terça-feira, 9 de julho de 2013

Meu boi da cara preta

Autor: Dilemar Costa Santos (Vô Dila)

Morávamos num sítio, chamado “sossego’”.
Sendo o mais velho dentre os filhos homens, cabiam-me as tarefas mais puxadas.
Eu não reclamava, quando eram para ser desempenhadas no campo. Sentia-me bem, em contato com a natureza.
Aprendi a me alimentar com frutos silvestres, que permitiam eu percorrer longas distâncias;  bebia água de gravatá, e outras coisas que a cerrada caatinga oferece.
Sentia-me bem! Conhecia todos os animais que habitavam a região.
Olhávamos-nos com desconfiança, e quando nos víamos muitas vezes, até despontava certa intimidade.
Nosso sítio era pequeno. Por isso, só três vaquinhas povoavam a propriedade. Não podia ser mais porque nosso campo não oferecia alimentação bastante.
Nossa família era pródiga: Doze filhos, Pai, Mãe, Avó, duas Irmãs de criação, e uma Empregada doméstica, que também era nossa família, sem nenhum preconceito.
As vaquinhas eram conduzidas por nós, crianças, até o curral, para tirar o leite, apartar os bezerros. Eram muito mansas.
Os bezerros atendiam ao chamado, pelo nome que nós colocávamos, desde quando nasciam.
Assim, havia uma estima enorme pelos animais.
Ora, o bezerro crescia, e a vaca ficava velha. Assim, nem um, nem a outra, podiam permanecer no nosso sítio, porque significava excesso de ocupação.
Nós crianças, não entendíamos dessas razões, e quando ia ocorrer o desbastamento do rebanho, ocorria também uma torrencial chuva de lágrimas, com lamentos que se podia ouvir de longe.
Por outro lado, tão humanizados ficavam esses animais, que nenhum vaqueiro, montando cavalo, se atrevia a chegar perto deles.
Tornavam-se umas feras, e chifravam os que se atrevessem a insistir chegar perto.
No momento dessas fúrias, eu era o infeliz remédio. Digo infeliz, porque ia conduzi-los, aos prantos, sabendo que muitas vezes marchavam para o abate.
Meu touro Cara-preta, chegou ao ponto de ser vendido, e não havia alternativa; nem Papai admitia ser contestado.
Numa tarde, chegou um açougueiro montado a cavalo. Papai o recebeu, e indicou onde estava o touro Cara-preta. Isso significava que ele fora vendido.
O Cara-preta estava calmamente pastando. Ao pressentir a presença do estranho, levantou a cabeça, juntamente com os outros do rebanho, entortou-se todo, começou a fungar, e cavar com as patas dianteiras. Baixou o cangote, e partiu que nem um raio pra cima. Ireno desistiu de levá-lo naquele momento.
Mais tarde voltou com outro companheiro.  Então os dois, em grande vantagem para com meu valente bichinho, jogaram laços, dominaram-no e amarraram uma corda prendendo os chifres a uma das mãos; colocaram uma careta – um artifício que deixa o animal sem enxergar para frente -. Quando terminaram a empreitada já era noite, e não seria possível levar Cara-preta. Então o deixaram junto aos demais do rebanho, para que ele se acalmasse, e no dia seguinte virem buscá-lo.
Eu trazia os olhos inchados de chorar, e fiquei grande parte da noite escondido nas proximidades da casa, acariciando meu bichinho, que também parecia chorar comigo, porque seus olhos gotejavam e escorria pela cara, enquanto das ventas, saia uma espessa baba.
Mais Tarde, entrei pela porta da cozinha, e fechei-a com a tramela, indo direto para o quarto. Depois, ouviu-se um grande ruído vindo da cozinha. Acenderam os lampiões e fomos cautelosos verificar o que estava acontecendo. Chegando, com toda a cautela, vimos que lá estava o Cara-preta deitado em meio do cômodo.
Foi um verdadeiro alvoroço, e ninguém mais dormiu.  Nós crianças, desatamos na choradeira. Eram cinco horas da manhã, do dia seguinte,quando Papai me acordou, e disse:
– Filho, compreenda, eu também sinto pelo seu Touro; mas não podemos ficar com ele, nem com as outras crias que já estão grandes, porque os pastos não comportam.
Pegue uma faca, corte essa corda que o imobiliza parcialmente, e conduza-o para fora da casa.
Assim fiz, e não tomei meu desjejum. Embrenhei-me na caatinga, fui me acalentar com meus amigos bichinhos, meus pássaros, companheiros diários, dos quais tanto gostava.
À tardinha, acabrunhado, fiquei sentado em baixo da pinheira.
Um pássaro, nunca visto por mim, movimentou-se calmamente de um galho para o outro.
Como posso descrevê-lo? Creio não saber dizer, tanto quanto vi.
Eu conhecia todas as espécies de pássaros que povoavam nossa região. Pássaros, e aves! Imitava quase todos eles, com perfeição; a tal ponto que os trazia para perto de mim, quase podendo tocá-los. Mas, aquela coisa divina, que estava à minha frente, manso, induzindo a que eu o tocasse, eu nunca tinha visto. Não havia nada semelhante!
Da cauda, pendiam penas longas, que se assemelhavam a um ramo, coberto com arminho, cor azul-profundo; no corpo, a plumagem era matizada, de extremo fulgor.
Fiquei embevecido! Imaginei que era encantado, mandingueiro, como aqueles que povoavam as estórias contadas por minha Avó.
Pensei que ele estava ali para me libertar de todos os males, e que então eu deveria segui-lo, por onde quer que fosse.
Naquele momento me senti o Rei dos meninos. O Poderoso!  Tornaria-me invisível no momento que quisesse. Poderia voar como ele. Mas, para tanto – pensava eu-, era preciso tocá-lo. Ele Parecia me convidar a que fizesse isso. Continuava, saltando, de um galho para o outro, no mesmo arbusto.
Concentrei o pensamento, chamei as forças invisíveis, e levei a mão. Ele, como que sorrindo para mim, iniciou uma brincadeira, que durou todo o restante do dia:
- Deixava quase tocá-lo, e pulava para o próximo galho. Foi assim por toda à tarde.
Os tempos se passaram, e ainda me recordo com tanta clareza esse episódio da minha infância.
Com a vivência, faço um pouco de associação, entre o Pássaro, e meu boi Cara-preta:
- É que, naquele único dia, única vez, que eu vi aquele Pássaro e amei tanto, naquele mesmo dia, uma terça-feira, meu Cara-preta foi abatido e nunca mais haveria de vê-lo, e com ele brincar de amizade.

Autor: Dilemar Costa Santos (Vô Dila) - Ipirá/BA

http://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?id=126482

Publicação autorizada pelo autor

4 comentários:

Carlos A. Lopes disse...

Lindo! Que dizer mais sobre o texto: Emocionante! Deu-me uma tristeza só consolada pelo amor que sinto pelos meus animais.

Ana Bailune disse...

Que triste história... eu jamais poderia viver em uma fazenda de gado. Morreria de tristeza...

Maria Mineira disse...

Um conto muito lindo, Vô. Senti uma aperto no coração, pois passei por momentos parecidos. Acho que toda criança de roça sofre essas tristezas. Me emocionei quando li no Recanto e aqui novamente. Abraço de sua neta Lia.

Anônimo disse...

Muito triste toda história que envolve a separação de uma criança e um animal querido. Sempre me emociono quando me deparo com alguma. A história me cativou. Parabéns. Marina Alves.