segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Em parafuso

Texto de: Samanta Geraldini
Lá estava eu a torcer e afrouxar parafusos no setor maquinário mais uma vez. Era um trabalho extremamente monótono, desgastante e humilhante, mas era o melhor que conseguira para sobreviver nesses últimos anos de muito perrengue.
A esteira passava com os objetos de aço e eu, com uma pequena chave, rosqueava o parafuso o mais rápido possível, apertava o botão vermelho à frente e fazia a esteira rolar, até que o próximo objeto chegasse. E isso se repetia durante todo o expediente. Eram oito horas seguidas nesse trabalho que qualquer robô faria mais rápido e melhor que eu.
Não darei muitos detalhes da firma onde trabalhava. Era um lugar pequeno, sujo e malcheiroso, e tenho pouca empolgação para dizer algo mais a respeito.
Os setores eram separados em “maquinário” e “elétrico”. No entanto, apenas poucos passos e uma parede separavam os trabalhadores de cada lado.
Luzia trabalhava na caldeira, no mesmo setor que eu. Ela era tudo pra mim! A mulher que me fazia ter ânimo para continuar trabalhando como apertador de parafusos, que me fazia esquecer o que é “sentido horário” e “sentido anti-horário” e me perder todo na função mais fácil do mundo, que me fazia querer ser alguém na vida e levá-la comigo para viver no meu mundo ideal. Mas Luzia era uma mulher muito independente e mal me notava naquela oficina.
Para fugir do tédio, meus colegas e eu sempre conversávamos. Falávamos de coisas bastante banais, mas que eram um alívio para nossas mentes enferrujadas que iam, cada vez mais, perdendo o senso crítico e a capacidade de pensar. Nesse dia em questão, conversava com meu velho amigo Barret, uma francês-zinho que veio ao Brasil não sei para quê, instalou-se na minha casa e decidiu, como um espelho, fazer tudo o que faço da vida.
- Barret, faz um favor para mim? Larga essa chave suja de óleo e vai na caldeira ver o que a Luzia está fazendo. Eu faço trabalho dobrado enquanto você não chega.
- Por que eu tenho que ir? Vá você! É você que gosta dessa mulher! – retrucou ele, com um ar de revolta raríssimo de sua parte.
- Oras, não é você quem gosta de tudo o que gosto?! – estava revoltado também.
- O quê? Cher ami, preste atenção no que está falando! Tudo bem, eu vou, mas porque sou uma pessoa de bom coração.
Trabalhando, trabalhando e trabalhando, sem nunca me sentir orgulhoso de nada, eu via os minutos passando. Sentia fome e um roncar vergonhoso no estômago que, por vezes, chamava atenção dos meus companheiros de cargo. Sentia sono, porque quando chegava em casa e tentava dormir, eu continuava apertando parafusos mentalmente e não descansava de jeito nenhum. Sentia raiva de Barret que não voltava mais, deixando seu trabalho em minhas mãos. E também sentia uma estranha coragem para falar cara a cara com Luzia, qualquer coisa que fosse, só para poder ouvir sua voz e alegrar meu dia inútil.
E como Barret havia desaparecido, virei-me para o mais novo companheiro de função e lhe disse:
- Muito bem, é hora de ver se você realmente está preparado para isso. Cubra meu serviço por um instante. Ah, e o de meu amigo também, já que eu estava cobrindo-o.
Antes que ele abrisse a boca para resmungar, eu havia virado as costas e seguido em direção à caldeira. Usava uma flanela amarela para retirar o óleo das mãos, no entanto parecia que usá-la para secar o suor que surgia em minha testa seria mais favorável.
Mas quando avistei Barret e Luzia conversando amistosamente em um canto daquele cubículo onde ficava o forno de centenas de graus, meu sangue ferveu e não havia toalha que secasse o suor escaldante em meu rosto. Meus punhos se fecharam enrijecidos e eu parti para cima do francês de sangue quente e cabeça vazia, sem pensar na cena esdrúxula que iniciava.
Contudo, antes que meu soco atingisse a cara barbada daquele baixinho, Luzia se interpôs e me fez parar.
- Não! Porque faz assim com seu amigo, que só quer te ajudar?!
- E me ajuda cortejando a mulher que amo? Ora essa, não é assim que funciona uma amizade...
- Cher ami, eu estava apenas contando a ela o quão talentoso você é. Umas mentirinhas às vezes ajudam, você deveria saber.
Depois desse insulto, não me contive e avancei uma segunda vez, desviando de Luzia e acertando em cheio o estômago de Barret. A mulher, atrás de mim, deu um grito rouco, e eu, pensando que fosse apenas frescura de mulher, ignorei e desferi novo golpe no meu falso amigo.
Luzia, porém, continuava gritando, e era um grito agudo e cheio de medo. Olhei para ela e vi algo estranho surgir atrás de sua silhueta. Uma chama ardente de fogo consumia sua roupa e queimava sua adorável pele. Tentei socorrê-la, mas fui agarrado por Barret e levei um chute atrás do joelho, caindo no chão.
O homem correu e pegou-a no colo, no ato mais estúpido de todos. O fogo, que antes invadia o tecido branco do avental de Luzia, passou a percorrer as malhas da roupa de Barret também. E os dois pulavam e gritavam numa dança bizarra que me fazia rir e enfurecer num só instante.
Por sorte consegui pará-lo. Retirei minha dama das mãos dele e, nesse tempo, alguma pessoa mais pensante que eu e meu amigo já vinha com um balde d’água para apagar o fogo.
Envergonhado, voltei para minha esteira e continuei apertando os parafusos até o horário de ir embora. Pela rua, Barret e suas manchas roxas pela face me seguiam, como sempre fizeram e sempre fariam. E como esperava, Luzia nunca mais olhou para mim, dando um fim a nossa história de amor que ao menos teve um começo.
E sofrendo de amor, com meus parafusos soltos e perdidos em algum lugar dentro de mim, cá estou eu, a torcer e afrouxar parafusos de ferro, pois esta é a única coisa que sei fazer.   

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