sábado, 12 de setembro de 2015

Dores, amores e uma canção

Alice Gomes

Seria uma bela canção como qualquer outra bela canção, não fossem as marcas profundas deixadas, em três fases distintas, na minha vida. E uma canção, quando se torna a trilha sonora de uma vida, nunca mais dela se esquece.
“O teu olhar caiu no meu, a tua boca na minha se perdeu; foi tudo lindo, foi tão lindo, foi...”
Maio de 1995. A noite em que dormi na sua casa, hóspede da família, foi decisiva para unir duas pontas de uma história feita de ilusões. Uns dez anos que não a via. Tornara-se uma linda mulher, quem diria, aquela pirralhinha dentuça de cabelos despenteados! Que idade mesmo? Uns treze ou quatorze, nem me lembro...
Casa pequena, foi-me oferecido o seu quarto para o pernoite, ela no sofá. Ficaria eu no sofá, sem problema, porém, diante da insistência da mãe e dela própria, resignei-me a dormir num quarto de paredes cor-de-rosa, ursinhos e penduricalhos que desciam do teto até quase ao meu nariz.
— Está tudo de acordo? Precisa de alguma coisa? Olha, aqui na parte de cima  do guarda-roupa tem o edredom, caso esfrie. O banheiro fica ali no corredor, segunda porta, mas você ainda se lembra, não? O interruptor ao lado direito, quase atrás da tv. – De um só fôlego, naquele tom polido e ansioso das camareiras de hotel em  final de expediente.
— Está tudo bem, não se preocupe e obrigado por tudo. – Respondi, também rapidamente, incomodado pela presença daquela quase estranha e linda mulher. Eu precisava estar só para me reencontrar. Tantos anos passados desde que eu saíra daquela cidade e da vida daquelas pessoas e agora ali, meio sem jeito. A família toda, muito minha amiga, que me ajudara a suportar alguns dos piores anos de um casamento infeliz.  Muitas e muitas vezes eu vim àquela casa unicamente para conversar amenidades, jogar dominó ou cartas com eles. Seus dois irmãos, ela e eu formávamos as duas duplas, e passávamos horas a rir e a brincar inocentemente, sempre ao som de canções da época ou até mais antigas, das quais ela gostava, para minha surpresa, pois eram do meu tempo e não do seu.
— Você ainda tem aqueles discos que ouvíamos quando eu vinha aqui? – escapou-me a pergunta que transformaria a minha vida.
— Sim, tenho todos ainda guardados. Estão aí numa caixa, embaixo da cama. Quer que eu ligue o toca-discos pra você? – indagou, aproximando-se.
Por um momento pensei em dizer não, mas, não sei se pela demora na resposta ou pela urgência do reencontro com o meu único pedaço de passado feliz e nisso a música talvez ajudasse, quando dei por mim já um som baixo e melodioso invadia o ambiente. E já eu, sentado na cabeceira da cama e ela, na outra extremidade e, entre nós, diversos discos espalhados. – Olha este! Lembra daquele dia, assim, assim...? – Sim, me lembro. E esta música? Lembra daquela vez em que... E, aos poucos, aqueles dez anos em que estivemos distantes desapareceram e me senti transportado novamente para o seio daquela família tão querida, que tão bem me acolhia sempre que eu precisava.
Num determinado momento, (sim, determinado, porque me parece, hoje, determinado pelo Destino), as palavras da canção: “ o teu olhar caiu no meu...” aniquilaram de vez as minhas forças. Debrucei a cabeça sobre o colchão, com uma vontade imensa de atravessá-lo, e ao centro da Terra, e ir sumir lá pelo outro lado do mundo. Sumir com todas as lembranças dos meus longínquos vinte anos na década de setenta, quando a ouvira pela primeira vez e a sussurrara nos ouvidos da primeira namorada, que viria a se tornar esposa.  Lembranças de todas as dores do mundo, que foram minhas, pela escolha errada da mulher errada na época errada. E sumir comigo próprio, que não soubera me salvar a tempo de não fazer sofrer a mim, à minha companheira e aos meus filhos, testemunhas e vítimas de um casamento angustiosamente frustrado. Sumir até mesmo com a lembrança recente da razão pela qual eu viera parar naquela casa, pernoitar para seguir adiante, numa viagem que me fizesse esquecer o doloroso fim de uma união de tantos anos.
Foi nessas e por essas circunstâncias que o toque suave dos seus dedos nos meus cabelos arrepiaram-me até à alma. Levantei a cabeça, olhos fixos e depois fechados... “E foi tão lindo, foi, e eu nem me lembro do que veio depois”... Amanhecemos num abraço contorcido de cama de solteiro num quarto de paredes cor-de-rosa, ursos e discos pelo chão e penduricalhos a fazer cócegas no nariz. O sol, batendo no rosto, a me lembrar que era preciso urgentemente desarrumar o lençol do sofá e torcer para que o sono da mãe tivesse sido pesado. Não o foi. Ela já nos esperava com o café pronto e sorriso nos lábios. Vim a saber por ela, com o olhar assertivo e encabulado da filha, que aquele momento teria que ser vivido um dia, pois que senão, a filha não desengasgaria aquela paixão-espinho-de-peixe que lhe atravessava a garganta. Vim a saber detalhes dos quais eu nem sequer supunha daquele amor platônico pré-adolescente, enquanto eu a considerava uma pirralha boa parceira de baralho. Da vigilância permanente da mãe e irmãos para que ela não se excedesse e eu não desconfiasse, pois sabiam eles, mais velhos, de todos os meus problemas reais da época e que eu certamente me afastaria, caso soubesse que uma garotinha estaria interessada em mim, tão mais velho que ela e casado. Mal casado, sabíamos todos, mas responsável o suficiente para não tirar proveito de sua inocência.
O mundo é feito de ilusões e eu tive as minhas, por duas vezes. Na primeira, quando eu, jovem, me perdi de amores por uma mulher e com ela constituí família e envelheci mais que devia. Na segunda, eu, meia-idade, cabelos indecisos entre preto e cinza, me perdi de amores por uma jovem que me convencera de que eu era um semi-deus. E “eu me senti renascendo outra vez”... Fiz da minha vida uma canção. Esqueci, por um precioso tempo, das dores do mundo e me entreguei de corpo e alma àquela criatura, tão sedenta de vida, tão ávida de tornar realidade as suas mais loucas e ensaiadas fantasias. Realizei-as todas, as delas e as minhas. E fui imensamente feliz ao seu lado, mesmo nas horas em que o medo de perdê-la me roubava horas de sono e, nessas horas de vigília, em que eu a tinha em meus braços, a sono solto, me vinha a certeza de que nunca mais seria o que fui, depois dela.
Poderia terminar aqui a minha história e seria um final sublime, porém todas as ilusões, que pena, um dia acabam. Acabou-se a minha primeira quando tive de fazer ver à mulher errada que alguns namoradinhos apaixonados um dia despertam, sufocados e envelhecidos mais do que deveriam e que, nesse dia, é preciso libertar-se para não mais sofrer. (Por onde andará meu primeiro amor? Nem sei se ainda vive...) Acabou-se a segunda quando tive de me fazer ver que garotinhas apaixonadas um dia despertam, sufocadas por insônias alheias e que, nesse dia, é preciso libertar para não mais fazer sofrer. (Por onde andará meu segundo amor? Saberá que ainda vivo?...)
Pensando no mal e no bem que nos fazem ilusões e desilusões, e o que delas em nós permanece, brindo, sereno e só, à minha nova fase, a terceira das idades: aquela, onde se pode ouvir, em silêncio, e entender e absorver cada um dos versos de uma linda canção. 

Autora: Alice Gomes
Porto Velho/RO

3 comentários:

Anônimo disse...

Excelente texto, perfeitamente dentro dos parâmetros do concurso.

parabéns a quem o produziu.

Alberto Vasconcelos

Marina Alves disse...

Tão real quanto a própria vida. Que bom se viver pudesse ser um eterno conto de amor, sempre com final feliz. O conto ficou joia! Parabéns ao autor.

Anônimo disse...

Excelente conto. Bem desevolvido, enxuto e com final intrigante. Conceoção Gomes.