domingo, 27 de março de 2016

Nas ondas do rádio e do amor

Autora: Celêdian Assis de Sousa

Ouvir o programa matinal, cuja abertura era sempre feita com uma declamação de um poema de amor, seguido por uma reflexão e depois por uma seleção musical, era o mais puro deleite para Rosinha.
... — Esta música vai para alguém e esse alguém sabe quem... Falava Francisco, o locutor da rádio local, enquanto se ouvia ao fundo, a introdução de uma música, num belíssimo solo de violão. Com o ouvido colado ao rádio portátil, Rosinha fechou os olhos, sorriu e repetiu para si mesma: eu sei, eu sei meu amor... E cantarolou baixinho como se fizesse um dueto com o cantor Fagner: “Quando penso em você, fecho os olhos de saudaaaaaades, tenho tido muitas coisas, menos a felicidade...”.
Rosinha, como qualquer menina no esplendor de sua adolescência, sonhava com aquele amor que, rara e furtivamente, ela podia ler nas fotonovelas. Criada no seio de uma família muito severa e ainda sem a permissão dos pais para namorar, todo encanto e todos os suspiros lhe eram permitidos, desde que não fossem notados por eles. Os sentimentos iam desabrochando timidamente, por Francisco, aquele homem feito, dez anos mais velho que ela e o mais bonito e cobiçado rapaz da cidade. Sabia que era quase impossível que ele a notasse, mas, ainda assim, alimentava-se da sua ilusão.
Setembro chegou e nesse mês se preparavam os estudantes do Ginásio Estadual para o grande desfile cívico do dia sete, que em todos os anos acontecia na cidade, ou então acontecia em uma cidade vizinha, onde os estudantes visitantes desfilavam representando a sua escola. Formava-se uma caravana e lá iam as meninas felizes por aquela oportunidade de se divertirem fora de sua pacata cidade. Para Rosinha, o evento, a viagem, era uma verdadeira aventura. Naquele setembro de meados dos anos setenta não foi diferente, muita euforia e expectativa nos dias que antecederam o desfile e quando chegou o momento do embarque, Rosinha teve uma grata surpresa, talvez a mais emocionante de sua vida: Francisco estava no ônibus e acompanharia a turma naquela viagem. Como se fossem aquelas coisas do destino, nada premeditado, os assentos reservados a eles, eram lado a lado. Ela não se continha de tanta felicidade, mas tímida como era, alguém só notaria se observasse o quanto a sua face tornou-se ruborizada.
A viagem era divertida e muito barulhenta, pois os estudantes cantavam o tempo todo e se moviam de seus assentos para o corredor, numa verdadeira algazarra. Rosinha ainda perplexa com a presença de Francisco ao seu lado, ficou mais comedida, preferiu entabular uma conversa sobre as músicas que ele escolhia em seu programa e não conseguiu esconder o quanto era fã dele. Ele a ouvia atentamente e sorria amavelmente. Em certo momento tomou a mão dela e a beijou e seguiram de mãos dadas, durante toda a viagem. Rosinha emudeceu. Não sabia o que fazer com aquela nova emoção e Francisco notando todo o seu desconcerto, perguntou-lhe: Você ouviu um dia desses, a música Canteiros, oferecida para alguém?  Ela quase desfalecendo, respondeu que sim apenas com um aceno de cabeça. Ele prosseguiu dizendo: Não imagina para quem era? Ela não conseguia responder, apenas balançava a cabeça em sinal de negativa. Foi quando Francisco a fitou ternamente, tomou a face de Rosinha entre as mãos e deu-lhe um longo beijo, o primeiro da vida dela. Com o coração disparado, ela não conseguia assimilar o que ele acabara de declarar com aquele beijo, apenas sentia aquele momento como se fosse um sonho maravilhoso.
Chegaram ao destino e se separaram para os preparativos do desfile, mas Rosinha não parava de pensar em Francisco e como seria a volta da viagem, quando estariam novamente lado a lado. Não se viram mais durante o desfile e na volta, Francisco ocupou outro assento sem nenhuma explicação. A menina não entendeu aquela atitude e ficou desolada. Não sabia o que fazer nem o que pensar, e não pode conter as lágrimas que rolaram pela sua face.   
De volta à cidade natal, desceu do ônibus e não se despediu dos colegas, seguiu rapidamente para sua casa, trancou-se no quarto e chorou copiosamente por muito tempo, até que adormeceu. Acordou no dia seguinte e sua primeira ação foi ligar o rádio para ouvir o programa de Francisco. E ele abriu a programação com um simples poema, mas o mais lindo que Rosinha já tinha visto:
As rosas são raras belezas em cor
exalam seu perfume suavemente
tornando-se únicas em esplendor
mas são apenas flores, simplesmente
Mais rara é a beleza do meu amor
quando nasceu espontaneamente
por uma Rosa com nome de flor
mas foi  apenas um sonho, infelizmente
Em seguida, como era habitual, Francisco propôs a reflexão do dia e antes destacou que aquele era o primeiro poema de sua autoria, que o criara na noite anterior, tomado de uma sensação de que a sua alma precisava falar e ela só encontrou ouvidos na poesia. E depois continuou a falar de amor nas suas variadas formas. Concluiu a sua reflexão dizendo: A mais rara forma de amor é aquele que preserva o outro, para que ele se mantenha sem sofrimento, amor que protege o outro, como os espinhos protegem a rosa, para que ela se mantenha intacta. É dura a realidade, meus caros ouvintes, mas saibam que a renúncia é também uma linda forma de amar.
Rosinha desligou o rádio em prantos, entendeu que Francisco a amava e que talvez ela nunca soubesse o motivo de sua renúncia, mas bastava-lhe naquele momento saber de seu amor.
Passaram-se alguns dias para que Rosinha tivesse coragem de ligar novamente o rádio. Ligou exatamente no dia em que Francisco se despedia de seus ouvintes, comunicando-os de sua partida para a capital, onde se casaria daí a alguns meses e também aceitaria uma proposta de trabalho irrecusável.
Muitos anos depois, Rosinha, feliz e muito bem casada, lembrando-se de Francisco, riu muito de seus arroubos de amor adolescente. Não demorou muito tempo para que ela entendesse que a vida sempre se encarrega de abrir novos caminhos para a felicidade. E ainda no embalo daquelas lembranças, cantarolou baixinho como se fizesse um dueto com o cantor Milton Nascimento “Qualquer maneira de amor vale a pena, qualquer maneira de amor valerá...” 

Autora: Celêdian Assis - Belo Horizonte/MG

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom texto que tem os ingredientes para ser verdadeiro.

Perfeitamente dentro dos parâmetros do concurso.

Parabéns a quem o produziu.

Alberto Vasconcelos.

Marina Alves disse...

Parabéns pro Francisco que soube ser honesto e saiu de cena no momento certo. Não faria feliz a Rosinha. E que bom que se pode rir depois daquilo que já foi pranto. Das ilusões da vida, uma beleza de conto. Parabéns!!