Autor: Dilemar Costa Santos (Vô Dila)
Morávamos num sítio, chamado “sossego’”.
Sendo o mais velho dentre os filhos homens, cabiam-me as tarefas mais
puxadas.
Eu não reclamava, quando eram para ser desempenhadas no campo. Sentia-me
bem, em contato com a natureza.
Aprendi a me alimentar com frutos silvestres, que permitiam eu percorrer
longas distâncias; bebia água de gravatá, e outras coisas que a
cerrada caatinga oferece.
Sentia-me bem! Conhecia todos os animais que habitavam a região.
Olhávamos-nos com desconfiança, e quando nos víamos muitas vezes, até
despontava certa intimidade.
Nosso sítio era pequeno. Por isso, só três vaquinhas povoavam a
propriedade. Não podia ser mais porque nosso campo não oferecia alimentação
bastante.
Nossa família era pródiga: Doze filhos, Pai, Mãe, Avó, duas Irmãs de
criação, e uma Empregada doméstica, que também era nossa família, sem nenhum
preconceito.
As vaquinhas eram conduzidas por nós, crianças, até o curral, para tirar
o leite, apartar os bezerros. Eram muito mansas.
Os bezerros atendiam ao chamado, pelo nome que nós colocávamos, desde
quando nasciam.
Assim, havia uma estima enorme pelos animais.
Ora, o bezerro crescia, e a vaca ficava velha. Assim, nem um, nem a
outra, podiam permanecer no nosso sítio, porque significava excesso de
ocupação.
Nós crianças, não entendíamos dessas razões, e quando ia ocorrer o
desbastamento do rebanho, ocorria também uma torrencial chuva de lágrimas, com
lamentos que se podia ouvir de longe.
Por outro lado, tão humanizados ficavam esses animais, que nenhum
vaqueiro, montando cavalo, se atrevia a chegar perto deles.
Tornavam-se umas feras, e chifravam os que se atrevessem a insistir
chegar perto.
No momento dessas fúrias, eu era o infeliz remédio. Digo infeliz, porque
ia conduzi-los, aos prantos, sabendo que muitas vezes marchavam para o abate.
Meu touro Cara-preta, chegou ao ponto de ser vendido, e não havia
alternativa; nem Papai admitia ser contestado.
Numa tarde, chegou um açougueiro montado a cavalo. Papai o recebeu, e
indicou onde estava o touro Cara-preta. Isso significava que ele fora vendido.
O Cara-preta estava calmamente pastando. Ao pressentir a presença do
estranho, levantou a cabeça, juntamente com os outros do rebanho, entortou-se
todo, começou a fungar, e cavar com as patas dianteiras. Baixou o cangote, e
partiu que nem um raio pra cima. Ireno desistiu de levá-lo naquele momento.
Mais tarde voltou com outro companheiro. Então os dois, em
grande vantagem para com meu valente bichinho, jogaram laços, dominaram-no e
amarraram uma corda prendendo os chifres a uma das mãos; colocaram uma careta –
um artifício que deixa o animal sem enxergar para frente -. Quando terminaram a
empreitada já era noite, e não seria possível levar Cara-preta. Então o
deixaram junto aos demais do rebanho, para que ele se acalmasse, e no dia
seguinte virem buscá-lo.
Eu trazia os olhos inchados de chorar, e fiquei grande parte da noite
escondido nas proximidades da casa, acariciando meu bichinho, que também
parecia chorar comigo, porque seus olhos gotejavam e escorria pela cara,
enquanto das ventas, saia uma espessa baba.
Mais Tarde, entrei pela porta da cozinha, e fechei-a com a tramela, indo
direto para o quarto. Depois, ouviu-se um grande ruído vindo da cozinha.
Acenderam os lampiões e fomos cautelosos verificar o que estava acontecendo.
Chegando, com toda a cautela, vimos que lá estava o Cara-preta deitado em meio
do cômodo.
Foi um verdadeiro alvoroço, e ninguém mais dormiu. Nós
crianças, desatamos na choradeira. Eram cinco horas da manhã, do dia
seguinte,quando Papai me acordou, e disse:
– Filho, compreenda, eu também sinto pelo seu Touro; mas não podemos
ficar com ele, nem com as outras crias que já estão grandes, porque os pastos
não comportam.
Pegue uma faca, corte essa corda que o imobiliza parcialmente, e
conduza-o para fora da casa.
Assim fiz, e não tomei meu desjejum. Embrenhei-me na caatinga, fui me
acalentar com meus amigos bichinhos, meus pássaros, companheiros diários, dos
quais tanto gostava.
À tardinha, acabrunhado, fiquei sentado em baixo da pinheira.
Um pássaro, nunca visto por mim, movimentou-se calmamente de um galho
para o outro.
Como posso descrevê-lo? Creio não saber dizer, tanto quanto vi.
Eu conhecia todas as espécies de pássaros que povoavam nossa região.
Pássaros, e aves! Imitava quase todos eles, com perfeição; a tal ponto que os
trazia para perto de mim, quase podendo tocá-los. Mas, aquela coisa divina, que
estava à minha frente, manso, induzindo a que eu o tocasse, eu nunca tinha
visto. Não havia nada semelhante!
Da cauda, pendiam penas longas, que se assemelhavam a um ramo, coberto
com arminho, cor azul-profundo; no corpo, a plumagem era matizada, de extremo
fulgor.
Fiquei embevecido! Imaginei que era encantado, mandingueiro,
como aqueles que povoavam as estórias contadas por minha Avó.
Pensei que ele estava ali para me libertar de todos os males, e que
então eu deveria segui-lo, por onde quer que fosse.
Naquele momento me senti o Rei dos meninos. O Poderoso! Tornaria-me invisível
no momento que quisesse. Poderia voar como ele. Mas, para tanto – pensava eu-,
era preciso tocá-lo. Ele Parecia me convidar a que fizesse isso. Continuava,
saltando, de um galho para o outro, no mesmo arbusto.
Concentrei o pensamento, chamei as forças invisíveis, e levei a mão.
Ele, como que sorrindo para mim, iniciou uma brincadeira, que durou todo o
restante do dia:
- Deixava quase tocá-lo, e pulava para o próximo galho. Foi assim por
toda à tarde.
Os tempos se passaram, e ainda me recordo com tanta clareza esse
episódio da minha infância.
Com a vivência, faço um pouco de associação, entre o Pássaro, e meu boi
Cara-preta:
- É que, naquele único dia, única vez, que eu vi aquele Pássaro e amei
tanto, naquele mesmo dia, uma terça-feira, meu Cara-preta foi abatido e nunca
mais haveria de vê-lo, e com ele brincar de amizade.
4 comentários:
Lindo! Que dizer mais sobre o texto: Emocionante! Deu-me uma tristeza só consolada pelo amor que sinto pelos meus animais.
Que triste história... eu jamais poderia viver em uma fazenda de gado. Morreria de tristeza...
Um conto muito lindo, Vô. Senti uma aperto no coração, pois passei por momentos parecidos. Acho que toda criança de roça sofre essas tristezas. Me emocionei quando li no Recanto e aqui novamente. Abraço de sua neta Lia.
Muito triste toda história que envolve a separação de uma criança e um animal querido. Sempre me emociono quando me deparo com alguma. A história me cativou. Parabéns. Marina Alves.
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