domingo, 30 de agosto de 2015

Parabéns aos vencedores:

Chegamos ao final do "Terceiro Concurso do Blog Gandavos," cujo objetivo sempre foi incentivar a leitura, recompensar autores e publicar em livros de papel, os melhores textos. 

Parabéns aos autores vencedores:


Primeiro lugar: Texto 36 - VENTOS DE ABRIL (206 pontos)
Marina Alves - Lagoa da Prata/MG


Estou muito feliz com o resultado. Muito feliz também em ver contos tão bons dos amigos Lucevan, Maria Mineira e Alberto Vasconcelos sendo reconhecidos.
Parabéns a você por mais essa realização. A literatura agradece, todos nós agradecemos. Poucas coisas na vida são tão gratificantes como ver um projeto deste teor se concretizar. Estamos aí com mais uma finalização, e para mim, de maneira especial, esta é mais uma marca que guardo com muito orgulho, pois sei da importância, amplitude do Gândavos.

Marina Alves




Segundo lugar: Texto 15 - IGUAIS NAS DIFERENÇAS (205,80 pontos)
Charles Lucevan - Ji-Paraná - Rodonia/RO 


Parabenizando antecipadamente a primeira colocada Marina, e a todos os colegas competidores, manifesto a minha alegria e satisfação por ter participado do concurso e minha gratidão pelos votos recebidos. A todos vocês o meu muito obrigado!
Charles Lucevan




Um certame diferenciado, que foge do habitual  em propostas do gênero. Uma competição sadia e enriquecedora em que o autor tem a  oportunidade de transpor obstáculos construtivos.
Aqui falamos de algo incrível chamado LITERATURA. Ser escritor é desafiar-se o tempo todo, no que tange à sua própria capacidade de superar prazos, críticas negativas; ter a consciência de que a inspiração pode não visitá-lo e, acima de tudo, ter humildade suficiente para aceitar uma derrota, pois este revés pode significar o impulso para conquistas futuras.


Terceiro lugar: Texto 02 - A ÚLTIMA REVELAÇÃO (204,60 pontos)
Maria Mineira - São Roque de Minas/MG


Quarto lugar: Texto 12 - AMOR IMORTAL (204,30 pontos)
Alberto Vasconcelos - Santo André/SP


Agradeço de coração, a todos os autores  que assimilaram a proposta inovadora no âmbito dos concursos literários e aproveitaram a chance que este concurso, deste modesto blog, ofereceu  a todos os participantes. Agradeço de coração aos autores: Geraldinho do Engenho; Nêodo Ambrósio de Castro, Denise Coimbra, Defranco (Dermeval Frossard), Charles Lucevan, Conceição Gomes, Gerson de Carvalho Silva, Alberto Vasconcelos, Anajara Lopes, Maria Tereza Maith Moreira, Rosana de Pádua (in memória), Michele Calliari, Alice Gomes, Viviane Rodarte, João Batista Silva, Magnu Max Bomfim, Carlos Costa, Patrícia Celeste Jesuíno, Neusa Gomes, José Bueno Lima, Oliveiros Martins de Oliveira, Suzo Bianco, Celêdian Assis de Sousa, Samanta Geraldin, Kevin Talarico, Willes S. Geaquinto; e também a autora e colaboradora neste projeto Maria Mineira.

A grade de notas dos autores será encaminhada a cada participante nas próximas horas.

Obrigado, a autores e leitores.

Que venha o livro: 

GANDAVOS - Amores: Idos, Vividos e Queridos

Carlos A Lopes
Coordenador do Projeto






sábado, 29 de agosto de 2015

Iguais nas diferenças

Autor: Charles Lucevan

Como acontecia todos os dias o cascudo veio, só que dessa vez veio pelas costas, na nuca, a traição, mas dessa vez foi tão forte que o rapaz franzino foi lançado para a frente onde tropeçou e bateu forte a cabeça numa das quinas do bebedouro da escola de alfabetização de adultos da zona rural, do município de Mulungu. O rapaz franzino, tímido, de aparência frágil e delicada era Laércio, cujo sangue começava a escorrer agora pela têmpora esquerda. Não era aceito pelos colegas grosseiros cheios de testosterona que o agrediam diuturnamente fazendo dele brinquedinho da hora dos intervalos escolares.
A dor foi tão intensa que Laércio pensou que iria desmaiar e chegou a desejar isso. O desmaio não veio, mas, fingiu-o, na esperança de que não iriam bater novamente em alguém desfalecido. Por isso, onde estava, ficou, caído de bruços no piso molhado pela água derramada, com um dos braços sobre o bebedouro que caíra junto consigo. Laércio tinha já 35 anos nesse dia. Morava na roça, sozinho, sem pais, já mortos em acidente com o caminhão pau-de-arara, indo trabalhar numa propriedade vizinha num desses mutirões que aconteciam todos os anos onde todos se reuniam para ajudar o vizinho a realizar todas as tarefas da sua terra, sabendo que o próximo passo seria que esse mesmo vizinho estaria no próximo mutirão vindo ajudar na realização das tarefas de sua própria terra. Ninguém naquela terra pobre tinha condições de contratar trabalhadores, e, apesar das disposições e coragem pra enfrentarem o serviço, nunca dariam conta de fazer tudo. O mutirão era solução boa demais pra resolver o problema de todos. Por essas e outras, como já dito, Laércio vivia só, saboreando sozinho todas as suas amarguras.
Levanta, maricas! Ouviu enquanto seu agressor testava a sua inconsciência dando lhe pequenos chutes em sua costela. Achou melhor continuar “demaiado” na esperança de que o deixassem em paz em sua agonia.
Ouviu um baque surdo e abafado e um grito de dor enquanto que seguidamente um braço forte cujas mãos calejadas agarraram-no na parte de trás do seu pescoço fino e o ergueram do chão sem fazer qualquer esforço aparente. Pela rudeza do gesto receou que morreria caso o sujeito desconhecido resolvesse também lhe bater. Teve a certeza de que não escaparia vivo do próximo golpe.
Ousadamente, desafiando seu medo interior, abriu o canto dos olhos para saber quem seria o responsável pelo seu desencarne. Chegando no céu, assim poderia apontar pra Deus o responsável por tal ato e exigir Dele a justiça. No entanto, para a sua supresa, que não sabia ser boa ou ruim, quem lhe segurava com apenas uma das mãos com a mesma facilidade que se segura um frango depenado pelo pescoço, era uma mulher extremamente robusta e segura de si que o erguia e sacolejava na direção dos seus algozes e bradava em alto e bom som, como trovão reverberando em ecos graves nos azulejos do ambiente da cantina:
Quem tocar nele de novo vai se ver comigo! Quem o agredir verbalmente vai se ver comigo! Vai apanhar de mulher e quero ver quem vai ser o “machão” da escola depois disso!
Quem assistia a tudo em volta, podia jurar ter visto um leve sorriso se fazer no canto dos lábios do “incosciente” Laércio.
Alguém ofereceu uma cadeira para nela pousar o corpo dele enquanto sua salvadora levantava o bebedouro caído e dele lhe tirava água gelada para lhe molhar o rosto e lavar os ferimentos enquanto ele recebia tapinhas nas bochechas para recobrar os sentidos.
Muito obrigado! Você foi a única pessoa que me defendeu em toda a minha vida!
Não tem de quê! Você foi o único homem da escola que nunca me maltratou!
E porque eu te maltrataria?
As mulheres não me aceitam por ser “macha” demais pra elas. Os homens não me aceitam por me acharem feia demais pra ser mulher, forte demais pra ser feminina.
Por meu lado, os homens me julgam bonito demais pra ficar perto deles, frágil demais pra ser homem, delicado demais pra ser “macho”...
Qual o seu nome?
Laércio! E o seu?
Jovina!
O respeito nasceu ali. Laércio e Jovina passaram a andar sempre juntos, trocando experiências. Viraram confidentes. Ambos viviam sós em seus mundos. Foram se descobrindo aos poucos. Ele, apesar de conhecer o ofício, não tinha forças para trabalhar muito na enxada ou no facão, ou na foice, ou na lida com o gado. Cansava logo. Mas, morando sozinho, o pouco de forças que tinha era suficiente para se manter com a sua mandioquinha, o seu milhinho, as suas poucas galinhas, numa agricultura de subsistência. Mas, a sua renda mesmo era tirada dos bordados e tricôs que aprendera a fazer com a avó já falecida. Eram-lhe serviços leves e agradáveis para serem feitos entre quatro paredes, ouvindo o rádio e na solidão do seu quarto. Depois vendia o resultado dos seus trabalhos na cidade sem revelar “a fonte” de quem os fornecia a ele para revender, por mais que insistissem:
Segredo de Estado!” Se eu revelar vocês não compram mais de mim... E assim ele conseguia ir mantendo o seu “segredo de Estado”.
Jovina e Laércio se deram tão bem em sua amizade que um começou a frequentar a propriedade do outro em visitas cada vez mais frequentes. As desculpas sempre apareciam  das mais diversas.
Trouxe-lhe um bolo de fubá!
Estava passando aqui por perto e vim te visitar!
Você tem galinha pra vender?
E assim foram ... foram... até que um dia, em uma das visitas da Jovina ao Laércio, o tempo fechou, escureceu e ficou tarde e perigoso demais para que ela voltasse pra sua casa em sua charrete.
Dorme aqui!
Ôxe! E minha casa?
Sua casa não vai sair de lá!
Sei não! E tem lugar?
A gente ajeita! Não tem luxo, mas a gente ajeita!
E assim, naquele dia, se ajeitaram. Ambos no quarto de Laércio. Uma goteira no quarto da “visita” a expulsou de lá. Também, quem poderia imaginar que naquela terra seca poderia cair chuva tão intensa. Laércio, um pouco envergonhado com a situação, se viu obrigado a colocar o colchão da amiga ao lado de sua cama, no seu próprio quarto.
Não se preocupe! Eu não poderia te atacar nem se quisesse... sou franzino demais pra isso!
Riram. Se ajeitaram. Ela já estava quase pegando no sono quando ouviu dele um pequeno comentário que lhe deixou desperta:
Você é bonita!
Levantou-se sobressaltada:
O que você disse!
Com medo de apanhar pelo pensamento alto demais, mas já sendo tarde pra voltar atrás, repetiu se justificando:
Disse que você é bonita! Mas falei com respeito! Me desculpa se por acaso te ofendi.
Ninguém nunca me chamou de “bonita”. Você está me gozando? Nesse mundo, o que menos sou é bonita!
Engana-se! Você é corajosa. Você é carinhosa. Defensora dos fracos e oprimidos. Tem garra, autoconfiança. É amiga, humilde. Se faz presente em minha vida. Só vejo beleza em ti.
Você que é bonito, aliás, o homem mais bonito da escola.
Sou um completo fracasso! Não posso nem me defender. Sou inteligente, mas o que posso fazer com a minha inteligência? Apanho todos os dias, sou discriminado, fraco como um graveto, me chamam de todos os nomes vexatórios, não me aceitam como sou, sou rejeitado no círculo de amizades tanto por homens quanto por mulheres. Se quer saber, - confessando o inconfessável -  nunca me envolvi com nenhuma mulher em minha vida!
Aquilo a deixou boquiaberta!
Mesmo?
Mesmo! Meu único envolvimento é com os meus bordados... sim, sou eu quem os faço! Os tricôs também. Lavo, passo, cozinho, pinto e bordo, coisas de mulher, mas não sou o que falam de mim.
Também não!
Também não o quê!
Também não sou o que dizem de mim. Trabalho na lavoura, tenho as mãos calejadas, enfrento qualquer serviço pesado de igual pra igual com qualquer homem, mas sou avessa a serviços delicados. Sou mais macho que muito homem pra enfrentar a vida, mas sou mulher e sou discriminada por ser assim tão bruta e rústica. Por isso, também confesso que nunca me envolvi.
Ficaram reciprocamente pasmos. Aquelas eram declarações muito íntimas de ambas as partes. Ficaram sentados, se olhando, se analisando vendo que ambos tinham histórias diferentes, mas, no âmago da situação, eram exatamente iguais na dor e no sofrimento. Um viu que entendia perfeitamente o outro. Choraram! Primeiro, tentando esconder suas lágrimas na penumbra do quarto. Depois, sentiram-se mais confiantes e deixaram as lágrimas rolarem de forma que o outro visse. Por fim, estavam abraçados aos soluços chorando juntos as dores de toda uma vida solitária e incompreendida por todos. O amor nasceu ali. Nasceu como num parto! Primeiro vieram as dores, depois, as lágrimas pelas dores, as contrações geradas pelos soluços, e por fim, o amor nasceu. E, lá fora, os trovões rompiam os céus como a festejar a descoberta naquele encontro de amores tão iguais nas suas próprias diferenças.
Jovina vive hoje na casa de Laércio, para onde se mudou. Casados, todos os dias ela chega do trabalho, com a enxada nas costas, vindo da lavoura e dos serviços pesados, suada, rija em toda a sua musculatura adquirida ao longo de anos na lida rural:
Meu bem, o almoço está pronto?
Está sim, já vou servir, mas antes, vá se lavar e por favor tire as botas antes de entrar em casa... acabei de limpar o chão!
E, naquele dia, a casa, como sempre, estava lindamente arrumada e, na roça, estava tudo como deveria estar:
Perfeito!
Assim como as suas vidas:
Perfeitas!

Autor: Charles Lucevan - Ji-Paraná - Rodonia/RO

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Terceiro Concurso do Blog - Texto 44: Lunático

Eu o amei por todas as manhãs. Ele só ansiava a noite para poder flertar com a Lua.
Quando o conheci, sabia que havia algo diferente nele. Seus olhos azuis e a forma como adorava discutir astrofísica, psicologia e todos os outros assuntos que minha mente pouco conseguia acompanhar. Sua boca macia e a forma que ela me beijava, me colocando para dormir e me acordando também. Suas mãos precisas e talentosas, sempre escrevendo um texto novo, sempre criando uma invenção absurda. Sua loucura tão bela, mas tão distante da filosofia de qualquer humano.
Ele se dizia humanista, e talvez realmente fosse. Sua paixão pelo ser humano, no entanto, era superada apenas por seu desejo compulsivo de pisar na Lua. Na época, quando o convenci que o amava e o fiz pensar que me amava também, eu achava bobeira me preocupar com qualquer outro lugar que não fosse a Terra.
Tínhamos tanto à nossa disposição! Flores, árvores, frutos e energia! Nosso quintal era recheado de natureza, nossa casa era recheada de amor. Eu o amava como ele sempre amou a Lua, mas quando ele me amava também, eu simplesmente me sentia a mulher mais querida do mundo.
Pelas manhãs, fazíamos banquetes e gastávamos nossas energias com festas, danças e tudo aquilo que nos trazia prazer. Conforme o anil do céu era dominado pela escuridão da noite, porém, eu também era trocada pelos astros. Ele se sentava na varanda de casa, ao lado de uma luneta e um computador de colo, fazendo previsões distópicas e escrevendo os mais metafóricos dos poemas.
Por muito tempo, não suspeitei de nada. O apoiava e o incentivava a perseguir seus sonhos e continuar produzindo sua arte todas as noites. Fingia que não sabia, mas aos poucos ele deixou de dormir comigo, apenas para ficar estudando as brilhosas entidades celestes. Enquanto ainda haviam manhãs ensolaradas e repletas de vícios, eu estava contente. Enquanto eu soubesse que escutaria seu “Bom Dia”, eu dormiria feliz.
Aos poucos, fui percebendo que as árvores frutíferas de nosso jardim não eram tão cheias de vida assim. A grama, antes tão verde e brilhante, foi se tornando um caminho de terra. As cabanas vizinhas se tornaram casas, e as casas se tornaram prédios. O mais assustador foi perceber que todas aquelas mudanças repentinas condiziam exatamente com as profecias que meu amado fazia.
Diversas foram as vezes que senti medo. Seus braços, que não eram colossais, mas suficientemente grandes, me cobriam com a ilusão de que tudo ficaria bem. Suas palavras, por outro lado, sempre questionavam a qualidade de nossas vidas, a sanidade de nossas mentes e a veracidade de nossos sentimentos. Era uma tortura deliciosa e antitética, ele me abraçava apenas para dizer que o mundo poderia desabar a qualquer momento.
Eu me fiz de forte enquanto pude. Aproveitei enquanto pude. Vivi o máximo que pude, não percebendo que cometia os mesmos erros que o resto da humanidade. Eu drenava os bens preciosos da Terra, poluindo-a em prol de meus vícios. Eu drenava o amor precioso daquele que eu amava, poluindo-o com minha simplicidade.
Um dia ele se cansou de me alertar sobre os malefícios que causávamos ao nosso planeta. Decidiu que iria apenas falar da Lua e eu, em minha ingenuidade e cegueira forçada, não percebi que aquilo que era um aviso também. Fingia estar encantada com suas descobertas quando, na verdade, eu nada entendia. E ele sabia disso. Ele sempre soube.
Quando finalmente entendi que seus poemas trágicos eram para me alertar, e que os românticos tinham como musa o satélite terrestre, senti um calafrio desumano percorrer minha espinha. Passei todas as manhãs seguintes implorando para a Lua que o deixasse todo para mim, rezando para os deuses que nunca estiveram a favor de meu amor.
A cada vez que eu pedia, no entanto, ele parecia mais distante de mim e, ao mesmo tempo, mais próximo dele mesmo. Gastei mais e mais recursos, vi a terra empobrecer, vi os mares secando, causei maremotos e furacões com minhas imprudências, cavei meu túmulo esperando conquistá-lo com minha fragilidade.
Tentei causar ciúmes, tentei tirá-lo da cabeça, tentei tudo o que podia, me negando a aceitar que já o havia perdido. Quando ele se deitava sobre a mesma cama que eu, podia vê-lo observar sua verdadeira amada pela janela. Tão belo, banhado pelo brilho daquela que passei a odiar.
Numa ensolarada manhã, como de costume, recebi seu beijo de bom dia, e aquele seria o último. Quando me levantei da cama, ele estava arrumado, vestindo um traje espacial improvisado. Seu protótipo de nave estava do lado de fora da casa, em nosso quintal de concreto, esperando por seu comando para viajar para o espaço.
Primeiro implorei para que ficasse, sendo reprimida impiedosamente pelo silêncio. Depois tentei pedir para que me levasse junto, para que me amasse enquanto amava a Lua. Foi então que se voltou para mim, com o mais lindo dos sorrisos, e disse: Um dia eu posso voltar para te buscar.
Eu acreditei naquelas palavras, em lágrimas e me afogando em tristeza, quando nem ele mesmo acreditou que aquilo seria possível.
Hoje eu entendo. O mundo só era belo porque eu estava com ele. Sua presença foi minha cegueira o tempo todo e, agora, sua ausência se tornou um veneno para minha visão de realidade.
Mas tudo bem. Alguns homens nasceram para se tornarem astronautas e encontrar seus sonhos entre os astros. Eu? Eu nasci para amar o homem que me trocou pela mulher que mora na Lua.

Terceiro Concurso do Blog - Texto 43: Poligamia

Na manhã passada, acordei cedo, bem cedo, para encontrar uma de minhas namoradas.
Ela é uma pessoa virtuosa, em paz consigo, em contato com a natureza e cheia de espiritualidade. Sua casa é uma grande mansão recheada de artefatos e livros sagrados, numa organização única e bela, de arquitetura clássica e impecável. Seu quintal começa num lindo jardim e se estende numa trilha tomada pela vegetação natural que adentra uma magnífica floresta.
Adorava visitá-la e aventurar aquela trilha ao seu lado. Ontem não foi diferente. Ela me recebeu com um sorriso lindo e um beijo puro. Segurou minha mão e me levou até o começo da trilha, onde encontraria umas sacolas contendo os alimentos para nosso piquenique. Seu ânimo era tão contagiante que quase me fazia esquecer do trajeto de uma hora de estrada que havia acabado de fazer.
Caminhamos do jeito de sempre: ela um pouco na frente, eu um pouco atrás. Ela abria o caminho com coragem e cuidava dos insetos, grandes e pequenos, que apareciam em nosso caminho. Sua tranquilidade me fazia tranquilo até mesmo quando avistava as imensas aranhas em suas teias no meio do caminho. Ao seu lado, eu me sentia seguro, confiante e amado.
No fim da trilha há esse grande lago rodeado por imensas árvores de um lado e um campo plano do outro. Foi lá onde estendemos a toalha de mesa e depositamos nossas sacolas e nossas consciências. Ficamos a observar a beleza das inúmeras borboletas, os uivos dos lobos, os gritos dos macacos, o coaxar dos sapos, os nenúfares multicoloridos e, talvez mais importante que isso, a beleza um do outro.
A natureza parecia sorrir para nós e, ainda que os insetos caíssem sobre nossos braços esporadicamente, nenhum mal nos atingiu. Era uma aventura estar ali, mas a vida, em si, é uma grande aventura. Ela me fez enxergar isso. Embora consiga sempre encontrar inspiração para continuar em minha arte de viver, uma mudança de ambiente não era nada mal.
Ela parecia muito feliz em me ver e, quando parti, demonstrou esta mesma felicidade em me deixar nos braços de uma pessoa que me ama tanto quanto ela, minha segunda mulher. Para ela, o que importava era minha felicidade. Ainda consigo me lembrar de seu sorriso enquanto acenava para mim no começo da tarde.
Quanto à minha segunda mulher, esta é um pouco mais ocupada. Estava voltando de uma viagem de negócios e decidiu que me levaria para casa antes de voltar para uma séria reunião com pesquisadores das maiores universidades brasileiras. Talvez aquele fosse o único momento do dia no qual poderíamos conversar decentemente, e a saudade estava gritante.
Discutimos, pelo caminho, algumas de nossas teorias comportamentais. Falamos sobre interesses humanos e sobre o estilo de vida da humanidade. Planejamos projetos mirabolantes, contamos as novidades sobre o mercado e o mundo acadêmico. Gozamos plenamente da intelectualidade um do outro e, para completar, até contamos algumas piadas espertas que instigam o pensamento sobre nossa estrutura cultural.
Disse que estava a sentindo meio distante e perguntei se ela, em algum desses dias de extrema correria, sentiu-se assim também. Chegamos a uma conclusão que muito diz, mas nada explica: que é impossível dizer se ela realmente se distanciou. Primeiramente porque minha sensibilidade emocional estava elevada e talvez não estivesse acostumado àquela rotina louca ainda. Segundo porque, no olho do furacão, você não consegue ter a exata dimensão da sua tempestade.
Em seguida, ela me contou sobre alguns pensamentos pessoais que, potencialmente, poderiam me deixar chateado. Mas logo os explicou melhor e, como eu sempre penso, é impossível me magoar ao seu lado. Ela faz eu me sentir tão fascinado, esperançoso, determinado e amado com seus discursos e com o compartilhar de suas ideias! Sinto-me como se fosse seu sócio nesse empreendimento constante que é a vida.
Aliás, se tem uma coisa que foi alavancada no decorrer dos últimos tempos, essa coisa foi minha vida. A determinação dessa mulher me faz determinado e, se não fosse por isso, acredito que minhas filosofias não estariam tão bem formadas hoje. Sinto que, ao seu lado, nada é impossível. Nada é distante e difícil o suficiente para me manter longe de meus objetivos.
E durante uma introspecção e outra, foquei meu olhar para fora da janela do carro e me assustei ao avistar minha casa. O tempo passou tão rápido! Então ela virou para mim, num olhar cansado, mas cheio de vida, e me deu um beijo.
"Dizem que tempo é dinheiro", eu disse a ela enquanto abria a porta do carro, "E quando estou com você, sinto que estou fazendo um dos maiores investimentos de minha vida".
Nos despedimos vagarosamente, como se ela já não estivesse prestes a se atrasar para seus compromissos. Eu abri o portão e, antes que pudesse colocar o pé para dentro de casa, recebi um forte abraço de felicidade.
Era minha terceira mulher, a mais jovem, alegre e caseira de todas. Ela, assim como todas as outras, tinha a chave para a minha casa e, também, para meu coração.
"Bem vindo de volta!", ela disse extremamente feliz. Seu entusiasmo se refletia na entonação das palavras. Me puxou para dentro e me pediu pra contar sobre meu passeio, logo em seguida me contando sobre seu dia.
Ela trabalhava muito e o mundo cinza fazia muito mal à sua ingenuidade natural. Seu bom caráter é sempre visível, assim como sua fadiga em tentar resistir à poluição social e cultural dessa podridão urbana. Ainda assim, muitos tinham a audácia de dizer que ela trabalhava pouco e que sua vida era recheada de mimos, que ela desconhecia o verdadeiro peso das responsabilidades. Sempre achei ridículo comparar uma realidade a outra, então sempre tratei seus problemas e dilemas de forma tão séria quanto trataria quaisquer outros.
Nos deitamos sobre a cama de casal e ficamos a pensar em histórias fantásticas e imaginárias. Ela sempre teve essa aptidão absurda para contar histórias enquanto eu, bem... eu tentava acompanhar seu ritmo da melhor maneira que podia.
Logo, sua cabeça estava sobre meu peito e estávamos transitando suavemente pelo mundo dos sonhos, um lugar bem mais puro e receptivo do que esse em que vivemos. Não conseguia dormir de fato e cair num sono mais profundo. Queria tanto ficar acordado para apreciar sua inefável beleza enquanto dormia, que só consegui, no máximo, cochilar. O problema é que ficar transitando muito entre sonho e realidade acaba causando espasmos involuntários, o que foi motivo para ela ficar debochando de mim o resto da tarde.
Brincadeiras à parte, aquele foi um momento único, sabe? Eu me senti grande, capaz, confortável, renovado e amado. Era como se eu pudesse fornecê-la esse mundo fantástico com o qual ela sonha e sobre o qual ela tanto escreve. Como se eu pudesse ser o príncipe encantado de seus contos de fadas. Como se o "felizes para sempre" sempre tivesse existido.
A reciprocidade daquele conforto era satisfatória e revigoradora. Mas então meu celular começou a tocar uma melodia peculiar, uma música sobre sonhos e astronautas, o toque de chamadas da minha quarta mulher.
Acordei suavemente minha pequena, com beijos carinhosos em seu pescoço. Ela sorriu, como quem diz "Já está na hora?" e pede para ficar na cama mais uns cinco minutinhos. Mas após alguns poucos segundos, ela se virou para mim, me abraçou, agradeceu pelos cochilos da tarde, pegou a bolsa e saiu. Pude escutar, ao longe, o portão se abrindo e as duas se conversando. Elas sempre tiveram uma relação muito próxima, e eu gostava disso.
Minha quarta mulher é a mais sedutora, atraente, cheia de charme e paixão de todas. Seus movimentos são sempre tão precisos que parecem previamente calculados e seu senso de oportunismo está cada vez mais incrível.
Ela chegou no quarto com uma expressão de satisfação e desejo, deixando sua bolsa sobre a poltrona e deitando-se comigo na cama. Seus braços me envolveram rapidamente e suas pernas foram trazendo meu corpo para mais perto. Era um envolvimento tão gostoso que fazia eu me sentir como se aquele fosse o lugar que eu sempre deveria estar.
O fogo de nossa paixão arde de diversas formas. Ora é o toque intenso e íntimo, ora o beijo lento e carinhoso, ora apenas um olhar da mais pura admiração pela essência humana.
Seu corpo me encantava como a mais bela obra de arte, seus movimentos graciosos dançavam a mais delicada dança, seus olhos recitavam as mais lindas poesias. E queria poder pedir que ficasse ali, deitada sobre a cama, apenas para apreciar aquele magnífico conjunto de expressões artísticas e biológicas, mas temo que não iria me conter por muito tempo. A vontade de apreciar varia numa nuance delicada entre algo inalcançável e algo que jamais deveria sair de você. Juntos nós éramos um, juntos nós éramos o infinito.
E quando estou nos seus braços, sob o feitiço de sua existência, sinto-me vivo, invencível, completo, satisfeito, capturado, livre e amado. Como se eu fizesse parte do universo e o universo fizesse parte de mim. Num efeito alucinante e recheado de prazer. Nas mãos daquela que parece conhecer meu corpo melhor do que eu mesmo.
E no final daquela combustão de essências, que foi apenas uma fração da explosão que podemos causar, devido à falta de tempo, mas ainda assim foi capaz de fazer tão bem, ela se agarrou em mim. Um momento lindo de vulnerabilidade. Não estava mais utilizando suas armas de charme, mas me envolvendo na promessa subliminar da eternidade. Apreciamos o tempo que nos restava da forma mais simples e calma. Levantamos da cama devagar e caminhamos lentamente na direção do portão.
No caminho, as demais mulheres da minha Vida foram aparecendo. Pouco a pouco, nos acompanhando alegre e silenciosamente. A aventureira e espiritual, a determinada e ocupada, a caseira e inocente, a sedutora e apaixonada, e todas as outras mais.
Algumas pessoas encontram parceiras para momentos específicos e um dos maiores desafios cotidianos é equilibrar e administrar esses relacionamentos. Já eu, ouso dizer que encontrei todas as mulheres para cada uma de minhas fases dentro de uma única pessoa. A monogamia, para mim, é o mais lindo ato de poligamia.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Terceiro Concurso do Blog - Texto 38: Amor com cheiro de mato e cor de céu

Um cavaleiro solitário segue viagem comprida na estrada poeirenta. O vento sussurra na copa das árvores enquanto o casco do cavalo faz barulho nas folhas secas do jequitibá. À margem de suas saudades, os ramos pendem e as águas refletem a luz da primeira estrela. No instante em que ouve o trinado de um canarinho, recorda-se da voz de Maria Piedade.
Abatido e vazio por dentro, Zé Justino baqueia, segura a rédea e o barulho da porteira o joga de novo no colo da saudade e um vento frio vindo das furnas arrepia sua pele. A Lua cochila com um brilho apagado, enfumaçado pelas queimadas do mês de agosto. Os curiangos piam tristes, um boi perdido berra cortando a escuridão. O homem olha o céu, sabendo do prolongar da seca até os meados de setembro.
Tenta recobrar os pensamentos ausentes, enquanto sua vida escorre devagar pelo antigo caminho. Busca na memória o dia em que Maria Piedade voltou à fazenda do pai. A menina se fizera mulher durantes os anos que passara no colégio das freiras. Pele clara, cabelos louros, braços roliços, belas curvas sob o vestido branco, uma fala doce e andar ligeiro de bicho assustado.
Desde o primeiro dia, o jovem Zé Justino sentiu a presença dela entrando sorrateira pela sua vida afora. Confuso, estranhava a si mesmo. Nunca fora de falar muito, agora a presença da filha do patrão lhe provocava aquela enxurrada dos mais variados assuntos. Enquanto falava via na mocinha um olhar úmido e azulado de interesse e gosto. Seus pensamentos buscavam o sorriso de Maria Piedade, queria sentir de perto o perfume de rosas, queria aquele olhar de céu sem nuvem só para ele. Nunca tinha visto uma moça tão bonita, tão amável, tão tudo!
Os dois não sabiam ainda, mas já estavam unidos. Um pulsar de corações, mãos e pés frios, andar descompassado. Gostavam dos esbarros das mãos, quando ele vinha do curral lhe trazer o caneco de leite. A mando do patrão a acompanhava nos passeios pela propriedade. Sentiu o calor de seu corpo quando a amparou nos braços. Ao tropeçar no caminho ela veio lhe cair de encontro ao peito.
Naquele momento, Piedade viu o peão da fazenda de seu pai entrar de uma vez na sua vida. Ele tinha jeito simples, fala de sertanejo, chapéu de couro, camisa aberta no peito, um cheiro de mato no corpo moreno, um sorriso tímido ao mesmo tempo malicioso... Vivia apanhando flores nos pastos para enfeitar sua janela, colhendo os frutos do cerrado que ela mais gostava. Suspiros, um prazer ao lembrar, um sofrer na ausência. Zé Justino enchia sua vida de esperança.
Quando ela caminhava em sua direção, ele só enxergava os cabelos anelados, imaginava-os se emaranhando em seu peito enquanto ela lhe abraçava o pescoço falando-lhe ao ouvido. Sentia uma alegria aquecendo seu coração, também uma urgência, uma loucura...
Léguas os separavam da sonhada liberdade. Então ele fugiu pelo Chapadão levando-a na garupa. O capim gordura florido punha uma mancha arroxeada na pastagem. No espigão pelos morros umas florezinhas miúdas amarelavam o chão pedregoso por onde passavam os dois fugitivos.
Sabiam que um filho de escrava e uma moça branca, seriam perseguidos até o fim do mundo... Tinham um longo caminho pela frente. Juntos enfrentariam chuva, sol, vento e tempestade, até ninguém mais ouvir falar deles. Sertão afora os dois iriam desaparecer sem deixar sinal, como se fossem assombração a vagar pelo mundo cercados de sombra e mistério.
Sob a luz da lua pararam à beira de um rio... Cheiro de capim, frescor de água escorrendo mansa sobre as pedras. Apearam do cavalo respirando fundo todos os cheiros e perfumes da noite. O orvalho da manhã ainda não viera apagá-los, quando tudo voltaria a inebriar abelhas, pássaros e bichos...
Juntos só viam alegria e felicidade, começo de vida. Pés que não sentiam o chão, porque ainda não era dia e só as estrelas seriam testemunhas, dois corações disparados, olhares inquietos de iniciantes, mãos entrelaçadas, bocas coladas em meio a suor e febre. Ali ao som da natureza se jogaram nos braços um do outro, se esquecendo dos perigos. O fogo por dentro só se abrandaria após uma batalha sem tempo e espaço...
A vida lhes parecia leve, o peito estava cheio de ar e de ilusão. Adormeceram quando o barrado no horizonte prenunciava o dia. Não viram cavaleiros apressados descendo a serra... Na vida nem sempre se vive conforme os sonhos de uma noite de amor...
De volta ao presente, Zé Justino saúda o dia com uma pequena oração. Dirige o olhar para o céu, o dia azul e o sol muito claro. A saudade de Maria Piedade ainda dói, seu coração está como uma árvore que ainda balança as folhas muito tempo depois de o vento ter passado...

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Terceiro Concurso do Blog - Texto 30: Bodas violentas

                                                   I

Nivaldo e Márcia desde criança namoravam. Vizinhos, pequena diferença de idade entre ambos, pais amigos, tudo levava a crer que dali sairia uma vida em comum, com o casamento.
Estudavam no mesmo colégio, só que em classes diferentes.
A data dos 15 anos de Márcia foi comemorada com uma grande festa. O Clube XV de Boa Esperança do Sul, onde nasceram e viviam, foi pequeno. A cidade em peso compareceu. Foram convidados os Cadetes da Marinha para os pares das meninas, na valsa tradicional. De Márcia, não, pois a Nivaldo era a quem caberia tal privilégio. E, assim foi.
Rafael e Clarisse, pais de Márcia, viam com bons olhos o namoro de sua filha. Nivaldo era bom menino, aluno aplicado, falava em ser médico. De seu lado, Álvaro, pai do moço, também nutria muita simpatia por Márcia. Já Suzana, a mãe... Não que tivesse qualquer motivo para deixar de gostar de Márcia. Somente achava que seu filho merecia coisa melhor, uma moça da cidade grande, filha de um industrial, enfim, que pertencesse à alta sociedade da capital, por exemplo. Aquelas coisas de mãe. Afinal, era filho único. Mas, tolerava a situação!
Durante a festa, estando na mesma mesa as duas famílias, a conversa ia bem animada. Felizes, viam seus filhos dançando, demonstrando ambos, muito carinho um pelo outro.
— Estou muito feliz, Suzana, em ver minha filha com o Nivaldo! Formam um belo par!
Suzana, por sua vez, muito reservada, sem demonstrar claramente o que ia em seu íntimo, respondeu:
— Sim, Clarisse, parece que os dois se gostam mesmo! Apenas acho que são muito novos, têm muito pela frente!
Assim, a festa transcorreu, com todos se divertindo, os homens falando sobre a política da cidade, o time de futebol do qual eram diretores, e outros assuntos normais nessas ocasiões.
As mulheres, por sua vez, comentavam sobre os vestidos das amigas presentes, do penteado de fulana, enfim, mais na base dos temas próprios do sexo feminino.
Já em casa, os pais da moça, após o banho relaxante, e deitados, comentavam, felizes, o sucesso da festa, e a alegria proporcionada à filha Márcia.
— Querido, disse Clarisse, adorei a festa!
Aí, a psicologia feminina entra em ação, e continuou:
— Só fiquei um pouco preocupada com a Suzana. Não me pareceu to-
talmente à vontade! Alguma coisa não lhe estava agradando. 
— Impressão sua, querida! Não percebi nada de anormal! Ela é assim mesmo, meio fechada!
                              
                                      
                                                   II

Nivaldo passeia pelo campus da Universidade Federal, na capital do Estado. Cursa o 3º Ano de Medicina. Refaz-se do dia atribulado que tivera, com o estudo até a madrugada da noite anterior, para as provas feitas pela manhã. Foram as últimas do ano. Tinha certeza da promoção para o 4º Ano.
Terminado o curso ginasial em Boa Esperança do Sul, seus pais o mandaram para a capital, a fim de cursar o científico. Foi para o internato de um famoso colégio. Para a alegria de Dona Suzana!
Nas férias, não via a hora de ir para a sua terra natal, e estar ao lado de Márcia, a quem jamais esquecera. Ela continuou seus estudos na própria cidade. Fez o curso normal, e já dava aulas no Grupo Escolar.
Paciente, mas ansiosa, esperava a vinda de Nivaldo, a fim de matar as saudades, e renovar as juras de amor eterno que ambos confidenciavam.
No entanto, essas idas e vindas de Nivaldo duraram até o término do 3º Ano da Faculdade de Medicina.
Naquele dia em que o encontramos passeando pelo campus da Universidade Federal, outra situação o atormentava. Chamava-se Maria Lúcia! Sua colega de turma! Morena, olhos verdes, cabelos longos, uma linda moça! Desde o primeiro dia de aula os dois se aproximaram. Naturalmente. A princípio, simplesmente colegas. Moradora na capital, volta e meia convidava Nivaldo para estudar em sua casa. Filha de pais ricos, sua residência era uma verdadeira mansão, situada num dos bairros mais chiques da cidade. Isso tudo impressionava o colega.
Apesar de tudo, Nivaldo não esquecia Márcia! Nos períodos de folga, rumava para Boa Esperança, onde a namorada o esperava.
Sua preocupação, no dia do encerramento das aulas do 3º Ano, também, era de já não ter vontade de ir para o interior, e, muito menos, de rever a Márcia.
Estava completamente apaixonado por Maria Lúcia! Esta, no decorrer dos anos de estudos, cada vez mais próxima de Nivaldo, foi conquistando o amor do colega. Numa atitude que demonstrava a grandeza de seu caráter, nunca forçou qualquer situação. Sabia da existência de Márcia na vida de Nivaldo, e respeitava os sentimentos dele. Esperava, como esperou, o momento certo, deixando que o rumo das coisas se encaminhassem de modo natural. E conseguiu!
Essa lealdade de Maria Lúcia, calou fundo no coração de Nivaldo, levando-o a sentir pela mesma, uma paixão que, até então, nunca sentira.
E, sem qualquer aviso, sem dar qualquer satisfação, Nivaldo deixou de aparecer em Boa Esperança do Sul. Ali nada mais lhe interessava.
Para o sofrimento de Márcia!

                                                 III

Enquanto isso, Suzana exultava! Seus sonhos estavam se tornando realidade.
Com a ida de Nivaldo para a capital, Suzana deixou de ter maior relacionamento com a família de Márcia. Raramente, ela via a antiga amiga Clarisse, a não ser vez ou outra na igreja, na missa de domingo, ou no supermercado.  Mas, pouco se falavam.
Álvaro e Rafael, no entanto, tinham maior contato. Ora no clube, ora num fim de tarde, após o trabalho, ainda mais numa cidade pequena, era fácil se encontrarem no bar, quando acontecia uma conversa, e um gole de cerveja. Nada mais que isso. Não tocavam no assunto dos filhos.
Todavia, Márcia sofria! O rompimento do namoro com Nivaldo foi muito doloroso. Ainda mais, sem qualquer justificativa. Apenas ele desapareceu! Não merecia tamanha ingratidão. A cidade toda estava sabendo do drama. Deixou, inclusive, de dar aula. Para ela a vida não tinha mais sentido.
Vendo sua filha enfurnada no quarto, Clarisse também amargava aquela dor.
Então, a mãe tomou uma decisão. Iria até a casa de Suzana, a fim de saber o que havia acontecido. Por que Nivaldo tomara tão drástica decisão? Não foi fácil, porém conseguiu que Márcia a acompanhasse.
À hora marcada, à tarde foram recebidas pela dona da casa. Não se pode dizer que mal recebidas. Todavia, com certa frieza. Suzana, muito polida, educada, acomodou as visitas, e os diálogos se sucederam dentro de evidente formalidade.
— Como vocês vão, há tempos que não nos encontramos para conversarmos, como antigamente.
— É verdade, Suzana. O tempo se encarrega de nos afastarmos, sempre nos exigindo mais e mais, diante dos afazeres de casa, as responsabilidades que tenho como presidente da Associação das Voluntárias do Combate ao Câncer. Aliás, você faz muita falta. Por que se afastou?
— Sabe Clarisse, após o Nivaldo ter ido para a capital, a fim de estudar, minha vida mudou muito. Com a compra do apartamento onde ele mora, atualmente, sempre há necessidade de minha presença. Então, não posso ter outros compromissos.
— Ah! Logo ele se forma, não é?
— Então, inclusive, está noivo, pensando em se casar brevemente!
Assim que se formar.
Márcia não se conteve! Caiu num choro convulsivo, retirando-se da sala.
Suzana, sem demonstrar qualquer sentimento, disse à Clarisse que estranhava essa reação da Márcia, alegando que o namoro deles fora entusiasmo de jovens, nunca podendo ter sido levado como coisa séria. Lá em São Paulo, numa cidade grande, com pessoas de outro nível, não foi difícil seu filho encontrar uma boa moça, filha de um grande empresário, bonita, e que, também, como ele, teria o título de médica. Seu futuro estava garantido.
De fora, Márcia ouvira tudo.
Clarisse, então, levantou-se, recusando o convite para o café oferecido por Suzana. Despediu-se friamente, juntando-se a Márcia que já a aguardava no terraço.
Daí para frente, Márcia recuperou suas forças, saiu de seu estado depressivo, voltando a lecionar.
E, seu amor, se transformou em ódio!

                                                    IV

O famoso buffet paulistano estava em polvorosa! Pudera! Duas grandes festas estavam programadas! Um movimento intenso de chegada de carros, os mais possantes e luxuosos possíveis. Centenas e centenas de convidados entrando.
Naquela noite, num dos salões, festejava-se o casamento da filha de um grande empresário, médica, com um rapaz do interior, seu colega de turma. Ela Maria Lúcia, ele Nivaldo.
No outro, também festa de casamento. A noiva do interior, professora, filha de um casal tradicional da cidade, e o noivo, homem muito rico, apesar de sua atividade não ser das mais louváveis. Banqueiro de bicho! Ela Márcia, ele Anísio.
Não é que os noivos e seus pais, coincidentemente, chegaram no mesmo momento! Grande foi a surpresa ao se verem! E, numa manobra infeliz, as limousines se chocaram.
Confusão armada, insultos de um lado, xingamentos de outro, um grande tumulto. Um tiro! Pânico!
Tudo o que Márcia e Clarisse engendraram havia dado certo!

                                                        V

No outro dia, o jornal da cidade interiorana anunciava o velório e o sepultamento de Suzana, em Boa Esperança do Sul.


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sexta-feira, 29 de maio de 2015

Terceiro Concurso do Blog - Texto 28: Quando a vida começa?

A vida começa aos quarenta.
Era essa a frase que ela sempre ouvia, quando tinha trinta e sete ou trinta e oito.
Como pensava não ter vivido tudo que gostaria ou que pensava ter direito de viver, aguardava ansiosa, a chegada dos quarenta.
Afinal, com a chegada dos quarenta, chegaria sua vida nova.
Renasceria para a vida ou a vida lhe renasceria.
Sempre com essa frase em mente, continuava com sua pacata e moribunda vida que, morreria aos trinta e nove, para renascer aos quarenta.
Chegou a tão esperada idade e nada. Não sentiu nenhuma mudança. Nada acontecia.
Tudo era igual. Nada de nada!
Passou por essa década esperando seu renascimento e nada de novo em sua vida.
Chegou aos quarenta e nove e, ouviu de novo que, com a menopausa, a vida começa aos cinquenta ...Mas, qual... nada de nada.
Mais uma década de desencanto e mesmice.
Finalmente chegou a terceira idade. Ah, a terceira idade.
A idade da libertação. Da aposentadoria. Dos direitos do ¨idoso¨.
Mas não era isso que ela queria. Ela queria algo mais.
Não queria apenas prioridade nas filas do banco, nos ônibus, nos cinemas...
Queria sentir-se viva. Queria estar viva.
Foi quando leu um anúncio, desses que tentam arrancar dinheiro dos aposentados, que ela pensou em fazer algo só dela, só para ela. No anúncio dizia:
”A vida começa aos sessenta. Faça suas malas e venha desfrutar da melhor idade conosco.”
Juntou suas economias, fez as malas e partiu em excursão para o sul do país.
Se nada de bom lhe acontecesse, pelo menos teria conhecido geograficamente um pouco mais do Brasil.
Serras Gaúchas; Comida boa. Vinhos finos. Músicas alegres.
Em uma das paradas do passeio da Maria Fumaça, ela avistou aquele homem, na plataforma, dando boas vindas aos turistas. De acordeom nos braços, sorriso nos lábios, voz forte e suave.
Apesar de ter aparência de argentino, cantava músicas típicas da Itália. Canções alegres ou nostálgicas.
Alto. Magro. Pele clara. Ombros largos. Entre um sorriso e outro, sentia que seus olhares se cruzavam.
O grupo à sua volta deixara de existir. Apenas ele. Sem nome. Sem identidade definida.
Ao se despedir, deu-lhe um beijo no rosto e, num aperto de mão, o homem lhe passara um papel amassado.
Sem jeito, segurou aquele papel e entrou na Maria Fumaça para o término do trajeto.
No papel amassado havia o nome de um hotel que ficava em frente ao que ela estava, escrito apenas: nove e meia.
A frase voltou-lhe à mente com a força de uma martelada: ¨A vida começa aos sessenta.”
Sua cabeça era um turbilhão de pensamentos. Vou? Não Vou?
Sem comentar com as senhoras que dividiam seu quarto, saiu às nove e meia, passando pelo saguão do hotel, de cabeça baixa.
O letreiro luminoso da frente, indicava o local do encontro.
Coração acelerado. Boca seca.
Ansiedade? Taquicardia? Hipertensão?
Na terceira idade, todos esses sintomas indicariam um infarto. No seu caso, não. Apenas indicava o desejo de viver.
Lá estava ele. Em pé, na porta do hotel. Muito mais bonito agora, sem o acordeom que lhe ocultava o peito jovem ainda.
Vinho. Flores. Cama perfumada.
Aquela voz a lhe dizer coisas que não ouvia há três décadas.
As horas corriam. Precisava voltar ao hotel, antes que começassem a sua procura. Afinal, na terceira idade os cuidados são redobrados. Perigos de quedas, A.V.C, infarto ou, sei lá, perda de memória ...Perda de memória. Pronto. Esse seria seu diagnóstico, caso alguém perguntasse, afinal não seria mentira.
Na manhã seguinte todos dentro do ônibus para a volta à rotina, à realidade.
Apenas ela trazia algo mais em sua bagagem. Além das lembrancinhas para os filhos e netos, trazia a bagagem transbordando a felicidade de uma noite de amor.
Sim. A vida pode começar aos sessenta. Retornou para casa com essa certeza.
A vida começa quando você decide começar.

sábado, 23 de maio de 2015

Terceiro Concurso do Blog - Texto 27: Uma noite como lembrança

Quando se conheceram, Lúcia tinha quatorze anos e Júlio dezoito. Ela era só uma menina e ele quase homem feito, com extensa lista de namoradas.  Ela ainda via os meninos de uma maneira meio desconfiada, mas com ele foi diferente. Talvez tenha sido o seu primeiro amigo do sexo oposto. Vizinhos de rua, logo começaram a conversar todo dia.
Júlio apaixonou-se quase que imediatamente. Chegou a falar em namoro com os pais da garota. Estava certo que com o tempo, ela   também o enxergaria como homem e eles se entenderiam. A felicidade   seria só uma questão de paciência.
Lúcia era uma menina inocente e insegura, oposto de sua irmã Isabel, mais velha dois anos e bastante atirada. Não demorou muito Júlio perceber um certo interesse da cunhada por sua pessoa. No início se fez de desentendido. Estava certo de seu amor por Lúcia, mas o assédio de Isabel o desconcertava. Lutava para manter-se fiel, pois tinha medo de gerar atritos na família e acabar perdendo a namorada.
Assim foi levando o namoro inocente por vários meses, sentindo-se   cada vez mais envolvido pelas artimanhas de Isabel. Seus amigos diziam não entender aquele romance com uma menina. Por que ele não namorava alguém da idade dele, ou pelo menos uma moça mais madura? Para que esperar por alguém que ainda não sabia o que querida da vida?  Mesmo sentindo estranha atração pela cunhada, sabia que por Lúcia nutria um amor maior que ele.
Tudo ao seu redor, até as músicas lembravam o jeito dela.  Contava as horas, os dias para o final de semana chegar logo e passearem juntos, tomar sorvete e irem ao cinema. Tudo na maior inocência, até os beijos eram de adolescentes.
Inesperadamente houve uma tarde em que um furacão passou por cima desse amor. Júlio não resistiu às investidas da tinhosa cunhada, que naquele dia estava sozinha em casa. Entre muitos beijos, abraços e mãos inquietas, ela confessou que não parava de pensar nele, que não aguentava esperar mais e estava louca de desejo. Sem pensar direito, subiram as escadas e foram para ao quarto. Apesar de jovens, ambos eram experientes e o inevitável aconteceu...
Atordoado pelo inusitado daquele momento de desejo incontido, ele sabia que não era aquilo que almejava para sua vida!  Naquela madrugada saiu caminhando pela rua, debaixo da chuva fina, como se a água   pudesse lavar seu corpo e sua alma.   Sentia na boca o beijo de Isabel, mas era um sabor amargo e cheio de dúvidas...
Nunca soube se ela contou à irmã, porém o namoro esfriou. Tempos depois Lúcia encantou-se por um outro rapaz. Júlio não   acreditou... Insistiu. Insegura como sempre, ela ficou sem saber o que fazer. Apesar da confusão bem comum na cabeça de uma jovem, ela decidiu algo inusitado que encheu o coração de Júlio de esperanças.
Disseram aos pais que acampariam com amigos, mas foram sozinhos passar o final de semana numa cabana a beira de um rio. Tiveram uma inesquecível noite de amor... Incrível a sensação de realizar algo tão aguardado, mas os dois sabiam que era o fim. Algo havia se quebrado de maneira irreparável.  Como se fechassem uma página da vida e abrissem outra. Ele esperou que ela mudasse de ideia, porém o tempo passou. Ela não voltou, só ele não a esqueceu. 
Júlio recebeu um convite de casamento e soube por uma amiga em comum da gravidez de Lúcia. Chorou, derramou lágrimas solitárias. Seu amor não era mais aquela menina inocente, se casaria, teria um filho e não era dele...
A dor foi minimizada pelos anos.  Restaram as lembranças dos bons momentos. A fantasia daquele amor adolescente e a certeza de que todo amor   vale a pena, mesmo quando só nos resta a saudade e uma   história para contar.