ocê vié  num vou chegá pra lá!”
No outro dia, Zé chegou mais tarde no trabalho, e quem passasse lá por perto notaria que toda a roupa de cama recém lavada, secava no varal.
Tempo depois quando Zé foi visitar sua mãe:
“E sua muié, Zé, tá aprendendo a ser muié casada?”
“Tá sim, mãe! O que ela num sabe, eu ensino. E num é que ela aprende direitinho, tem umas coisa que já ta fazendo mió do que eu ensinei!”




Autora: Meire Boni - Bela Vista de Goiás/GO

 

Publicação autorizada pela autora

2 comentários:

Helena Frenzel disse...

Esse texto me deu uma saudade da inocência da roça e de outros tempos, um tempo em que não havia 'enternete' para 'desvirtuar'. Bela narrativa, Meire, parabéns.

Maria Mineira disse...

Esse é um dos seus contos que eu mais gosto! Parabéns, amiga! Um abraço.