quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Um tijolo quebrado

Autor: Alice Gomes

...porque um tijolo inteiro não se pode juntar a um quebrado...

- Cada louco com a sua mania – resignou-se o amigo, diante da resoluta decisão daquele herdeiro maluco. – Andar por estas estradas poeirentas e vasculhar cada centímetro destes casebres, à procura de sabe-se lá o quê, só para fazer a tua vontade, ainda vá lá, mas morar aqui, contigo? Nem pensar! Fica aí, com as tuas ruínas, que tanto te encantam, que eu volto hoje mesmo para casa. Isto não é lugar de gente viver. Meus pés ainda tem muito chão novo para pisar e fazer história.
- Pois eu gosto de pisar no que já foi, bem o sabes. – Respondeu o jovem e determinado milionário. - Não nasci para o que ainda é. Porque todo chão batido contém a vida dos pés que o pisaram e eu, pisando-o, continuo-a, por eles. Porque toda ruína tem história e eu que não tenho nenhuma, tenho-a toda.  Sinto que encontrei o lugar que tanto tenho procurado e é aqui que eu quero viver.
Despediram-se, e a última lembrança que o amigo levou de si, foi o aceno avermelhado de sol poente e pó, enquanto deixava para trás aquele amontoado de escombros, de um lugar que um dia poderia até ter sido uma cidadezinha razoável, mas que naquele momento não comportava mais que uns gatos pingados de almas, em pleno sertão pernambucano. Estava cansado das inúteis tentativas de fazer do amigo um companheiro de viagens normais, onde visitassem praias, montanhas, bons hotéis, ao invés de acompanhá-lo em peregrinações bizarras por locais inóspitos e a se misturarem com gente pobre e suja. Sentiu certa pena de perder o patrocinador de suas aventuras, mas não aguentava mais sufocar a própria personalidade, para embarcar na busca incessante do elo perdido daquela mente desajustada.
O jovem Plínio Moreira de Castro, proprietário de boa parte da fortuna de uma tradicional família sulista, há muito deixara de se importar com os negócios do pai, não porque fosse perdulário, mas por pura inaptidão empresarial. Desde muito moço pôs-se a viajar, a fim de conhecer outros lugares e outras culturas, sobretudo os sítios arqueológicos, sua grande paixão. Numa dessas viagens conhecera o amigo que, percebendo seu desprendimento e generosidade, logo o convencera a financiar sua preciosa companhia. Depois de correrem o mundo acabaram por regressar ao Brasil para, desta vez, se embrenharem pelos sertões, de norte a sul. Gostava de pesquisar, (e aí o tédio do amigo), a vida dos sertanistas, da gente pobre, sofrida, de vilarejos abandonados. Era nítido o fascínio que lhe exerciam as casas vazias de paredes semidestruídas. E tijolos quebrados.
Quando chegara a Brejo Santo, dias antes, sentira-se rasgar por dentro, ao deparar-se com aquele cenário de destruição e abandono, que, de maneira tosca, lembrava-lhe a emoção das primeiras ruínas que, um dia menino, viu, alhures, sendo a única diferença que estas eram ruínas de pobres inda vivos, e aquelas de nobres de outros séculos. Mas o que foi é sempre o mesmo. Não se sabe por qual obra do destino, viera aquele restolho de cidade, aquela carcaça concreta de bicho feito e desfeito pelo homem, aquela morte respirando vida, emaranhar-se em seu desassossego e aquietar-lhe a alma. A empatia com a família que lhe dera abrigo foi imediata. Sentiu-se acolhido, como nunca antes na vida. E a necessidade de estar ali, ao lado daqueles sobreviventes, e ouvir as suas histórias, foi de tal modo impactante, que simplesmente resolveu fincar raízes.
O velho Jeremias, dono do casebre que lhes serviria de pousada, assim que avisado da presença de dois visitantes, aparecera à porta, limpando as mãos na velha calça de brim surrado e oferecera-lhes mãos, coração e sorriso, numa calorosa recepção, como só os verdadeiramente humildes a sabem fazer. Enquanto D. Jurema, a mulher, preparava a pouca comida de que dispunha, Jeremias convidava-os a sentar-se nas cadeiras do alpendre, a fim de “apreciá o dia” e tomar um tira-gosto. Foi o amigo, desinteressado da conversa, quem lhe sussurrara sobre a menina que os espiava, da portinhola de um dos quartos.
A menina era Clarinda que, a princípio, enrabichara olhos para o amigo, mas logo depois, percebendo o desprezo no olhar de volta, abaixara o seu, na direção dos próprios pés descalços e sujos. Pouco a pouco, Plínio, que nem era assim tão vistoso quanto o amigo, foi ganhando a sua simpatia e admiração. Durante toda a semana revezava com o pai o papel de anfitriã do vilarejo:
- Ali, o senhor vê que tinha o ... mais pra cima o ... e logo adiante a ... que era onde o pai e a mãe se reunia com os ... Era tudo novinho e ... mas daí o pessoal foi indo, indo, e no fim, só restou umas  poca família, porque nem pra ir embora nóis num tem dinheiro. -  E apontava com o dedo para lá e para cá, na direção das residências, das casas de comércio, do posto de gasolina, da igrejinha, do casarão do proprietário da fábrica de caroá (única fonte de renda nos bons tempos dos que povoaram aquele lugar), da escolinha... E tudo, absolutamente tudo, abandonado, devastado pelo tornado da miséria.
Após a partida do amigo, Plínio pediu a Jeremias que o deixasse ficar ali, por uns tempos. Claro que ele pagaria bem pela hospedagem, até mandaria construir um cômodo a mais para ele, a fim de não interferir na intimidade da família.
Jeremias e a mulher confabularam por alguns minutos e, com os olhos brilhando de antecipada fome saciada, concordaram.
Meses de intensa emoção e paz interior ali viveu Plínio, ao lado daquela gente simples e hospitaleira. Cumpriu o prometido do cômodo construído, além de outras benfeitorias, para a comodidade de D. Jurema, como a instalação de luz elétrica, encanamento de água que mandou trazer de um riozinho próximo, comprou alguns eletrodomésticos que fizeram brilhar os olhos das duas mulheres e a sobrancelha levemente erguida do velho Jeremias. Poderia ter feito muito mais, que aquilo tudo para ele nada custava, porém, se mais fizesse, já não seria o lugar que era e já que os donos da casa estavam satisfeitos, deixasse-se assim. Somente uma coisa ele se negou, e até rispidamente, a fazer: do lado de dentro tudo o que quisessem, do lado de fora nada.  Não se calçaria o chão e não se roçaria o mato. Quem haveria de contrariar aquele homem que surgira do nada, para transformar de forma tão surpreendente aquela família? Jeremias mataria o infeliz que tentasse! Ainda mais quando Plínio o presenteou com o cavalo mais lindo que seus olhos já viram! Ia e voltava e ia e voltava, até Santo Antão, distante alguns quilômetros, por puro gosto de sentir o vento quente no rosto. – Sim, sinhô. Já tô ciente di num falá di nóis pá ninguém daquelas banda, pode ficá sussegado. Igual sorte tiveram os moradores das outras três casas vizinhas, com a condição de nada comentarem com estranhos. A coisa foi feita de modo que quem passasse por aquelas bandas jamais imaginaria que aquela gente vivia feliz num lugar de tão desoladora aparência.
Coube à D. Jurema manter o interior da igrejinha sempre limpo, a fim de se reunirem todos os domingos, onde ela, filha e vizinhos ali oravam e entoavam louvores por horas, enquanto Plínio e Jeremias jogavam, sossegados, o seu carteado.
Clarinda não se cabia de contente. Ajudava a mãe nas tarefas domésticas, sempre a cantar. Limpava mais de uma vez por dia o piso que deixava brilhando, lavava e passava cuidadosamente as poucas roupas do hóspede ilustre, caprichava nos pratos que rapidamente percebeu serem os seus preferidos. E Plínio a ensinou a ler, com os livros que lhe presenteava e que pacientemente a orientava nas palavras mais difíceis. Deu-lhe um mundo novo. E ela lhe deu o seu amor.
O casamento foi consequência natural da proximidade e juventude de ambos. Apesar de certa resistência aos trâmites religiosos, Plínio fez a vontade de sogra e noiva, comprando-lhe um simples e belo vestido branco. Importou um padre da cidade vizinha e consumou-se a união. Conforme o tempo foi passando e Clarinda, espertamente, obtendo numa conversa ou outra, informações sobre a vida pregressa do marido, pôde avaliar o tamanho de sua fortuna, assanhou-se com a perspectiva de poder usufruir dela para todas aquelas coisas que se sabe poder usufruir quando se tem dinheiro. Para isso, primeiro era preciso sair dali. Começou a sugerir, nas mais variadas situações e lugares, que gostaria de conhecer a família do marido, a cidade onde ele nascera, conhecer o Rio de Janeiro, visitar as ruínas da Grécia, etc. Com a ingenuidade de quem já pensa saber persuadir, azucrinava os ouvidos do marido, a princípio discretamente e depois a todo instante.
 ..................... Acontece que Plínio era feliz ali e não o saberia ser em outro lugar no mundo, por mais que a amasse. Reconhecia, porém, que ele escolhera viver ali, depois de ter conhecido tudo da vida, mas ela não. Ela jamais conhecera outro pedaço de chão que não fosse aquele. E assim, aos poucos, sentiu as águas límpidas daquele amor se turvando, inexoravelmente. Não que não fossem felizes, mas a crescente insatisfação tomava conta daquela que já se transformara numa bela e desejável mulher. Já não lhe bastava ser feliz, era preciso viver.
Uma noite, após uma das frequentes discussões por futilidades quaisquer, Plínio, carinhosamente, tomou as mãos de Clarinda e lhe fez uma surpreendente proposta: ele compraria para ela uma casa na capital, ou onde ela quisesse, e lhe daria uma boa mesada, para que ela vivesse como bem entendesse. Aos pais também, caso quisessem acompanhá-la. Ele ficaria ali, esperando. Um tanto incrédula, mas diante de tal sinceridade concordou, pensando, talvez, que indo na frente ele mais tarde a seguisse. Jeremias, porém, apressou-se em dizer que do seu chão só no caixão sairia. Jurema (Plínio sentiu pena) dividida entre seguir a filha e apoiar a decisão do marido. Ficou.
- Após a separação, Clarinda foi viver na capital. Com a generosa quantia que lhe caía na conta todos os meses comprou roupas de boas grifes, viajou por todas as cidades cuja beleza ouvia dizer e até algumas que o próprio marido lhe recomendava, por ter gostado de lá estar. De onde estivesse mandava-lhe cartas, com cartões postais e fotos suas, onde lhe dizia de sua eterna gratidão por tanta felicidade, mas também da frustração de não ter a companhia do seu amor ao seu lado. Plínio, sem esboçar nenhuma reação, apenas sacudia as cartas nas mãos, para dar a notícia aos sogros.  Jeremias e Jurema encantavam-se com os cartões e fotografias, sem acreditar que pudesse haver tanta beleza no mundo e sentavam-se, solenemente, à frente do genro, após o jantar, para ouvirem a leitura das cartas.
Os anos passaram ligeiros, como tudo o que é efêmero, exceto para Plínio, que parece ter parado no tempo. E ainda hoje se pode vê-lo, sentado todas as tardes à frente da casa, a admirar o avermelhado pôr-do-sol, tomando o seu caldo de cana, ao lado dos sogros, cada um em sua cadeira de balanço, tecidas e entrelaçadas pelo velho caroá, a ouvirem e falarem de fatos e sentimentos idos. Vez ou outra ainda percorre devagar as ruas empoeiradas do vilarejo, e ainda passa horas no interior das casas vazias, deslizando os dedos por suas paredes quebradas, numa estranha e completa comunhão com, aos olhos de outros, meros escombros. Vez ou outra enxuga uma saudade de sua amada distante. E os velhos lhe contam coisas dela, deles, de outros tantos que por ali passaram, das passagens do bando de Virgulino... Quando, às vezes, lhe assuntam se ainda está certo de esperar por Clarinda, ele serenamente responde:
- Ela voltará. Quando a juventude lhe for passado, quando de tudo o que viver não puder reter entre os dedos, quando deixar cada pedacinho de sua vida em um canto diferente e não puder juntá-los (porque não teceram história) .... ela voltará. Hoje ela ainda é tijolo inteiro e não há como juntar tijolo inteiro com um quebrado. Já disse que não nasci para o que é. Somente quando ela deixar de ser o que ainda é, é que será verdadeiramente minha, e vocês talvez não a vejam com os seus olhos, mas a verão com os meus.
Os olhos maravilhados de quem ouve cada palavra sem entender nenhuma, mareiam-se diante da voz tranquila do estranho benfeitor. O verdadeiro matuto não entende quase nada de metáforas, mas reconhece a segurança de um prato de comida quentinha, todos os dias, até o fim da vida.
As noites chegam de mansinho e as estrelas brilham por sobre o chão batido e por sobre as ruínas. E tudo é história, porque tudo é vida. 

Autora: Alice Gomes - Porto Velho/RO


Página da autora:


4 comentários:

Maria Mineira disse...

O que dizer desse texto? Ao ler percebi que tem alma e coração em cada palavra, em cada frase. É daqueles que o leitor não vê nada em sua volta quando começa a ler, pois, fica hipnotizado pela criatividade do autor ou autora. Meus parabéns!

Anônimo disse...

Um personagem muito interessante, num cenário que nos transporta. O resto é por conta da imaginação que o autor ou autora tão bem soube instigar. Parabéns. Marina Alves.

Helena Frenzel disse...

Nossa, muito criativo e escrito com esmero, várias frases se poderia sublinhar. Um candidato fortíssimo a vencedor, parabéns! P.S.: gostei também da abordagem, a proposta de ver a riqueza no interior das ruínas, ao invés de investir no 'superficial' é muito boa. Saudações letripulistas, parabéns mais uma vez! ;-)

Anônimo disse...

Li todos os textos e poesias e minha alma foi longe. Alice Gomes voce é uma grande escritora e poetisa.Conceição Gomes.