sábado, 12 de setembro de 2015

Um amor de família

Alice Gomes

O senhor precisa se acalmar, moço.  Há partos que são assim mesmo, mais demorados que outros, mas vai dar tudo certo. Tenha fé.
— Fé eu tenho, dona, mas é que é meu filho, entende? Meu primeiro filho! E é a minha amada quem está lá dentro sofrendo e desta vez não posso fazer nada para ajudá-la. Este sentimento de impotência já o tive e é por demais sofrido uma outra vez.  Se ao menos parasse de chover!
— Sim, esta chuva parece nunca mais terminar, mas nesta época do ano é assim mesmo. Não se preocupe, a casa é resistente e há muitas velas lá dentro. Aí na janela é que não é um lugar seguro, venha sentar-se, vamos conversar um pouco.
— Sabe, esta chuva assim, intensa, sinistra, traz-me de volta um jorro de lembranças terríveis daquele dia em que ela e eu e sentimos todo o peso do céu desabando sobre as nossas cabeças e eu fico me perguntando quais desgraças mandará desta vez para feri-la?
— Então não pense na chuva. Pense em algum momento feliz em que tenham vivido os dois. Eu aposto que nesse dia fazia sol...
— Sim, um lindo dia de sol, aquele em que a vi pela primeira vez e ela estava feliz. A imagem dos seus cabelos dourados e olhos azuis brilhantes me transportam para uma outra realidade. A realidade onde ela não era minha, mas ainda era feliz, e eu era feliz por que nem sabia que a teria, mas, que à distância, inconscientemente, já a amava. Daqueles amores que nada pedem porque nem se sabem ainda amores. Sim, ela era feliz.  E naquele tempo em que ainda não havíamos nós, ela era feliz com ele...
— Sinto que o senhor está precisando pôr para fora toda essa angústia. Que tal me contar a sua história? Assim passamos o tempo, já que teremos mesmo de esperar.
— Para lhe contar a nossa história tenho que começar pela história deles e de como cruzaram o meu caminho, ou eu o deles...
— Bom homem era o Sr. Nicolau. Íntegro, trabalhador, bom esposo e pai amoroso. E jovem. A vida toda pela frente.  E ela, bem, ela tinha nome de flor, o que mais posso dizer? Os dois, jovens, imigraram pela promessa de terras fartas e futuro glorioso, vindos de um país devastado por guerras intermináveis. O trabalho duro, sol a sol, não tirava deles a esperança, em nenhum momento, de viverem o seu sonho de mundo novo. Viviam a tranquilidade dos que têm família e braços fortes e filhos sadios.
Eu, um reles negro, molambo, filho de ex-escravos recém libertados por um pedaço de papel que só lhes permitiu  a liberdade de irem morrer por malária num beco qualquer, sem trabalho, sem casa, sem dignidade. Enfim, eram os novos tempos. Saíram os escravos, entraram os imigrantes, e todos se arranjavam como podiam. Alguns com terras, outros com pés em terras alheias. E foi neste cansaço de pisar tanto chão que eu cheguei até ali. A princípio um banho, um prato de comida, algum serviço que lhes pagasse o favor, um cantinho para passar a noite. - Jamais, em toda a minha vida, provara de comida tão boa! -  “Mãos de fada tem esta mulher”, pensava, enquanto ela se retirava com as suas duas crianças e ele me observava em silêncio. Ao final da farta refeição, levantei-me, preparado para qualquer tipo de pagamento físico. Nada cobrou, ainda que eu insistisse e, para minha surpresa, ofereceu-me trabalho. Seria a primeira colheita e eu fui um enviado de Deus, segundo suas palavras. Palavras que eu nem sei dizer como as entendi, pois a sua língua era muito estranha para mim. Praticamente por gestos e à muito custo, me disse que estava desesperado por não ter sobrado ninguém para lhe ajudar e a proposta que me fez pareceu justa para ambos. Ele teria, enfim, braços tão fortes quanto os seus e eu teria comida e um canto só meu para dormir. Terminando a colheita viria um brinde. Nem lhe perguntei o valor, negócio fechado.  Assim passamos alguns meses, eles na casa e eu na tulha, no primeiro colchão decente da minha vida. Durante os dias, enquanto trabalhávamos, ouvia as histórias de sua terra natal, das quais eu pouco compreendia, mas que ele as contava assim mesmo, quase um monólogo. Canções, muitas, momentos em que soltava a voz afinada a plenos pulmões, quase catarse. E eu gostava tanto de ouvi-las que nem percebia o couro despregando-se dos meus dedos e indo-se grudar nos galhos dos pés de café. Jamais consegui assimilar sua técnica para fazer aquilo sem sangrar. Às noites, ela mergulhava as minhas mãos numa bacia de água escaldante para me aliviar as dores, enquanto preparava os seus pratos impressionantemente bem temperados. Após o jantar eu os via brincando com as crianças no alpendre até que adormecessem. E dormíamos todos em paz. Ao menos eu pensava que sim...
Vez ou outra Nicolau, já meu amigo, ia à cidade e sempre que ia trazia alguns temperos que a deixavam e a mim muito felizes e, por causa deste detalhe, comecei a sentir algo estranho acontecendo, pois suas idas à cidade tornaram-se cada vez mais raras. A comida já não era tão boa, pela falta dos seus temperos preferidos, por mais que ela se esforçasse. Um dia, quando ele teve mesmo que ir, me pediu que cuidasse de tudo enquanto estivesse ausente, olhando na direção dela e dos filhos, me fazendo claramente entender que a sua preocupação era não deixá-los sozinhos. Não os deixaria nem que não pedisse. Era, de certo modo, a minha família também, como um cão que, por instinto, protege, sem que nenhuma ordem precise ser dada. Na volta, a cabeça baixa, semblante carregado, olhar aflito.  Sobre a causa não disse, mas era evidente que alguma coisa não corria bem. A princípio pensei que fosse a gravidez, terceira e num momento inoportuno, mas não era, já que o carinho que um tinha pelo outro parecia inabalável. Passei a perceber as portas e janelas trancadas com ferrolhos, uma estranha faca na cintura, um pedaço de pau sempre por perto, troca de olhares entre eles sempre que saíamos para a lida, as canções rareando, ouvidos sempre alertas. Até que um dia, ao invés de ir à cidade, me pediu que eu fosse em seu lugar. E, nesse dia, no armazém, eu soube das ameaças que um fazendeiro vizinho vinha lhe fazendo, caso Nicolau não lhe vendesse as suas terras para anexá-las às dele. E, nesse dia, eu temi pela vida daquela família. E, nesse dia, chovia.
Estava distante da casa várias léguas e o cavalo não conseguia atravessar, com a velocidade que a urgência requeria, o lamaçal que se formava na estrada de terra batida. A noite caindo e sob um temporal medonho a premonição de uma tragédia. Ainda faltando um bom trecho, já noite fechada, meu cavalo sucumbiu e tive que completar a minha corrida a pé, por entre o cafezal, iluminado apenas pelos relâmpagos.  Estaquei a poucos metros da casa, aterrorizado com a cena que via: meu amigo Nicolau, caído no alpendre, sendo espancado até a morte por cinco jagunços mascarados, armados cada um com grosso pedaço de madeira. Um relâmpago mais forte iluminou, cravando para sempre na minha memória, a imagem de um deles chutando a porta, na intenção de arrombá-la e, lá de dentro, gritos aterrorizantes das duas crianças. Sem pensar na desproporção da força daqueles homens corri para salvá-las e consegui acertar um chute potente nas costas do que estava à porta, que o derrubou, desacordado. Os outros assustaram-se, talvez supondo que houvesse mais gente comigo, e sumiram no cafezal.  E eu fiquei ali, ajoelhado no chão, tentando desesperadamente encontrar um fio de vida nos olhos abertos e estagnados do meu amigo.  Era tarde demais. Com medo de que os jagunços voltassem e com um medo ainda maior que ela e as crianças o vissem daquela maneira, arrastei-o rapidamente para dentro da tulha e o deitei no meu colchão. Atrás de nós um rio de lama e sangue. Quando voltei, o jagunço que eu derrubara também já havia desaparecido.
Bati na porta e gritei seu nome, mas ela não abriu. As crianças, entre choros e gritos, tentavam me dizer alguma coisa que eu não compreendia. Então, sem alternativa, arrombei a porta e entrei.
Outra vez, atônito com o que via, roguei aos céus que não a perdesse também. Ela, caída no chão, se contorcendo, sangrando, em completo estado de histeria, e eu sem saber onde estava ferida, sem saber se a amparava, sem saber o que dizer, o que fazer. Como as crianças não paravam de chorar, abracei-as com força e assim ficamos por uns instantes, todos olhando para ela e foi aí que percebi a causa das contorções e do sangramento. Eram as contrações do parto, que se antecipava, devido às fortes emoções. Eu não tinha ideia do que fazer mas sabia que a primeira providência seria deitá-la numa cama. Coloquei as crianças de volta no chão e quando tentei pegá-la no colo para levá-la ao quarto, na esperança de que ela me instruísse no que fazer, olhou-me com terror, sem ter ainda me reconhecido. Estava a um passo de desfalecer e eu não podia permitir que acontecesse, pois seria o fim. Ela precisaria estar consciente naquele momento, mais do que nunca. Então, com uma das mãos, imobilizei os seus braços e com a outra segurei firmemente o seu rosto assustado e frágil e a obriguei a me olhar nos olhos, gritando-lhe quem eu era e o que estava acontecendo. Finalmente aquietou-se e pudemos nos concentrar no que teríamos de fazer. E foi assim, naquela noite medonha, que parimos a sua terceira filha. Deixei-as se recuperando, trouxe os colchões das crianças para perto da cama e velei os seus sonos até amanhecer.  
Todas as providências para o enterro e os cuidados com ela e o bebê só foram possíveis pelos curiosos que consegui trazer do povoado. Junto com eles vieram o delegado e o vizinho fazendeiro, o primeiro para tomar depoimentos e em seguida a constatação de autoria desconhecida do crime, o segundo para prestar solidariedade. Evidentemente que a solidariedade foi a oferta de compra da sua terra, por quase dez vezes menos do que valia. E junto o conselho para que ela tentasse refazer a sua vida, longe das más lembranças.  Foi o que fizemos. Ela, por absoluta falta de alternativa, eu, pela absoluta convicção de que jamais a abandonaria.
Uma família composta por um negro semianalfabeto em dois idiomas, uma linda e entristecida mulher, e três crianças famintas foi o que restou depois do último tostão. Tentei emprego em todas as fazendas da região, tentei lustrar botas de branco endinheirado, furei poços, limpei privadas, fiz o diabo, mas dinheiro quase nada. E muitas, muitas fuças partidas de quem ousasse tocar num só fio de cabelo daquela mulher. Não que houvesse sentimento de posse, pois nem sequer vivíamos como marido e mulher. Não havia qualquer intimidade física entre nós. O que havia era a fidelidade à memória de um grande amigo, que um dia me igualara a um anjo enviado por Deus, além do amor incondicional e silencioso por ela e por aquelas crianças que passaram a ser também as minhas filhas. Enquanto eu me ardia em busca de trabalho ela arregaçava as mangas, literalmente, oferecendo-se para ajudar na cozinha do albergue que nos acolhera. A sua fama de excelente cozinheira espalhou-se rapidamente e em pouco tempo já preparava marmitas para todos os peões da redondeza. Com muito trabalho e muita economia ela conseguiu alugar um espaço, ao lado de uma venda de beira de estrada e assim pôde trabalhar por conta própria. Em razão da sua dedicação em tempo integral ao pequeno restaurante, achamos por bem que eu me encarregasse de cuidar da casa e das crianças. E, pouco a pouco, ela foi-me ensinando os seus segredos de culinária e eu fui-lhe ensinando os segredos do carinho de mesas postas e banhos preparados.  – Olhe, dona, não vou lhe contar as nossas intimidades, só lhe posso dizer que a noite em que ela me permitiu tocar-lhe cabelos e mãos e braços e boca, foi a noite mais linda da minha vida. A primeira de muitas e que culminou neste serzinho que agora vem ao mundo. Fruto deste amor feito de respeito, de proteção, de doação mútua, de muito sofrimento e muita superação. E sempre juntos, em todos os momentos. É por isso que eu não posso imaginar a minha vida sem ela. É por isso que eu não concebo a ideia de que ela esteja lá dentro, sofrendo, e eu aqui fora, sem poder fazer nada. É por isso que eu não aceito de Deus que Ele mande este maldito temporal justamente hoje, para fazê-la recordar o seu outro parto. Entende agora a minha angústia?
— Sim, eu entendo. O que eu não entendo é como o senhor está falando há horas e ainda não percebeu que a chuva passou faz tempo. Olhe ali pela janela, veja quantas estrelas no céu!
— Puxa! É verdade! Eu não tinha reparado que Ele também me ouvia. E, agora, para a minha completa felicidade sabe o que falta?
— Claro que sei! Não seria esse chorinho de bebê que estamos ouvindo lá de dentro?

Autora: Alice Gomes
Porto Velho/RO

3 comentários:

Anônimo disse...

Excelente texto. Perfeitamente dentro dos parâmetros do concurso. Parabéns a quem o produziu.


Alberto Vasconcelos

Marina Alves disse...

Um conto instigante, reunindo todos os ingredientes pertinentes a uma boa leitura. Ótimo! Parabéns ao autor.

GERALDINHO DO ENGENHO disse...

Um primor de conto me pendeu da primeira a ultima paLavra aplausos ao autor ou autora//