domingo, 20 de março de 2016

A infeliz Tarcília

Autora: Maria Thereza Maith Moreira

Tarcília encostou-se na amurada do navio, o olhar perdido ao longe parecendo buscar algo além das ondas do mar, um misterioso lugar onde a felicidade fosse perene e onde a gente pudesse adentrar sem a bagagem das desventuras.
Em sua tela mental começou a projetar-se o filme já tantas vezes assistido, ou melhor dizendo, sadicamente sofrido, a que ela própria intitulara "A Infeliz Tarcília".
Nascera num lar empobrecido, onde seus pais, principalmente o seu pai, tentava a todo custo manter um padrão de vida compatível com a tradição da família que já fora abastada.
Restava-lhes alguma coisa da antiga nobreza. Moravam em uma casa vistosa, embora já velha e agora impossível de ser conservada.   
Por esse motivo os pais não recebiam nem deixavam os filhos receberem ninguém. Não queriam expor os tapetes desgastados, os móveis quebrados, as cortinas rasgadas.
Não frequentavam a sociedade porque não tinham posses para acompanhar o luxo dos clubes da elite e frequentar lugares menos elegantes, nem pensar!
Pelo mesmo motivo as filhas não puderam estudar, pois eles nunca permitiriam que frequentassem colégios baratos ou escolas públicas e não tinha como pagar os colégios mais caros.
As quatro meninas tiveram uma infância reprimida e chegaram à adolescência infelizes e revoltadas. Queriam trabalhar fora, estudar a noite, fazer o que faz a maioria das moças de classe média, mas, não! O pai achava que seria humilhante para ele não poder sustentar as filhas, precisar que trabalhassem fora.
Tarcília só via uma saída para sua vida infeliz. Casar-se!
E foi o que fez. Com o primeiro namorado, muito jovem, sem nem conhecê-lo direito, sem pensar duas vezes.
O pai aprovou o casamento, conscientemente ou não, satisfeito por ter uma a menos para sustentar.
O casamento não foi a maravilha que Tarcília esperava, mas ainda era melhor do que a vida monótona que tinha na casa dos pais.
Logo depois do nascimento da filha, porém, piorou muito e ela não demorou a descobrir que o marido a traía.
Que fazer?
Depois de muito pensar tomou a decisão mais fácil. Fingir que não sabia e continuar a viver despreocupada, sem precisar assumir a pecha de mulher rejeitada. Pra que?
Floriano, o marido, a tratava bem, dava-lhe tudo o que ela queria e a filha o adorava.
Mas a Infeliz Tarcília não podia ficar em paz para sempre.
Um belo dia ele confessou-lhe que se apaixonara por outra e queria o divórcio. Ela podia ficar com a casa, o carro e ele ainda lhe daria uma esplenda pensão que lhe permitiria viver confortavelmente.
E o seu casamento que já nem se podia mais chamar de casamento, acabou de acabar.
Aos domingos, Floriano vinha buscar a filha para passear e Laís esperava ansiosamente por ele.
Voltava contando tudo que fizera, excitada, e Tarcília ouvia, meio enciumada.
—O Papai levou-me ao parquinho. Eu tomei sorvete e brinquei numa porção de brinquedos
Ela já a levara a esse parquinho dezenas de vezes, ela tomara todos os sorvetes que queria e brincara nos tais brinquedos até cansar, mas nunca se mostrava tão entusiasmada como quando era o pai que a levava.
Não demorou muito para que ela se afeiçoasse a madrasta a quem chamava de Tia Gracinha.
Tarcília revoltou-se. Não era obrigada a permitir que a filha testemunhasse a pouca vergonha do pai, mas, lembrando de sua infância triste, de quanto lhe fizera falta o carinho paterno, tinha que reconhecer que, tirante todos os seus defeitos, Floriano era um ótimo pai e a tal Gracinha devia ser mesmo "uma gracinha" para Laís encantar-se tanto com ela.
E resolveu engolir o sapo.
Quando Laís começou a namorar o Ivo, um parente afastado da Gracinha, muito amigo da casa, afastou-se mais ainda da mãe, pois os encontros eram na casa dela. Era lá que almoçavam aos domingos, de lá que saiam para os passeios, era com eles que iam ao clube, ou à praia.
Tarcilia ficava feliz vendo a filha divertir-se tanto, mas sua vida pessoal era muito triste, sempre só, sem amigos, sem nada com que ocupar os seus longos fins de semana.
Depois que Laís se casou, então, Tarcília ficou mais só do que nunca.
A filha e o genro vinham almoçar com ela aos domingos.
Tarcília os esperava ansiosamente. Preparava tudo que Laís gostava, mas eles apareciam sempre atrasados, almoçavam rapidamente e iam embora, pois já haviam marcado com o pai e a Tia Gracinha para ir ao clube onde passavam a tarde toda, ou o Ivo queria assistir ao jogo de futebol com o sogro com quem se dava muito bem.
E Tarcília sentia-se cada vez mais anulada, sem ninguém que realmente se incomodasse com ela.
Até surpreendeu-se quando a Laís contou que iriam os quatro (tudo que faziam era sempre os quatro) fazer um cruzeiro e perguntou:
—Você não quer ir também? Sempre disse que um dia faria uma viagem de navio. Chegou a hora!
—Imagine! Você se esquece que a Gracinha e eu somos rivais. Como é que poderíamos fazer alguma coisa juntas.
—Ora, Mamãe! Que bobagem! Já faz tanto tempo. Tem que passar por cima disso. Além disso, se não quiser não precisa nem se aproximar dela, o navio é uma pequena cidade. Viajam milhares de pessoas. Vai ser bom para você, distrair-se, conhecer gente...
Tarcília resolveu aceitar a sugestão da filha. Afinal precisava deixar de esconder-se envergonhada de sua situação como se fosse ela a culpada. Ia enfrentar a outra. Fazer amizades, mostrar ao Floriano que ele não lhe fazia nenhuma falta.
No ônibus que os levaria até o porto, porém, já estava arrependida.
Como fora das últimas a comprar o pacote de viagem, ficou no último banco, isolada de todos. Ao seu lado um garoto irrequieto, o tempo todo levantando para falar com os pais no banco da frente, ou estes voltando-se para repreendê-lo.
Na frente os outros passageiros, conversavam, brincavam uns com os outros com a alegria própria de quem empreende uma viagem de recreio.
E Tarcília sentia-se mais só do que nunca, deslocada, como se fosse o mico preto no jogo da vida.
E reprisava incansavelmente o seu filminho particular, morrendo de dó de si mesma.
E agora estava ali. Realizando um velho sonho. Viajando de navio, mas não estava feliz. Por que?
Lais aparece:
—Mãe! O que você faz aqui sozinha? Por que não vai ver o filme que está começando lá na sala de projeção. Dizem que é muito bom.
Antes que Tarcília respondesse, Ivo apareceu ao longe, acenou para Laís e ela correu ao seu encontro.
Tarcília não queria ver filme algum. Já chegava o "A Infeliz Tarcília" que não cansava de rever.
Alguém se aproximou e Tarcilia reconheceu o comandante do navio.
Cumprimentou-a, perguntou se estava gostando da viagem e acabou convidando-a para tomar um refresco.
Conversaram. Ele pouco falou, mas ouviu com atenção e interesse tudo que ela disse e ela sentiu-se valorizada como nunca.
Nunca ninguém tivera tanta atenção com ela e ela sentiu que uma tênue esperança aquecia-lhe o coração.
Durante o resto do dia pensou nele, no que conversaram, no seu olhar, no seu sorriso.
Nunca aventara a idéia de casar-se novamente, ter um namorado ou um caso, mas, ia ousar! Ia divertir-se e mostrar para o Floriano que estava viva!
À noite, quando descia para o jantar, ele novamente a encontrou e convidou-a para a sua mesa.
Acompanhou-o com o coração aos saltos, as mãos tremendo, mal acreditando no que estava lhe acontecendo.
Mas, ao chegar a mesa teve uma surpresa.
Ali já se encontravam duas mulheres que ele apressou-se a apresentar:
—Liliam, minha esposa, está de férias e veio viajar comigo.
Sorriu olhando apaixonadamente para ela:
—É como se eu também estivesse de férias. E esta é a Cléa. Está viajando só, como você e eu pensei que gostariam de se conhecer.

Autora: Maria Thereza Maith Moreira - Sorocaba/SP

3 comentários:

Anônimo disse...

Há pessoas que esperam a vida toda, que os os outros a façam feliz. \Como não aprendem a ser feliz por conta propria, morrem por dentor a cada dia. Assim era a nossa Tarcilia.

Anônimo disse...

Muito bom texto. Perfeitamente dentro dos parâmetros do concurso. Parabéns a quem o produziu.

Alberto Vasconcelos

Marina Alves disse...

Juro que pensei que seria com o comandante rs... Não foi. Ah, infeliz Tarcília! Muito bom. Parabéns ao autor.