sábado, 18 de abril de 2015

Terceiro Concurso do Blog - Texto 08: João encontra-se com o amor

João seguiu viagem no outro dia, acrescido dos seguintes companheiros: Mariana, o cavalo escolhido, um cachorro policial cabeçudo com   pelos e olhos amarelos e mais um cargueiro com as coisas da Morena.
O rosto do rapaz parecia de pedra, sem demonstrar emoção alguma. De ruídos e claridade, só dos sapos e pirilampos e ao longe o berro de alguma rês perdida. João estava mudo ao lado daquela pessoa de cabelos levemente ondulados que vestia blusa de gola alta, saia amazona e botas de couro. O que denunciava a mulher era a voz macia e delicada. Mariana aguardou em vão, ouvir palavra de sua boca até que se arriscou:
—Pois bem, seu João Belizário, já está na hora de dizer uma qualquer coisa, aproveita o ar fresco da noite e me explica o motivo do silêncio.
—João admirou o desembaraço daquela moça, que enfrentava de peito aberto a desgraça que se abatera sobre sua vida há alguns meses.
—Dona Mariana, pouco tenho a falar que sirva de proveito. —disse tentando em vão desviar a atenção dela.
Com o correr dos dias, no trotar lado a lado dos cavalos, sem perceber João contava coisas de sua infância, das estradas e matas, das caçadas, causos contados por sua mãe. Sem entender o que se passava, João estranhava o seu falar solto a matar a curiosidade da moça entrando pela sua vida afora... Mariana ria, mostrando uns dentes brancos, entre uma história e outra, provocando-lhe aquele entornar de assunto. Quando parava ela lhe dirigia aquele par de olhos pretos insistindo:
—Fala mais, seu moço! Conta outra daquelas do Malazartes, ou qualquer outra. Você fala pouco. Gosto de escutar histórias de vida, a minha sempre foi tão sem novidades. Você ainda novo já correu mundo.
—Não vale a pena contar tanta coisa, dona moça. Sendo novo ou não a vida vai apagando as lembranças, ou tudo vai se arremedando igual ao que já foi. 
—João Belizário seguiu, a cada dia viajando lado a lado daquela moça em estradas poeirentas, um tanto embaraçado pelo interesse dela. Um dia surpreendeu-se quando a viu aos prantos.
—Se ofendi a moça me desculpa. Não sei conversar, não sei lidar com mulher, não queria ofender ninguém.
—Não é nada com você João... De repente me lembrei daquele homem causador da minha desgraça – murmurou Mariana com um soluço sufocado, disfarçando a emoção que a incomodava – Seu peito arfava descompassado.
—João não conseguiu desviar os olhos dos seios trêmulos sob a blusa branca. Acamparam perto de um riacho quando se escondiam, atrás da serra, os últimos raios de sol. Belizário preparou a fogueira soprando com força num tição, e logo as chamas vacilantes iluminaram os últimos vestígios da tarde num contraste de claro e escuro. Ele se encarregou de cozinhar e pouco depois os dois comeram em silêncio a carne-de-sol que chiava no espeto, o feijão tropeiro e uns pedaços de queijo curado.
—Na madrugada, quando as saracuras entravam em concerto e os sapos silenciavam..., a moça afastou-se por entre as ramagens. Estava longe o dia, despontava um pálido clarão no horizonte. Exposta à solidão da madrugada, Mariana mergulhava nas águas cristalinas e, quando ressurgia, seu corpo reluzia ao clarão da lua, em linhas vigorosas. A pele em arrepios às carícias da correnteza e se abrigava apenas no manto da espessa cabeleira que lhe tocava a cintura.
—Ao perceber um vulto a contemplá–la, soltou um grito de espanto, cruzando os braços sobre os seios.
—Não tenha medo, dona Mariana. Sou eu – disse João, cabisbaixo e sem graça, enquanto a moça tentava apressada pegar as roupas na areia.
Vestida, a roupa amoldou aquele corpo molhado. Ela não ousava erguer os olhos. Saiu apressada quando tropeçou e João segurou–a pelos ombros. Não viu quando a puxou para si num abraço inesperado. Mariana correspondeu e sem timidez deixou–se apertar ao peito forte de João. Suas bocas tremiam na ansia daquele inesperado e primeiro beijo. Um respirar fundo um aperto no coração, mãos nervosas, eletricidade nos corpos, denunciava João Belizário um iniciante ávido no amor...
Com essa madrugada de amor, João não imaginava que a vida pudesse ser tão boa. Pela primeira vez se planejou como uma pessoa normal. Vida junto com Mariana, uma penca de filhos, uma rocinha para tocar, sairia desta vida assassina, pois o amor o humanizara. Com o sol já acima do horizonte, Mariana se antecipara a ele e passara o café a moda tropeira, acordando-o com aquele perfume enfumaçado.
Depois, enquanto Mariana arrumava as coisas pessoais, João dava trato à tropa. Em seguida encilhou os cavalos, carregou os cargueiros. Ajudou a Mariana a montar, sem antes dar-lhe um beijo prolongado. Pensava consigo:
“Não tinha vivido até então, como poderia sair desta vida sem este sentimento!”
Seguiram viagem. De taciturno, João, naquele momento, era só alegria.  A todo instante, se aproximava da montaria de Mariana, pegava em sua mão, alisava seu cabelo, contemplava–a.
“E eu que não a queria como companhia nesta viagem!”
Fazia planos... “vou ajuntar todas minhas coisas e vender para comprar uma terrinha, ou então negociar com o Coronel a parte dele nesta empreita em terras. Fazer roça de milho, abóboras, até um pouco de café. Um bom pasto para amansar as tropas dos Coronéis. Sei que não vai me faltar serviço. Fazer um rancho, tocar a vida com Mariana. Logo eu que sempre quis rodar mundo!”
Sua conversa havia se destampado, a cada canto de pássaro o identificava para Mariana, a cada erva na beira do caminho explicava para ela a utilidade, demonstrando o conhecimento ancestral do povo dos seus pais. A dura viagem tornou–se um passeio agradável.
—Mariana, os pássaros enfeitam o dia como as estrelas enfeitam a noite! O canto deles dá lugar ao brilho delas.
Mariana por sua vez a tudo correspondia com largo sorriso, enfeitado com dentes alvíssimos contrastando com a pele cor de Jambo. Eram apenas os dois. Descuidados, não tomavam conhecimento dos que vinham ao seu encontro e nem de olhos furtivos que os seguiam atrás. As compridas sombras que iam à frente de manhã, desapareciam com o sol a pino, mais tarde cresciam seguindo–os.
Resolveram acampar perto de outro remanso de águas cristalinas. O ritual de desarrear a tropa, cada muar de carga, os burros  sugigando–se, vira não vira, apostava com Mariana, quem fazia a cambalhota inteira sobre  o espinhaço. Foram se banhar juntos, fizeram amor dentro da água. Todo acanhamento da primeira vez agora se transformava em prazer intenso.
—Mariana, a vida vale a pena, não quero mais tirar vidas dos outros! Vou mudar a minha existência de rumo, eu mais você e um monte de bacuris.
Mariana sorriu e o abraçou feliz, chamando-o mais uma vez para o amor.
Estavam casados, ambos tinham visto casamentos de amigos. O deles era diferente. Tinham por testemunha os animais da tropa, o cachorro amarelo, os bugios e papagaios nas árvores. A promessa verbalizada pelo padre e repetida pelos noivos dava lugar aos olhares encantados, vontade de não mais se separarem. A aliança selando o pacto, aqui era desnecessária. Amor infinito enquanto tivessem um ao outro.
A fome bateu, resolveram fazer uma refeição especial para comemorar a nova vida junta decidida por eles, nada mais interessava, eram donos um do outro, só isso que importava.
—Mariana, ouvi um Jaó cantar lá para trás, vou buscá-lo, vai fazendo um arroz caprichado, hoje a boia tem que ser especial. – Afastou-se assobiando o canto do Jaó.
—Mariana, feliz e concentrada nos afazeres, não percebeu o cachorro amarelo que se levantou e foi receber alguém que se aproximava, furtivamente, do acampamento.
—Mariana! Vim te buscar. – Voz conhecida, mas que não era a de João.
Mariana assustou-se, mas acalmou logo em seguida ao ver uma pessoa sua conhecida, era José Cigano, o vaqueiro de Dona Luzia.
—Oi seu Zé, o que faz por aqui? Tão longe dos seus afazeres!
—Vim te buscar Mariana, quero você para mim, não importa que não seja mais moça por causa daquele bandido, senti muito sua partida, não posso viver sem você.
—Desculpe seu Zé, mas o meu coração já tá ocupado, sou agora de João Belizário. Não vou voltar com o senhor não!
Zé Cigano desesperou-se com estas palavras de Mariana, que atingiram diretamente seu coração, perdeu a cabeça e se aproximou da moça agarrando-a. Mariana lutou desesperadamente com unhas e dentes, lanhando o rosto do vaqueiro que não desistia da luta. Por fim, vendo que não conseguiria seu intento, tirou sua faca e esfaqueou várias vezes a moça.
—Se você não pode ser minha, não vai ser de mais ninguém. — As forças de Mariana desvairam-se e ela parou de lutar.
Ao ver o que fizera e lembrando–se de quem era João Belizário, Zé resolveu se evadir rapidamente do local.
Ao escutar o as últimas palavras de Mariana, que só confirmaram suas suspeitas, o assassino só poderia ser alguém conhecido, pois o cachorro não assinalara a presença e nem evitara a aproximação até sua dona.
Ao longe, ainda podia ouvir o galope em retirada de José Cigano.
Não tinha pressa, uma vida inteira dali para frente, para vingar a morte da razão da sua vida.
Primeiro tinha que providenciar a morada eterna para sua amada.  Não sabia dos rituais dos brancos, dos negros e nem dos Kadwel.  Não queria que o corpo dela fosse consumido pelos bichos da floresta ou pelos vermes. Resolveu queimá-lo. Ajuntou lenha, capim seco e colocou as poucas coisas da moça junto ao corpo na fogueira. Ateou fogo e ficou a distância até que tudo virasse cinzas, depois as recolheu e espalhou pela floresta, jogou um tanto no ribeirão onde se amaram pela última vez. Pensou consigo, “tudo não passa de Cinzas.” Coração empedernido.
Resolveu voltar para Montes Claros, por duas razões: devolver as montarias que tinha recebido por pagamento da proteção de Mariana na condução dela ao Coronel, pois tinha falhado, e acertar as contas com o vaqueiro José Cigano. Tinha todo o tempo do mundo, o resto de sua vida.
Seguiu sem pressa, mas os animais sentindo que estavam voltando para casa aceleraram a marcha, João não se importou. Ao cair da noite, sem ânimo para providenciar seu acampamento, avistou ao longe um fogo de alguém que já estava acampado à margem do caminho. Aproximou-se para pedir uma beirada no acampamento. Sob a luz difusa da fogueira, não se reconheceram de imediato. José Cigano tinha atrasado a viagem, aguou a montaria, na viagem desesperada de ida e volta.
Ao se reconhecerem, José Cigano puxou o revólver e de imediato João disparou a cartucheira carregada com chumbo grosso. O braço que tinha a arma virou um cotó e ainda esparramou chumbo pela barriga, mas José Cigano sobreviveu. 
—Moço, você ainda tem outro cartucho aí, use-o atirando na minha cabeça, pelo Amor de Deus.
João, impávido sem nenhuma emoção, com a voz fria falou:
—Não vai ser do jeito que você quer – retalhou a camisa do vaqueiro em tiras e estancou o sangue do braço e da barriga de José Cigano, e o arrastou para longe do acampamento amarrando-o em uma árvore, a outra parte do castigo teria que ser feita à luz do dia.
—No crepúsculo matinal entrou para dentro do mato. Teve sorte, pouco depois estava de volta. Foi até onde estava José Cigano, que se encontrava quase desmaiado, jogou-o sobre os ombros e o carregou para longe do caminho utilizado pelos viajantes. Tinha experiência nisto, o povo do seu pai usava as formigas para limpar ossos utilizados no artesanato. Amarrou–o próximo do formigueiro das "Correição", cortou a orelha em que o vaqueiro tinha um brinco, razão do apelido “Cigano”. Fez um caminho de sangue do formigueiro ao assassino. Esperou o corpo ser coberto de formigas. De quase desmaiado, ficou bem acordado dando urros e gritos horrendos. João ficou alí até se fazer silêncio, não queria que algum viajante viesse salvá–lo.
Depois seguiu o caminho de volta à pensão da Dona Luzia. Não ouvia mais os cantos dos pássaros, e não via o por ou o raiar do sol. Só sombras. Em lento movimento, observava os passos dos muares, as patas traseiras pisavam certinho no rastro deixado pelas patas dianteiras, ficou assim como se nada mais interessasse. Não precisava escolher as pernas das encruzilhadas, pois os animais estavam voltando para casa e eles ditavam a toada da jornada.
Chegou à pensão, não apeou, ficou alí mal equilibrando sobre a montaria. Os animais aflitos para entrar nos campos de sua querência. Dona Luzia viu aquilo e estranhou, mandou que fossem recebê-lo, tiveram que carregá-lo para dentro.
Ao ver Dona Luzia, tirou a orelha com brinco do Cigano do bolso e nada falou. Dona Luzia deduziu o ocorrido. Depois de dois dias de recuperação contou o ocontecido, e disse:
—Estou aqui à disposição, se tiver alguém disposto a vingar a morte do seu vaqueiro, Dona Luzia, estar vivo ou morto é melhor do que estar morto-vivo.
Ficou por ali a espera de alguém que o tirasse desta vida, ou melhor, desta falta dela. Até juntar forças e um pouco de querência para retornar aos seus.

3 comentários:

Anônimo disse...

Uma historia trágica, triste e deventurada. Conceição Gomes.

marina disse...

Uma ótima trama, num conto muito bem descrito. Personagens fortes e bem construídos, intimidade com o cenário e movimentação dos protagonistas. Parabéns!

Anônimo disse...

Excelente texto com figuras literárias e imagens bem construídas. Parabéns a quem o produziu.

Alberto Vasconcelos