segunda-feira, 13 de abril de 2015

Terceiro Concurso do Blog - Texto 05: A herança do meu tio

Acordara tarde naquela manhã. Ainda sonolento, levantei-me depressa, quando bateram à porta fortemente. Era Matilde, minha tia e vizinha de minha mãe. Nervosa, ela gritava:
—Você não atende mais telefone e nem campainha, rapaz!
—Desculpe-me, mas eu estava dormindo! —respondi meio aéreo e sem entender toda aquela urgência. —O que está acontecendo? —continuei.
—Seu tio está a morrer e lhe manda chamar! —responde a mulher transtornada.
Como se todo o ar na atmosfera tivesse faltado ao mundo, foi assim que me senti. Sem fôlego. Uma espécie de estrangulamento, só que na alma.
Como podia ser? Eu acabara de deixar sua casa na noite anterior. Ríramos tanto. Ele foi se deitar e, segundo ele, ainda em condições de beber no mínimo mais cinco garrafas. No entanto, dissera-me:
—Deixemos para ocasião melhor, quem sabe no seu noivado, heim?
A última imagem do meu tio foi uma piscadela meio jocosa e ao mesmo tempo carinhosa, depois que me disse essas palavras. Havíamos tomado três garrafas de vinho e comido todo o queijo que havia na despensa. Não, não poderia ser —eu repetia enquanto me trocava.
Nem percebi quando Matilde saiu do quarto. Só me dei conta, quando ouvi ao longe o seu choro convulsivo. Tinham sido namorados na juventude e só não se casaram devido à maldade alheia e também por causa de uma promessa religiosa. Deixem-me explicar melhor.
Eles foram criados juntos na fazenda Ribeira, no interior de Minas Gerais, que era do pai dela. Embora todos os considerassem como irmãos, eles não sentiam e nem pensavam dessa forma. O que os unia era uma espécie de amor, diferente do parental. Descobriram cedo demais esse amor, contudo despertaram para o seu perigo tarde demais. Essas são as contradições e, ao mesmo tempo, contrariedades por que passam os homens e as mulheres que amam. As razões pelas quais se ama nunca serão dadas a conhecer, a não ser aquelas que os amantes fantasiam ou inventam e dizem ao fazerem as famosas juras de amor. No entanto, as razões para que não se ame serão sempre dadas pela realidade e brutalidade humana. Normalmente, por pessoas que não cultivaram em seu peito a leveza e doçura dos sentimentos amorosos ou até mesmo a urgência e a imensidão da paixão.
Assim, uma prima torta de Matilde começou a destilar o veneno da mentira, da falsidade. O ingrediente básico desse veneno era a inveja de sua prima, que sempre sentira desde menina. Matilde sempre fora singela, doce e ligeiramente acanhada, o que lhe dava certo encanto, ao contrário de Diva, que não soube cultivar a beleza dos traços que a vida lhe esculpiu.  Diva preferiu os atalhos que também a vida lhe apresentou, embora tivesse em seu nome a chance de se tornar uma mulher excepcional e especial, ainda que mais tarde, talvez. Dessa forma, começou a contar histórias maldosas sobre Matilde e Baltazar-esse era o nome do meu tio.
—Meu Deus, o que estou a dizer, era não! Baltazar é o nome dele! Ele vive e ainda viverá muito!  Preciso me apressar, pois são duas léguas até chegar a casa dele, e eu não posso demorar!
Com o passar do tempo, as histórias sobre Matilde e Baltazar foram se tornando cada vez piores, no sentido de insinuar liberdades e safadezas, que —Diva sabia —ninguém aceitaria que acontecessem, mesmo que todos naquele povoado soubessem que eles eram primos e não, irmãos. O que o povoado não sabia era que o pai de Matilde havia prometido a menina para Jesus e a levaria ainda jovem para um convento, principalmente quando ficou sabendo pela sobrinha dos acontecimentos entre ela e Baltazar. Sabe-se que essa promessa se deveu ao fato de a mãe e a menina terem sobrevivido a um parto muito demorado e a uma hemorragia que quase lhes levou a vida. Assim, quando todos souberam do motivo do afastamento da jovem e do moço, nada puderam, a não ser concordar, além de considerar que o pai estava certo, pois a menina e a mãe deviam a vida ao nosso Senhor Jesus Cristo, amém!
—Como eu gostaria de acreditar em Vós, Senhor! Eu rezaria agora de joelhos e lhe imploraria pela vida de meu tio. Ele não pode morrer, não agora! Ele tem 48 anos só! Só, sim! Só, no sentido de solidão! Ele nunca se casou, nunca entrou numa igreja! Porque, segundo ele, o Senhor roubou-lhe a noiva e a deu a seu filho. Não permitiu que se entregassem um ao outro e tivessem um futuro, coisa que só o amor, no sentido de somente, pode nos dar! Viveram a vida pela metade!
—Eu sou obrigado a concordar com meu tio Baltazar, Senhor! O amor é que nos dá esperança, é que nos faz seguir adiante, ir em frente derrubando todos os obstáculos, inclusive as cercas que nos colocam ao longo da vida! E ele bem que tentou! Eu soube.
Foi há muito tempo, quando ele ainda era bem jovem. Minha mãe me contou que ele saiu um dia a cavalo e não disse a ninguém para onde ia. Ficou dez dias fora.
Muitos anos depois, numa noite em que ele tomou um porre desgraçado, é que ele deixou escapulir que naqueles dias ele ficou de tocaia em frente ao convento, com a espingarda apontada para a porta da igreja que tinha ao lado. Estava só esperando o tal Jesus aparecer para atirar nele, pois tinha decidido que se ele, Baltazar, não podia se casar com a Matilde, Jesus também não.
Depois do sumiço, meu tio nunca mais foi o mesmo e só foi piorando, então. Deixou de sorrir, de falar e só voltou a conversar, segundo ele, depois que minha mãe precisou me deixar aos seus cuidados, pois ela não tinha condições de cuidar de mim. Eu tinha quatro anos. E ele, dezoito.
O povo ficou apavorado, pois como um rapaz que estava perdendo o juízo dia após dia, poderia cuidar de uma criança tão pequenina! Não sei explicar muito bem não, só me lembro de que todo dia, ao acordar, tinha leite e broa de fubá com queijo quentinha para eu comer, e ele me levava todos os dias ao açude para eu tomar banho, isso no verão, é claro! Já no inverno, ele esquentava a água no fogão a lenha e colocava na bacia para eu tomar banho quente. Eu pensava comigo mesmo como pode alguém ter medo de um homem que sabe fazer broa de fubá quente e que todo dia faz um brinquedinho de madeira ou sabugo de milho para eu brincar!
—Ele teria sido um pai amoroso, cuidadoso! Que pena meu, Deus! Por que ele não pode amar e ter uma família como a maioria? Talvez porque ele não fosse como a maioria. Às vezes, penso que ele carrega dentro de si uma maldição, uma espécie de impedimento, que nem ele nem ninguém sabem por quê.  Mas sabe que tem. Meu tio se convenceu disso e nunca mais procurou a Matilde, mesmo depois de saber que ela fingiu adoecimento mental e fugiu do convento.
Dizem que ela tentou encontrá-lo, mas, quando ela chegou para visitá-lo, a família já tinha avisado ao hospital.  E, crentes que ela tinha ficado mesmo louca, internaram-na num hospital grande, de muro muito alto e de gente muito triste, que ora ficavam num silêncio tão mudo, mas tão mudo, que a Matilde começava a gritar só para não esquecer que tinha voz e que ainda existia.
Contou-me também que, quando percebia que ia se perder nos labirintos da loucura, ela tirava a roupa, para lembrar quem era ela, quando voltasse. Porque se ela mantivesse o uniforme de louca, eles não a reconheceriam e a tratariam igual aos outros. E, nua, ela e eles teriam certeza de que aquele corpo, aquela voz eram dela, eram ela. Entretanto, ela me disse também que os médicos nunca entenderam isso e davam-lhe cada vez mais remédio. Exatamente quando ela estava melhorando, eles diziam que ela estava muito ruim.  
—Se tive alguma doença — ela dizia —foi um aperto agudo no coração, que nunca me largou, mas essa tal de loucura, insanidade, essa eu passei longe, mesmo tendo vivido tão perto dela e durante vinte anos!
—Lembro-me ainda da certeza com que Matilde falava isso. Havia firmeza nas suas palavras e brilho intenso nos seus olhos.
Há alguns anos, ela me disse que nunca compreendeu o que a medicina, a psiquiatria e a psicologia sabem da alma humana, pois, quando ela se manifesta, eles dão um jeito de a esconderem de novo, com remédios, com isolamento e com falta de atenção. Ela lembra que até choque levou. Só não ficou tantã de vez, porque sabia quando ia ter as sessões de choque e, assim, fazia um chá com uma mistura de ervas, que ela nunca contou quais eram.  Tomava três goles antes e dois depois e assim, segundo ela, o choque não cumpria sua finalidade.
Quando descobriu o efeito do chá, riu tanto, tanto, que quase a levaram novamente para uma segunda sessão, pois parecia o diabo rindo - contou-lhe um enfermeiro, que lhe dava cigarros de vez em quando e que permitia que o chá fosse feito na cozinha do hospital e levado para ela. Lembro-me de ela dizer também que esse enfermeiro era um homem bom, um homem de raízes, como ela e nossa família. Doeu-me na alma, ouvi-la dizer isso com tamanha naturalidade, após ter sofrido tanto, por terem-lhe tirado o amor e depois a razão, tão precocemente, ainda na sua juventude.
—O que a fez continuar a viver? Nunca tive coragem de perguntar. Acho que não tinha o direito. Mas gostaria muito de saber: o que faz alguém seguir em frente, mesmo depois de perder algo ou alguém que tanto desejara e amara? Algo que fazia tanto sentido para sua vida?
—Meu tio é a pessoa mais importante na minha vida, vejo isso claramente. Aliás, eu soube disso, ainda criança, quando ele fazia rapadura e guardava uma inteira só para mim. Mesmo quando estávamos sem dinheiro e vinham comprá-las, ele dizia que vendera todas.
—Nunca me esqueci de quando fui pela primeira vez à escola e comecei a chorar aflito e desesperado, agarrando-me a suas pernas, pois não queria me separar dele. Ele então assistiu às aulas durante um mês e meio até que eu me sentisse mais seguro. Não preciso nem dizer a confusão na escola e na fazenda por causa dessa decisão dele. Mas nada nem ninguém demoveu meu tio, e todo dia acordávamos bem cedo e íamos à escola. À tarde, nadávamos pelados no açude e à noite dormíamos no mesmo quarto. De vez em quando, eu podia jurar que ele me beijava a face, mas nunca soube ao certo.
—Meu tio, não vá, ainda não! Temos tanto o que fazer! Ainda não aprendi a fazer rapadura, e você ainda não me ensinou a fazer carrinho de boi para o filho que terei, lembra? Esqueci-me das épocas certas para o plantio do arroz, do feijão e do milho! Por favor, não me abandone! Quem vai fazer broa de fubá quente pra mim?
Limpo as lágrimas e entro no quarto do meu tio.
Silêncio absoluto. Tristeza profunda.
Ele me deu a vida dele, pois cuidou de mim até que eu pudesse seguir o meu caminho. E agora o que eu faço para que ele possa seguir o dele?  Eu mal sei viver e, quiçá, o que dizer sobre como ir ao encontro da morte! Seguro-lhe as mãos, frias, moles. Nada parecido com o que tínhamos vivido ontem à noite.
—Como pode ser? Em tão pouco tempo, da alegria para a tristeza, da vida para a morte?
Interrogo ao vazio.
—A Matilde bem que podia fazer um chá que parasse o tempo. E o fizesse voltar exatamente àquele dia em que meu tio foi até o convento. Ela sairia de dentro dele correndo e subiria na garupa do seu cavalo e trotariam pelas estradas da vida, sobreviveriam às curvas do amor e da vida em comum e teriam três filhos. Dois meninos e uma menina. A roça precisa de muitos braços e fortes para ararem a terra e cortarem a lenha. Os afazeres da casa são muitos e monótonos, mas a mulher tem paciência e sabe retirar da vida o melhor, vejam a Matilde.
Mesmo depois de tudo o que passou, ela acorda todo dia às cinco horas da manhã, vai para o hospital e ainda é enfermeira particular nas folgas.
—O que será de Matilde depois que ele se for? A vida já o afastara dela por duas vezes! —O que posso fazer por eles? 
Silêncio profundo. Tristeza absoluta.
De pé, o jovem homem entristecido tosse engasgado e fecha os olhos, enquanto o homem deitado e enfraquecido o observa com alegre surpresa e lhe diz:
—Querido Antônio! Que bom que veio! Pensei que teria que tomar as cinco garrafas de vinho sozinho!  Disse com esforço.
Sorrio. Misto de desespero e alegria, por vê-lo brincar diante do escuro, do vazio, pelo menos é essa a ideia que faço da morte. Não consigo ver beleza, nem leveza! Penso amargurado.
—Não se entristeça, meu filho, a vida é cheia de surpresas e não podemos fugir a elas. Há momentos felizes e há momentos de dor. Não façamos deste nem uma coisa nem outra. Apenas estejamos juntos. Sente-se aqui. Continue segurando minhas mãos. Até que eu me despeça de você e da vida. É só isso que lhe peço. Ah! Tenho outro pedido. Cuide da Matilde, pois ela pode não aguentar. Ela é frágil. Lembra-se do problema dos nervos dela, não deixe que a tranquem naquela gaiola terrível, onde os pássaros não cantam, nem de desespero! Eu nunca entendi por que Deus não quis que ela fosse minha esposa e nem mãe dos meus filhos e, há muito tempo, eu deixei de querer entender o porquê.
—Talvez ela fosse muito melhor do que eu, talvez não fôssemos felizes juntos, talvez eu não a merecesse, quem sabe? O que sei é que nunca deixei de amá-la e foi por amá-la que eu consegui amar você. Todo dia eu acordava e pensava que ela saíra cedo de casa e fora para o trabalho na fazenda vizinha, deixando você para eu cuidar. Então, eu tinha forças para levantar e tirar o leite, fazer a comida, levar você para a escola e, mais tarde, vê-lo tomar a direção da cidade e seguir seu caminho rumo à vida. Então, eu penso que Deus não me deu a Matilde, porque ele precisava te dar um pai, e o escolhido fui eu! Se foi assim, meu filho, eu te digo que posso não ter sido o homem mais feliz do mundo, mas fui o pai mais feliz e orgulhoso do mundo. Posso morrer em paz!
—Não, pai, não vá agora! Não antes de eu lhe dizer que o amo mais do que tudo nessa vida! Não vá antes de eu te dizer que vou aprender a fazer rapadura e broa de fubá quente para os meus filhos! E que, se eu tiver a sorte de encontrar uma esposa, eu vou amá-la como você amou a Matilde, na presença ou na ausência! E também quero lhe dizer que vou contar aos meus filhos o pai maravilhoso que tive e que, só por isso, eu também pude ter filhos!
—Não vá, pai!
Cala Antônio, as frases na garganta.
Por que Antônio não disse nada a ele? Por vergonha?  Por medo dos leitores acharem que é pieguice?  Não!  Antônio nada disse a Baltazar, porque, muitas vezes, na vida, a intenção adia a ação. A palavra se segue ao gesto. E o gosto, normalmente, desfaz-se pelo desgosto.
O susto impede a serenidade. A vida não pressente a morte. E, muitas vezes, a morte vem rápida e a atropela.
Após o enterro, segui para casa e encontrei Matilde desolada. Não teve coragem de ir ao enterro. Já tivera que enterrá-lo tantas vezes, dentro dela.  Também não fora, porque sabia que esse enterro era definitivo, preferiu então ficar com os outros, na memória.
Perguntei-lhe se queria um chá, e ela me disse:
—Só se for um que me faça dormir e ir para junto dele para sempre!
—Então já lhe trago um café! Dei-lhe um beijo na testa e me afastei.  O que dizer numa hora dessas, o que fazer?
 Não tive respostas.
Servi-lhe, e então ela me disse:
—Sabe, Antônio! Eu nunca entendi por que Deus não quis que eu casasse com o Baltazar e fosse a mãe de seus filhos! Hoje, com a morte dele, eu encontrei a resposta. É porque, se eu fosse a sua esposa e ele morresse, eu também morreria e talvez deixássemos nossos filhos órfãos! Então, em vez de deixarmos filhos órfãos, Deus mandou a ele um enteado, que ele amou como a um filho, e eu também. Tu sabes, não é?
—Sim, Matilde, sei o quanto me amas! Mas agora precisa descansar, é um dia difícil para todos nós!
—Sim, eu vou descansar. Venha dê-me um beijo de despedida.
—Ainda incrédulo, aproximei-me dela, mal tive tempo de beijá-la e pude ouvir um suspiro.
Até hoje não sei se de dor, amor ou alívio. Finalmente, estariam juntos, na eternidade, segundo os que acreditam.
—Eu, que ainda não creio em Ti, Senhor! Entristece-me que não tenham estado juntos nem na vida e nem na morte! Mas posso dizer que sou um felizardo! Sou herdeiro de um amor sublimado!

3 comentários:

Anônimo disse...

Apaixonei-me pelo texto. Tocante e belo. Conceição Gomes

Anônimo disse...

Muito bom. Essa história poderia virar um romance pleno de imagens literárias. Perfeitamente dentro dos parâmetros do concurso. Parabéns a quem o produziu.
Alberto Vaconcelos

marina Alves disse...

O amor através do tempo. Emocionante! Parabéns ao autor.