segunda-feira, 23 de novembro de 2020

CANAVIAIS

 



Maria do Rosário Bessas

Sebastião, ou Tião como era chamado, era um caboclo alto, forte, de dorso torneado pelo manuseio da foice e do facão que empunhava desde menino no corte da cana, labuta dura que aprendera com o pai desde cedo, na sofrida luta pela sobrevivência. Corriam como ciganos pelos rincões do país afora, buscando emprego nos canaviais em tempos de safra, quando a mão de obra aumentava nas Usinas. Mal o dia começava a clarear, lá estavam nos pontos esperando os caminhões que levavam as turmas, homens e mulheres dispostos a desafiar o sol e os limites de seus corpos, desferindo golpes de foice nas varas cheias de gomos que da noite para o dia, perdiam sua roupagem verde de hastes longas, que se não fossem queimadas pelo fogo, cortavam a pele como navalhas. Sobravam talos enegrecidos, que eram cortados sem piedade e amontoados no meio do caminho, para que outras turmas viessem juntando em feixes e jogando nas carretas que passavam recolhendo a colheita do dia. Era essa a rotina do Tião, que fechara os olhos para outros destinos e só via os canaviais como o jeito de ganhar a vida. Era quase que feliz assim ... Mas chegou um dia  que seu destino começou a mudar. Seu pai se entregou ao cansaço da luta e depôs as armas de ganhar o pão. Não abriu os olhos numa manhã. Sua mãe, nunca mais foi a mesma e foi logo atrás, ao encontro dele. Seus dois irmãos, não quiseram seguir seu rumo e caíram no mundo em busca de outro destino. Ficou sozinho no acampamento, não queria mudar mais de cidade, gostara do lugar. Sabia que onde quer que fosse, a solidão seria a mesma.

Mas naquela manhã, foi diferente. O caminhão chegou com outra leva de canavieiros, e seu olhar curioso observava os que chegavam, quase todos iguais. Corpos brutos e afoitos, cobertos de roupas ásperas, chapéus para tapar o sol e a bendita foice nas mãos. Já ia se afastando para se reunir com a sua turma, quando viu uma mulher se desequilibrando ao descer do caminhão que os trazia. Instintivamente, correu em sua direção para ajudá-la, perguntando se estava bem. Sentiu seu coração dar um pulo quando os olhos negros dela caíram dentro dos seus, e seus lábios deram o sorriso mais lindo que ele já vira na vida. Seus braços a envolveram de leve na cintura, para que ela recuperasse o equilíbrio e mal ouviu o que ela disse ao agradecer sua ajuda. Ficou olhando-a se afastar, imaginando que por detrás daquela vestimenta rústica se escondia uma deusa, que num segundo apenas fora capaz de despertar todos os sentidos que estavam adormecidos no seu corpo embrutecido pela vida dura que até então tinha vivido. Jurou que a veria de novo...

Celêdian Assis de Sousa

Tião recolheu sua foice e seus outros apetrechos que deixara no chão enquanto socorria a moça, tomou o rumo do canavial para mais um dia da dura lida. Absorto em seus pensamentos seguia imaginando como seria encontrar de novo aquele olhar perturbador e aquele sorriso que o enfeitiçou. O dia lhe pareceu longo demais, pois estava muito ansioso para retornar ao acampamento ao fim do dia e quem sabe ter a oportunidade de se aproximar daquela moça. Enfim caiu a tarde e ao voltar lá estava ela, do outro lado de seu alojamento. Estava junto as outras mulheres e alguns dos canavieiros que ainda davam os últimos retoques em suas tendas, as que os alojariam nos próximos dias, durante a colheita da cana. Elas prepararavam alguma comida num fogão improvisado, ao ar livre e por isso mesmo a moça nem se deu conta da chegada de Tião. Ainda trajava as mesmas vestes com as quais chegara naquela manhã, tinha ares de cansaço, mas um cansaço que não lhe tirara aquela beleza e o encanto que acordaram os sentimentos adormecidos nele.

Tião tirou o chapéu e meneando a cabeça, fez um gesto de cumprimento aos novos canavieieros, dizendo:

—Taaaaardeee... e foi então que ela, sorrindo amavelmente, respondeu:

— Taaaardeee... moço! Como foi a labuta hoje?

— Bem normal, moça. Por aqui nunca muda nada, não, a vida da gente é uma peleja danada, é chegar de tarde numa canseira braba, a conta da gente se lavar, encher o bucho com alguma coisinha e bater na cama, pra levantar bem cedo no outro dia e começar tudo traveiz. E ocê, daonde tá vindo, qualé a vossa graça?

— Jacinta, é um prazer te conhecer! E a sua graça, qual é? Imagino que deve ser aqui da região?

— Sebastião, mas todo mundo me trata por Tião. Sou aqui das redondezas, mas pareço cigano, difícil criar laço muito tempo num lugar só — respondeu sem tirar os olhos dela, ainda extasiado pela sua beleza e intrigado com aqueles traços finos e delicados tão escondidos sob aqueles trajes rotos e pelo chapéu maltratado pelo uso. Até o jeito de falar de Jacinta era diferente, jamais vira alguém assim naquele meio em que vivia.

— Pois posso te contar como vim parar aqui numa outra hora? Mas se prepara porque é uma história longa por demais. Agora, se não se importa, vamos terminar de ajeitar nossas coisas por aqui, pois amanhã já estaremos na lida, junto com vocês...

Marina Alves

No minúsculo quartinho de madeira do alojamento o calor era sufocante. Pela única janelinha aberta, — a ver se entrava uma aragenzinha noturna que fosse — Jacinta olhava o céu pingado de estrelas. As três companheiras com quem dividia o miserável cubículo dormiam o sono dos cansados. A rotina ali não era fácil. Em apenas um dia, tinha já visto tudo que a esperava nas terras do multimilionário Dr. Afrânio Coimbra. Trabalhadores vindos de longe, em sua maioria das terras nordestinas, onde a seca castigava e tirava todas as condições dignas de vida. Eram homens e mulheres que chegavam nos Paus de Arara, querendo uma oportunidade no corte da cana. E a ocasião da colheita era a hora, já que a mão de obra era escassa em terra de tanta cana.

Sem poder pegar no sono, Jacinta se revirava no colchão duro de capim. Nem mesmo o peso do facão que manejara o dia inteiro conseguia fazer com que o corpo entrasse em repouso, porque a cabeça fervilhava. Tinha relutado na decisão de se misturar ao Pau de Arara, largar tudo em Aracaju e vir parar nas terras dos Coimbras. Sabia da árdua missão que a esperava. Sabia do sacrifício que teria que fazer para permanecer ali. Mas arrependimento não havia. Mais pensava, mais se convencia: tudo valeria a pena!

 No escuro, Jacinta não podia ver as mãos finas e brancas, mas podia sentir o ardor causado pelo cabo rústico do facão. Nem as luvas grossas de couro tinham impedido que os dedos se ferissem e algumas pequenas bolhas vermelhas se formassem na base dos dedos. Doía! Mas no dia seguinte tinha mais! Precisava estar forte para a empreitada. E pelo que tinha visto, o capataz da turma não deixava por menos. Sempre com aqueles olhos injetados, num vaivém sem fim pelos eitos, gritando que queria pressa, que ali não era lugar de conversa, nem de moleza, que o corte tinha que render, que os caminhões já estavam chegando para recolher as montanhas de cana. Um inferno! Não dava nem pra tomar uma água, respirar, tomar um fôlego... Um inferno, sob o sol de brasa e o suor descendo em bicas debaixo da roupa grossa e quente.

Um galo cantou ao longe. Jacinta se virou para a parede, e de olhos fechados viu o rosto do marido, Tavinho, o bravo sindicalista que tanta admiração lhe despertara. Seria tudo por ele. Não pudera lhe enterrar o corpo perdido ali naquelas terras malditas, mas jurara se vingar. Trazia a morte de Tavinho atravessada na garganta, não iria superá-la até que fizesse o que tinha de fazer. Era por ele que tinha vindo. E tinha encontrado tudo como esperava: a mesma desgraceira humana que já conhecia pelas palavras de Tavinho. Por um momento visualizou o momento em que chegara. Nem como descer de um Pau de Arara ela tinha a manha... Quase se estatelara ao chão, não fosse a gentileza daquele rapaz moreno que tão prontamente a socorrera. Tião... Era o nome dele. No escuro, um sorriso se desenhou no rosto de Jacinta...

João Batista Stabile

Jacinta mal cochilou um pouco, já teve que levantar para o trabalho. Depois de um café, já devidamente trajada para mais uma jornada, se dirigiu ao eito. Ia pensando: tinha já uma ideia sobre onde começar. Sabia que teria que ter muito cuidado, não demonstrar muito interesse no assunto, ganhar a confiança daquela gente primeiro, principalmente, a do Tião, rapaz sério de boa índole e conhecedor de toda a região canavieira e seus problemas. Convivendo pouco tempo em meio aos cortadores de cana, ela percebeu que aquela gente era simples, agradável, mas muito desconfiada, uma palavra ou uma atitude precipitada poderia pôr tudo a perder.

Jacinta estava gostando muito da companhia do Tião. Numa tarde, depois do trabalho estavam sentados no tronco de uma arvore, olhando o sol se pôr. Ela com muito jeito, tocou no nome de Tavinho, perguntou se o tinha conhecido. Tião deu uma resposta vaga e desconversou, mudando de assunto.  Jacinta achou melhor não insistir. 

Passados alguns dias, num domingo à noite eles tinham ido à Vila, estavam numa praça, tomando um sorvete, ela tocou novamente no assunto, Tião, meio encabulado, disse:

— Óia, Jacinta quem é ocê? E o que cê tá fazeno aqui?  Pois, cortadora de cana eu sei que ocê num é. Eu e todo mundo... E o capataz também já tá discunfiado.

Jacinta decidiu contar uma meia-verdade:

— Você tem razão. Na verdade meu nome é Sandra e sou Jornalista em Aracaju, vim para cá pensando em fazer uma matéria denunciando a exploração e as más-condições de trabalho a que vocês estão expostos.

Teve o cuidado de ocultar a segunda parte da história, que era vingar a morte de Tavinho, seu marido.

— Isso é pirigoso, os home do Dr. Afrânio tão por todo lado. Veja o que aconteceu com o Tavinho...

— O que aconteceu com ele?

— Óia, Sandra eu vou te apresentá um cumpanheiro lá do sindicato rural, ele conheceu bem o Tavinho e vai ti contá tudo.

Assim, Sandra conheceu Dirceu, o Presidente do Sindicato Rural, que contou com detalhes da chegada de Tavinho, seu trabalho de conscientização dos trabalhadores, que incomodou o usineiro e, por fim, sobre sua morte num baile na Vila, quando os capangas do Dr. Afrânio simularam uma briga por causa de mulher e um deles o matou. Como sempre, com falso testemunho e provas compradas o assassino ficou livre alegando legítima defesa...

Maria do Rosario Bessas

Sandra não dormiu mais a partir daquele dia da morte de Tavinho. Seu marido era um sonhador incorrigível, com vontade de mudar o mundo. Abriu mão de uma carreira jornalística, quando ao fazer reportagens, começou a conviver com pessoas humildes e exploradas pelos coronéis que tiravam a riqueza do chão, como o garimpo e a agricultura. Tavinho estava sempre visitando fazendas ou plantações onde seres humanos eram explorados e tratados às vezes como escravos. Misturava-se aos trabalhadores e ia fornando grupos, abrindo cabeças, tirando a viseira dos olhos dos coitados e fazendo com que eles lutassem pelos seus direitos. Sua última luta fora ali, na Usina de Açúcar Coimbra, um vasto território colorido pelo verde dos canaviais, com seu cheiro azedo do vinhoto, suas terras recortadas por aceiros onde as águas roubadas dos rios irrigavam o solo pródigo.

O corpo de Tavinho fora encontrado no meio das moitas de cana, retalhado a golpes de facão. Ninguém fora denunciado ou preso, aquela história que inventaram sobre legítima defesa não convenceu Jacinta. Ela sabia o marido que tinha. E com o tempo, ficou conhecendo também a história do Coronel da Usina. Decidiu que já era hora de agir. E como se tivesse pedido a Deus, a oportunidade caiu em suas mãos. Estava sozinha, caminhando pelas ruas da Vila, quando uma figura feminina lhe chamou a atenção. Aproximou-se e ficou surpresa ao ver uma mocinha, quase menina, segurando o rosto com as mãos. Viu que ela chorava baixinho e se aproximou devagar, oferecendo ajuda.

— Obrigada, moca, mas ninguém pode me ajudar. Eu só queria morrer, mas nem para isso tenho coragem.

— Não fica assim, menina, você é tão jovem. Tudo tem jeito nessa vida, me deixa te ajudar. Me conta o que te machucou desse jeito...

E depois de certo tempo, com muito jeito e paciência, Sandra conseguiu arrancar da menina o motivo de suas lágrimas. Nada muito diferente do destino de muitas mocinhas do lugar. Soube que o Coronel Afrânio se julgava dono de tudo que havia em suas terras, inclusive das pessoas, principalmente as mulheres. Quando botava os olhos em alguma do seu agrado, mandava que os seus capangas a buscassem para suas ideias, não importava se pagasse o preço com dinheiro ou com o sangue de vingança.

Sandra soube também que quando as vítimas eram virgens, a cobiça era maior. Encurralada a família, oferecia emprego, moradia, dinheiro e muitas vezes, quando achava que valiam a pena, levava muitas daquelas mocinhas para trabalharem nas suas empresas na Capital. Já era quase uma cultura do lugar, os pais venderem a virgindade das filhas — por medo ou por vontade de melhorar de vida, numa oportunidade de sair daquela miséria infernal. E a escolhida da vez era ela, a pobre Isabel...

Num instante, uma ideia diabólica passou pela cabeça da Jornalista. Era a Sandra de dentro despertando... Descobriu que a menina deveria estar às dez horas da noite na praça da Vila, sozinha, quando um jagunço viria buscá-la para levar até a casa do Coronel. Ninguém deveria ver, ela iria sozinha. Sandra combinou que iria trocar de lugar com ela. Pediu que a encontrasse em seu barraco, onde trocariam de roupas e ela a esperaria ali, até voltar. E que além do dinheiro do Coronel, ela também lhe daria mais, para que ela fosse embora daquele lugar, sem precisar se vender para o maldito velho.

Tudo combinado, Sandra foi para casa e arrumou algumas coisas. Uma última olhada no facão, que achou grande demais para usar sob a roupa. Mas ainda tinha o seu bom canivete, arma pequena, mas cortante como uma navalha. Na hora combinada, Isabel chegou trêmula e assustada, mas se encostou no velho colchão, tremendo como um coelhinho. Sandra vestiu suas roupas, ajeitou o cabelo igual, amarrou um lenço cobrindo boa parte do rosto e se dirigiu para a praça no lugar combinado. Não esperou muito e o velho caminhão logo parou ao seu lado.

— A mocinha aí é a Isabel, fia do Mané Doido?

Sandra apenas concordou com a cabeça, e sem mostrar muito o rosto, fingiu estar com medo e sem saber o que fazer.

— Entra aí. O Coronel tá lhe esperando... Mió fazer as coisa direito sinão seu pai paga o pato. Num vai se arrependê. Muié nova, o patrão paga bem, cê vai vê.

Ela ficou em silêncio até chegar à Casa Grande, onde o dono da Usina morava. Só ouviu latidos fortes de cães, mas percebeu que deviam estar amarrados. Seguiu o jagunço até a porta, quando este deu batidas fortes na madeira. A porta se abriu e ela vislumbrou o vulto masculino do outro lado. Ouviu quando o velho dispensou o jagunço, dando algumas ordens, inclusive a de levar dinheiro para o pai de Isabel. De repente, um frio lhe percorreu a espinha. Enfiou a mão no bolso da saia para ver se tudo estava lá. Então o Coronel voltou...

Sabia, pelas conversas no canavial que ele era chegado em bebidas. Que cada mulher que buscava tinha que servir na cama, com o corpo entre os lençóis e as taças de vinho. Esperou para ver. Quando ele se aproximou e tentou tirar o lenço, ela pediu bem baixinho que diminuísse a luz. Ele pareceu ter gostado. Pegou uma garrafa sobre a mesa e lhe ofereceu a bebida. Ela apenas meneou a cabeça. Sentiu seu corpo gelar e seu estômago virar quando ele a pegou pela mão e lhe mostrou o caminho do quarto. Viu quando ele sentou-se para tirar as botas e deixou a taça de vinho sobre um móvel ao lado da cama.  Nervosa, disse que precisava ir ao banheiro.

— Fique à vontade, menina, não precisa ter medo. Nada do que eu fizer com você vai ser diferente do que algum moleque um dia vai lhe fazer também. A diferença é que se eu gostar, você pode se dar bem.

Sandra não disse nada e foi ao cômodo que ele apontou. Era um banheiro exótico, cheio de espelhos e uma banheira enorme. Tirou seus apetrechos do bolso e escondeu numa gaveta do armário. No bolso deixou apenas um vidro de remédio. Saiu depois de alguns minutos e já o encontrou de roupão, sentado como um rei na poltrona que fazia de trono. Pediu que ela tirasse a roupa. Seu corpo tremeu da cabeça aos pés, mas com voz doce e delicada, disse que talvez bebesse uma taça de vinho, para se acalmar um pouco.

— Mas é claro, coelhinha! Como não pensei nisso antes? Espere só um minutinho que vou buscar a garrafa. E dizendo isso, se dirigiu até a sala, enquanto Sandra apressada, despejou todo o líquido do vidro na taça que ele deixara sobre a escrivaninha. Sentou-se numa cadeira ao lado e de cabeça ainda baixa, viu quando ele se aproximou com uma taça cheia na mão e lhe entregou; na outra mão, a garrafa para completar a própria taça.

— Então, já que você resolveu me acompanhar, vamos fazer um brinde a essa noite — ele disse. Espero que ela seja inesquecível, se não para mim, pelo menos para você.

Dito isso, virou toda a bebida que havia no copo. Sandra, simulando timidez, bebia aos pouquinhos, deixando o tempo passar, enquanto ele a olhava com um jeito estranho, entre intrigado e impaciente... Fez um gesto ordenando que ela tirasse a roupa. Ela se encolheu na cadeira, o que fez com que ele avançasse em sua direção, com as mãos estendidas como se fosse lhe arrancar as vestes. Mas, de repente, ele parou no caminho, com o olhar assustado, quando perdeu o equilíbrio e rolou para o chão.

Sandra ficou uns minutos em silêncio para ver se realmente não havia mais ninguém em casa, pois sabia que era assim que ele gostava, quando tinha suas companhias. Rapidamente pôs seu plano em ação. Foi até o banheiro e pegou o canivete que havia escondido junto com uma pequena tesoura e outros pequenos objetos. Puxou o corpo desfalecido para perto da cama, tirou a blusa e friamente começou a tirar as calças do homem. Intimamente pensava consigo: “Não foram em vão os três anos que eu fiz veterinária, antes de fazer jornalismo.  Castrar animais sempre foi o que mais gostei de fazer nas aulas.  Só que esse animal de hoje não me causa nenhuma compaixão. Nada na vida é em vão. Você não vai acabar com a vida de mais nenhuma mocinha, seu velho imundo. Esse será o preço por ter tirado a vida do homem que eu amava”.

Quando o dia amanheceu, Sandra ainda caminhava entre as fileiras do canavial que parecia não ter fim. Sob as roupas de Isabel vestia uma camiseta nova e uma bela calça jeans, onde guardava dinheiro e seus documentos no bolso. No final das fileiras do canavial, ficou feliz quando viu que Tião a esperava no lugar onde havia pedido a Isabel que lhe desse o recado.

Sandra achou estranho sentir seu coração apertado ao pensar que Tião pudesse não atender ao seu pedido. Mas ali estava ele! Ela sorriu o mesmo sorriso do primeiro dia, só que com um olhar diferente: nele existia paz e uma esperança que antes não havia. Jurou esquecer o passado, principalmente aquela noite. Deixara ao lado da cama do Coronel, uma página onde escrevera: “Lembrança de uma de suas vítimas. Nossas cicatrizes serão iguais”. Era um modo de preservar a vida de Isabel. Sorriu para Tião e estendeu sua mão, oferecendo uma vida nova, em um novo lugar. Ele simplesmente aceitou a sua mão estendida.

Saíram dos caminhos de cana e ganharam a estrada de chão, no sentido oposto ao da Usina. O dia já vinha amanhecendo e os primeiros raios de sol começavam a iluminar o céu. Um carro surgiu de repente, envolto na poeira vermelha e ofereceu-lhes carona. Os dois aceitaram agradecidos e sentaram-se em silêncio no banco de trás.

De repente, o silêncio do dia, foi quebrado pelo ronco inesperado de um pequeno avião.

— Uai, o Coronel hoje está indo embora mais cedo — disse Tião. Deve ter acontecido alguma coisa...

O motorista do carro olhou para o avião que sumia no céu e comentou:

— Já ouvi falar horrores do dono dessa Usina. Dizem que compra tudo com o dinheiro que tem, a honra das famílias, a virgindade das filhas, toma a terra dos coitados e ainda dá fim em quem se nega a vender. Fico pensando se algum dia não aparece um cabra macho e dá jeito nesse demônio.

— Quem sabe — disse Sandra. Um dia talvez apareça. Quem sabe...

Tião e Sandra olhavam o brilho do sol, que há muito não viam, surgindo no meio das árvores. Tião olhou o infinito do azul se encontrando com o asfalto lá na frente e de repente percebeu que havia um outro destino além dos canaviais esperando por eles no final da estrada.


Autores: Marina Alves, João Batista Stabile, Maria do Rosario Bessas e Celêdian Assis de Sousa.


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