quinta-feira, 27 de junho de 2013

Meu Amigo Duende

Autora: Ana Bailune

Nunca fui muito popular na escola, quando criança. Eu era um nerd. Usava óculos, era muito magro e franzino, e gostava de usar camisas de xadrez de mangas longas, abotoadas até o pescoço, mesmo quando estava quente. Tinha cabelos lisos penteados para o lado, e eu usava um pouco do fixador de minha mãe para manter a franja bem esticada. Não tinha amigos. As outras crianças apenas me toleravam, quando não estavam troçando de mim. Minhas notas eram sempre excelentes, mas nem mesmo este fato fazia com que eu fosse um pouquinho popular, apesar de ajudar os colegas quando estavam em dificuldades com as matérias. Pelo contrário; eles me usavam, tratavam-me bem antes das provas, quando precisavam de minha ajuda, e depois voltavam a tratar-me da mesma forma, ou seja, algo entre a total indiferença e a pura grosseria.

Eu era apenas um garotinho inseguro, de dez anos de idade, quando o vi pela primeira vez. Como sempre, meu irmão, cinco anos mais velho e muito popular, chegou em casa no final da tarde com sua trupe de amigos – vale lembrar que ele estava vivendo aquela fase da adolescência na qual irmãos mais novos são sempre insuportáveis e só trazem aborrecimentos. Eu estava acostumado a ser totalmente ignorado por ele quando seus amigos estavam por perto, e seus amigos também faziam questão de deixar bem clara para mim a minha não existência. Só se lembravam de mim quando precisavam de alguma coisa da cozinha – um refrigerante, um sanduíche ou outra coisa parecida.

Estranhei quando um dos garotos que estava com Pedro, meu irmão, acenou para mim e sorriu. Foi simpático. Eu nunca o tinha visto antes. Meu irmão e seus amigos entraram no quarto e fecharam a porta, mas ele permaneceu do lado de fora do quarto, de pé no corredor, olhando para mim.

Ele era um pouco mais baixo que os outros meninos. Vestia uma camiseta lisa verde-musgo, calça jeans e tênis surrados. Tinha cabelos castanhos cacheados, cujas pontas saíam de sob o estranho chapéu, que parecia um gorro de lã preto e meio-pontudo.

Fiquei ali, na porta de meu quarto, sendo encarado por aqueles enormes e simpáticos olhos azuis. Foi quando ele cumprimentou-me, dizendo meu nome.

-Olá, Paulinho!

Não respondi. Aquilo só poderia ser algum truque! Logo, meu irmão e seus amigos estariam ‘aprontando alguma’ para cima de mim! Virei-lhe as costas e entrei em meu quarto.

Na tarde seguinte, lá estava ele novamente, desta vez, sozinho na sala de estar.

-Olá, Paulinho!

Fui até a cozinha pegar um pacote de cereais, passando por ele sem responder. Ele foi atrás de mim.

-Por que não responde quando eu falo com você? Não está me vendo?

Respirei fundo:

-É claro que eu estou! Mas os amigos de meu irmão nunca falam comigo, e se falam, é porque querem alguma coisa de mim. O que você quer?

Ele sentou-se à mesa da cozinha, os dedos da mão esquerda tamborilando sobre a mesa, o rosto apoiado na outra mão, me olhando fixamente.

-Eu? Não quero nada! E você? Quer alguma coisa de mim?

-Você está maluco? Eu não!

Ele colocou as duas mãos sobre a mesa – percebi que tinha dedos muito finos e mais longos que o normal. As orelhas eram um pouco longas e pontiagudas, mas fora estes detalhes, parecia um garoto como qualquer um.

Dei um passo para trás, pois ele agora me olhava fixamente, tendo as sobrancelhas cerradas. Inclinou-se em minha direção, perguntando:

-Então por que me chamou?

-EU?! Nem conheço você!

-Na semana passada, voltando da escola, depois que aqueles grandalhões te empurraram e você caiu naquela poça de lama, você não se lembra?...

Minha memória voltou ao sofrível momento do ‘acidente’ que me deixou de castigo, depois que minha mãe me viu chegando em casa completamente enlameado. Lembrei-me que enquanto eu limpava os óculos, sentado no meio da poça e os outros meninos iam embora rindo muito, eu fizera um pedido; mas fora apenas um pedido idiota, eu jamais acreditaria que ele pudesse se realizar. Não; aquilo só poderia ser um truque de Pedro e seus amigos!

-Não sei do que você está falando – eu disse, saindo da cozinha.

Novamente, ele me seguiu até a sala, mas subi as escadas correndo e entrei em meu quarto, batendo a porta, ofegante. Encostei-me contra a porta fechada e fechei os olhos, aliviado por ter finalmente me livrado dele. Quando abri os olhos, ele estava de pé na minha frente!

Levei um susto tão grande, que dei um berro. Ele nem se alterou. Perguntou:

-Lembra-se do pedido?

Eu balbuciei:

-Si...sim! Eu... eu desejei ter alguém que me defendesse desse tipo de coisa, ou que pelo menos, me ensinasse a  me defender. Meu irmão nem liga... ter um irmão mais velho é o mesmo que nada, no meu caso!

Ele cruzou os braços:

-Pois é para isso que eu estou aqui. Meu nome é Zap, embora você não tenha perguntado!

-Zap?! Que nome estranho! E de onde você veio?

-Eu sou um duende!

-Um duende?

-Um duende! Sabe, aquelas criaturas dos contos de fadas, que vivem em florestas e perturbam seres humanos... alguns são verdes e muito feios. Mas eu não.

Depois daquela tarde, Zap passou a visitar-me todos os dias. Conversávamos durante horas, e ele me dava lições de defesa pessoal e me ensinava alguns truques de mágica, que começaram a fazer com que as outras crianças na escola se interessassem mais por mim. Na verdade, eu nem sabia o que estava fazendo quando tentava os truques, eu apenas pensava e eles davam certo. Fazia surgirem borboletas de dentro das bolsas das meninas, fazia desaparecerem objetos que reapareciam nos lugares mais estranhos – por exemplo, dentro das mochilas dos colegas. As crianças se interessavam, e até aplaudiam.

Um dia, meu irmão me viu conversando com ele no jardim. Zap já tinha me avisado que só eu podia enxergá-lo, e que bastava que eu pensasse no que queria dizer para que nos comunicássemos, mas eu às vezes me esquecia, e falava com ele em voz alta. E foi numa dessas ocasiões que Pedro nos flagrou. Imediatamente, começou a zombar d emim, perguntando se eu estava maluco, e foi contar à mamãe.

Ela passou a observar-me, e acabou, ela mesma, presenciando uma das minhas conversas com Zap (só percebi que ela estava lá tarde demais). Contou a papai. Os dois decidiram levar-me a um psicólogo, que acabou convencendo-os de que era normal que garotos na minha idade, muito tímidos como eu, tivessem amigos imaginários. Eu nem tentei fazer com que eles acreditassem que Zap era real, pois sei que de nada adiantaria, e entrei no jogo deles, dizendo que tinha um amigo imaginário.

O único problema, foi que Pedro espalhou a história pela escola, o que deixou meus pais furiosos com ele. Defenderam-me, e obrigaram-no a desmentir tudo. Fiquei exultante! Afinal, não era tão ruim assim ser maluco!

Certo dia, quando saí da escola, fui novamente abordado pelos valentões do pedaço, mas Zap me ensinara a reagir. O bando de garotos me cercou. Olhei em volta, e vi Zap encostado a uma árvore, e seu olhar confiante me fez, de repente, dar uma cambalhota incrível, e saindo do meio da roda de meninos, desferi-lhe golpes surpreendentes. Eles não entenderam nada, mas saíram correndo, e nunca mais fui abordado.

Mas, mais do que tudo, eu gostava de Zap porque ele me ouvia. Queria saber tudo sobre mim: as coisas que eu gostava e não gostava, meus filmes e músicas favoritos, o que eu gostava de ler. Passávamos horas conversando. Aos poucos, eu percebi que Zap estava se tornando muito parecido comigo fisicamente, e me admirei, mas ele disse que era tudo impressão minha; quando a coisa tornou-se óbvia demais, ele alegou que aquilo era normal; duendes ficavam muito parecidos com os seres humanos, se ficassem perto deles durante muito tempo. Era uma questão de essência, segundo Zap.

Meu amigo duende foi fundamental para que eu adquirisse autoconfiança e passasse a ter uma vida mais feliz. Um dia, eu disse a ele:

-Zap, é muito legal ter um amigo duende! Gostaria de fazer alguma coisa por você... algo que pudesse mostrar o quanto eu estou grato!
Ele sorriu, e disse:

-Não se preocupe. Não quero nada de você por enquanto! Quando o momento chegar, pedirei que você me faça um favorzinho, só isso.

Assim, passaram-se muitos anos. Eu cresci. Zap foi meu maior amigo durante o começo de minha adolescência. Tornei-me um garoto popular, e até bonito, pois fui tornando-me cada vez mais parecido com Zap, enquanto ele se tornava cada vez mais parecido comigo. Consegui até ganhar a admiração e o respeito de meu irmão mais velho!

Na noite antes do meu aniversário de quinze anos, fui dormir sentindo-me estranhamente fraco. Achei que estava pegando algum resfriado forte, e mamãe deu-me uma aspirina. De manhã cedo, eu me sentia bem melhor. Fui até o banheiro escovar os dentes, e tive o maior susto de minha vida ao olhar-me no espelho: o rosto que me olhava de volta, não era o meu! Eu tinha o rosto de Zap, as mesmas orelhas longas e pontiagudas, e meus dedos estavam finos e longos.

Soltei um grito desesperado, e desci as escadas correndo para pedir ajuda, mas quando cheguei na sala de jantar, constatei que eu e minha família tomávamos o café da manhã despreocupadamente... ou seja, havia alguém se passando por mim, aquele garoto não era eu! Vi, atônito, o momento em que minha mãe chegou da cozinha com um bolo de aniversário cheio de velas acesas, e todo mundo começou a cantar Parabéns para mim, enquanto eu sorria e agradecia.

Eu gritei. O mais alto que eu podia. Tentei tocar em meus pais e meu irmão, mas minhas mãos passavam através deles, que não me enxergavam! Ao mesmo tempo, Zap – que tomara meu lugar – olhou diretamente na minha direção, enquanto agradecia a todos pela surpresa, e entre os agradecimentos, murmurou um ‘obrigado’ que eu sei, foi para mim.

E foi assim que eu me tornei um duende.


Autora: Anabailune - Petrópolis/RJ

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2 comentários:

Celêdian Assis disse...

Excelente texto que de uma história singela de um menino, passa a uma grande viagem ao universo do ser humano e as suas complexidades, que se manifestam em seus comportamentos e fazem com que eles reajam das mais variadas formas. Você Ana, desenvolveu um tema de cunho psicológico, de uma maneira simples e envolvente, mas com extrema profundidade de conteúdo. Parabéns, gostei muito.
Um abraço
Celêdian

Helena Frenzel disse...

Ai essas trocas de identidade... Bem desenvolvido, Ana, chega-se ao final sem poder afirmar que o duende foi, de fato, mau. Abraços!