quarta-feira, 8 de agosto de 2018

O Coreto da Lua

Suzo Bianco

Reviver aquilo, que nos aconteceu quando nos conhecemos, me traz um misto de nostalgia, melancolia e felicidade, mesmo depois de tantos anos.
Eu caminhava sem rumo por uma passarela de madeira suspensa, desses tipos de caminhos construídos sobre plantas e moitas, no intuito de sentir melhor o bosque sem formar trilhas. Era um lugar lindo e calmo, chamado Por da Lua, uma área grande de mata preservada bem no coração da cidade de Clinzândia, ao norte do Deserto Cinzento, lugar esse que quase ninguém ousava mencionar.
Por da Lua era um parque bastante procurado por todos devido sua essência mágica e qualidade calmante, sob as copas verdes, as pessoas se sentiam mais relaxadas, abrigadas, tranquilas para caminhar e caminhar sem rumo certo, aproveitando a atmosfera entorpecente a qualquer hora do dia.
Bom exemplo desse costume era eu mesmo, que mesmo sob o manto imperioso da noite e da luz fantasmagórica da soberana Lua, andava a passos lentos, fazendo ranger as ripas de madeira, pensando em nada demais, apenas uma sombra ambulante em meio aos focos de luz branca, derramados pelos postes que se dispunham de metros em metros, de cada lado da trilha. Foi quando avistei o Coreto da Lua.
Um lugar aconchegante e fresco, todo branco, muretas bem trabalhadas com ornamentos que, num padrão suave, lembravam folhas de árvores e animais silvestres. O telhado era bem cuidado, a tinta anil das telhas ainda parecia fresca, embora coberta por folhagem seca, plantas rasteiras e trepadeiras. Em seu cume, um cata-vento na forma de uma Lua prateada girava lentamente ao gosto da brisa noturna. E sob o telhado, lá embaixo, bancos curvos, moldados de forma que acompanhassem a curvatura do coreto, convidavam silenciosamente os possíveis transeuntes a algumas horas de meditação ou reflexão. E isso fazia todo sentido, já que, quando ali cheguei, percebi uma jovem de cabelos longos e escuros. Sentada, cabisbaixa, concentrada em um ponto invisível no meio do pequeno salão que o coreto disponibilizava, ela nem sequer notou quando me aproximei. Parecia triste, e associei aquela situação com a do homem que ia embora, por outra abertura, também de ombros caídos, quieto e aparentemente melancólico.
Possivelmente a moça sentia algum recente aperto no peito ou decepção amorosa.
Pensei em abordá-la com um cumprimento reconfortante quando ela de repente me notou, com olhos arregalados, fazendo-me estacar em meu lugar. E ali de pé, vi a jovem espiar mais uma vez o homem, que se distanciava por outra trilha suspensa do bosque, como se não acreditasse no que lhe estava acontecendo. Ela tornou a reparar em mim, como se eu fosse algum tipo de fantasma. Antes que ela pudesse dizer algo, arrisquei:
— Parece triste, posso lhe ajudar?
— Quem é você? – Ela logo perguntou.
— Ninguém, eu estava apenas caminhando quando a vi aqui e... Pareceu-me triste.
— Na verdade não. – Sorriu. – Não estou triste. Estava apenas pensando na loucura que acabou de me acontecer, quando você apareceu. E, sinceramente, isso só me deixou mais confusa ainda.
— Não entendi.
— O homem que acabou de sair daqui.
— O que tem ele, era seu namorado, ou algo assim?
— Não sei o que dizer, não agora, depois que você apareceu.
— Não compreendo.
— Era um senhor, um senhor de meia idade, gentil, mas de olhar tristonho. — Percebendo que eu ainda não a entendia, explicou: - Bem, eu estava aqui, lendo meu querido diário, quando ele apareceu, bem ali. — Apontou para a outra abertura do coreto. — Ficou me olhando como se me conhecesse há anos, olhos cristalizados de lágrimas. Fiquei um tanto desconsertada, assustada até, não sabia o que fazer ou o que falar quando ele me disse: “Sei que deve estar assustada, sei que não me reconhecerá, sei que deve me achar um mendigo louco ou algo assim, ou só um velho carente e esquisito, sei que provavelmente irá ignorar esse encontro daqui algumas horas, sei de tudo isso, mas ainda tenho esperança de realizar meu sonho, de lhe abraçar pela última vez e de me lembrar como eu poderia ter sido feliz, e desperdicei isso...” Então ele chorou abertamente, de maneira tão tocante que me apiedei e o abracei com toda a sinceridade que eu poderia oferecer. Ele então me afastou gentilmente, e disse: “podemos dançar?” Sorri, limpei minhas próprias lágrimas e dançamos por um tempo, como pai e filha que há muito tempo não se viam. Até que nos afastamos. Ele me olhou nos olhos. “Obrigado, e me perdoe, minha querida. Adeus!” – Sorriu a jovem ao lembrar daquilo. – Então ele simplesmente foi embora, quando você chegou.
— Nossa! — Falei, me aproximando. — Que estranho. — Tomei coragem e me sentei ao lado dela. Era linda. – Essa cidade é cheia de gente maluca.
— Tem razão! — Ela concordou, voltando a sorrir.
Nossos olhos brilharam naquele momento; os dela eu pude ver, os meus eu mesmo os senti.
Naquele dia nunca poderia imaginar que aquela jovem se tornaria a minha companheira, amada de uma vida inteira.
Tivemos muitas coisas juntas depois daquilo; alegrias, viagens, lembranças, tristezas e arrependimentos. Eu mesmo, hoje, reconheço o quanto a fiz mal. Pois com o tempo a paixão diminuiu, e isso me distraiu. Tornei-me negligente, arrogante, iludido e idiota. Ela, coitada, acompanhou minha áurea tornando-se tão tola quanto eu. Começamos a brigar demais, a discutir demais, a querer sem merecer demais, até que num dia fatídico, minha tão amada companheira veio a falecer num acidente de balão.
Ela só queria ver a Lua mais de perto, para ver os problemas mais de longe.
Aquilo viria a me recuperar do modo mais doloroso possível. Passei desesperadamente a procurar uma forma de reverter àquela situação, a da morte de alguém que eu não soube aproveitar, amar, enquanto viva.
Procurei tanto que acabei achando.
Uma bruxa, oriunda das cavernas do Deserto Cinzento, ficara sabendo de minha agonia e me propôs um acordo:
— Se o senhor me der sua vida, posso fazer com que você a veja mais uma vez, e assim, além de revê-la, poderá finalmente descansar em paz...
E inundado de tristeza, movido pela dor da perda e do amor perdido, aceitei o acordo.
Fui levado para o passado, e a revi.
Linda, sozinha, minutos antes de me conhecer, sob aquele lindo coreto mágico. O primeiro contato quase me fez gritar de dor e saudade saciada. Mas não podia. Enchi-me de coragem, aproximei-me e lhe disse:
— Sei que deve estar assustada, sei que não me reconhecerá, sei que deve me achar um mendigo louco ou algo assim, ou só um velho carente e esquisito, sei que provavelmente irá ignorar esse encontro daqui algumas horas, sei de tudo isso, mas ainda tenho esperança de realizar meu sonho, de lhe abraçar pela última vez e de me lembrar como eu poderia ter sido feliz e desperdicei isso.
Então desabei abertamente, de maneira tão tocante que me senti uma criança arrependida por ter feito algum mal imperdoável.
Ela me abraçou, com força. Eu a afastei gentilmente, falando:
— Nós podemos dançar?
Ela sorriu, limpou suas próprias lágrimas, e dançamos por um bom tempo, até que nos afastamos. Eu a amava, imensamente, e sem poder me revelar só pude olhá-la nos olhos:
— Obrigado, — Suspirei controlando meus sentimentos que pareciam querer-me afogar. — E me perdoe, minha querida. — Me virei de vez, para evitar novo pranto aberto. Apenas conseguindo murmurar minha última palavra, aquela que há anos não pude ter dito:
— Adeus!
E agora, mesmo prestes a doar minha vida para aquela bruxa, reviver aquilo, que nos aconteceu quando nos conhecemos, me traz um misto de nostalgia, melancolia e felicidade, mesmo depois de tantos anos.

Autor: Suzo Bianco - São Paulo/SP

3 comentários:

Anônimo disse...

Perfeito, é o único adjetivo cabível.

Parabéns a quem o produziu.

Alberto Vasconcelos

Marina Alves disse...

Instigante, com roteiro e desfecho surpreendentes. Parabéns.

Anônimo disse...

Belo e triste conto com um final emocionante e dado a várias interpretações.