quinta-feira, 2 de agosto de 2012

O Cinema de Seu Zé das Máquinas - Autor: Carlos Lopes

Depois de mais de duas horas chacoalhando dentro de uma boleia de camionete, imprópria para comportar cinco pessoas, a velha e fiel Ford 1951 aponta em direção ao centro de Custódia. Pouco havia de expectativa, muito mais de cansaço e desgosto por deixar para trás a cidade de nascimento. De todos, somente eu e o meu pai de nada tínhamos a reclamar. Ele por ter perdido o que conseguira em anos de trabalho e eu por ser uma criança de dez anos, aberto às mudanças da vida. Arregalei bem os olhos para admirar uma velha fubica ano 1929, que estava estacionada na calçada da Avenida Manoel Borba. Mais tarde eu soube que pertencia ao João Correia.

A primeira casa em que moramos em Custódia ficava na Rua Coronel Nemésio Rodrigues de Melo. Nossos vizinhos eram os irmãos Vitor. Fernando construiu um carrinho de madeira para mim e estabeleceu-se uma grande amizade entre todos. A casa deles era muito frequentada e quase sempre se via por lá, Marcos e Márcio Moura, que juntamente com seus pais foram de grande importância na nossa chegada à cidade, já que os conhecia de Tabira, onde tenente Ulisses fora delegado. Logo percebemos que nossa nova casa tinha fundos com o cinema e em dias de exibição dava pra ouvir com perfeição, a trilha sonora dos filmes.

Seu Benedito, um senhor aposentado do exército, sentia muito gosto em se mostrar todo pomposo, usando sua farda de gala na entrada do seu cinema. Durante o dia atuava como juiz de menores, e ficava perambulando atrás da criançada. Era um “Deus nos acuda” quando o velho aparecia com seu tradicional: ¨Espere aí¨. Normalmente findava com nossas brincadeiras de rua, mas em compensação de longe gritávamos: ¨Papagaio Verde!¨

No mesmo prédio do cinema de Seu Benedito surgiu o Cine Uirapuru, de propriedade de Seu Adolfo, provindo das bandas de Quitimbú. Aliás, a história da cinegrafia custodiense ainda contou com a participação de Zé de Isaias e Adamastor Ferraz, os pioneiros nas exibições cinematográficas da região, que se tem conhecimento. Contam que Adamastor certa vez em São Caetano cobrou a ¨entrada¨ pelo mesmo filme três vezes. Vendo cada rolo de filme terminar e a debandada dos nativos, ele anunciava novamente o filme e fazia um novo apurado.

Meu pai comprou o cinema de Seu Adolfo por uma quantia bastante razoável, ficando um saldo a ser liquidado em pequenas parcelas, sob a alegação do dono de que teria que vendê-lo, antes que houvesse alguma desavença com algum pai de família. O cinema trouxe ao meu pai a notoriedade, que hoje o tornou conhecido de várias gerações. É impossível quem não o reconheça pelo nome de Seu Zé do Cinema, ou Seu Zé das Máquinas. O novo cinema foi registrado oficialmente como Cine Santa Maria, porém foi com o nome Cine Custódia que ficou conhecido. Funcionava na Avenida Inocêncio Lima, em um salão de propriedade de um dos seus melhores amigos, o Sr. Guilherme Queiroz. Ele, fiscal de renda do Estado e enteado de Nozinho Veríssimo, uma verdadeira lenda do município e também pai de Terezinha Queiroz, a nossa vizinha de frente, isso quando já morávamos na Rua Dr. Fraga Rocha.

Como meu pai exibia filmes em outras cidades, foi percebendo as inovações e procurava atualizar seu cinema. Daí vieram: piso em declínio, cadeiras apropriadas, ventiladores de teto, tela panorâmica e por fim, aquisição de projetor de 35mm, equipamento pouco comum na maioria dos cinemas da região. Coube ao meu pai exibir o primeiro filme colorido na cidade. E aí tem uma curiosidade. O filme fora produzido em cinemascope e cadê a lente especial própria para a exibição? Tentou-se de tudo, inclusive transmitir imagem de espelho para espelho, mas não deu certo. Ninguém reclamou pela imagem comprimida, afinal tratava-se de um filme colorido. Foram infindáveis os títulos exibidos no Cine Custódia, destacando-se: Os canhões de Navarone; Meu ódio será sua herança; A meia noite levarei tua alma; Os três mosqueteiros; Coração de Luto; Romeu e Julieta; Love story; A mulher do padre; Tarzan e as Amazonas; Teixeirinha e as sete provas. Esse último Fernando José certa vez o batizou de “Teixeirinha e as 32 provas”. Isto porque sempre que o faturamento caía, meu pai o trazia de volta.

Enfim, o Cine Custódia funcionou durante quase uma década como um dos principais pontos de cultura e entretenimento de Custódia. Lá, além de assistir o Canal 100, ainda se assistia o filme: ¨A Copa do Mundo de 70¨. Filmes como este, juntamente ao ¨O assalto ao trem pagador¨ e ¨Mineirinho vivo ou morto¨, traziam ao cinema até o vigário local. Quantos namoros tiveram início durante as sessões! Existia lugar melhor para uns “amassos”, naquele tempo?

Mas nem sempre de glória vivia o cinema. A presença do mesmo público, às vezes levava meu pai à loucura. Quando se instalava na cidade um parque de diversão ou um circo, para onde se dirigia esse público, eram ocasiões que nem sempre se conseguia público mínimo que custeasse a exibição, meu pai chegava ao desespero. Era hora de procurar outras ¨praças¨ para não deixar faltar comida à mesa. E isso meu pai fez muito bem, protagonizando exibições em lugarejos onde nunca havia chegado a sétima arte e ainda fornecia filmes com a renda dividida, naquelas cidades onde já havia cinema.

Certa feita, fomos ¨passar¨ filme num lugar chamado São Caetano. Na hora da exibição, nenhum pagante. Papai puxa conversa com morador do lugarejo e fica sabendo que um lutador de um pequeno circo havia desafiado um ¨lutador¨ local e naturalmente todos estavam por lá. Uma meia hora depois lá veio papai acompanhado de umas oito ¨mulheres de vida fácil¨, lá de Custódia, que como nós, também foram trabalhar e faturar com a festa de rua do lugar. A mim foi entregue um disco de 78 rpm com a recomendação de que ficasse virando de um lado para outro, por ser o único disco. A segunda recomendação era coisa de pai para filho: ficar atento ao no som, nada de ficar olhando a dança. Aqui, acolá, meu pai passava o chapéu para arrecadar alguma ajuda e a matutada contribuía de forma satisfatória. No dia seguinte, o capim do quintal estava todo abaixadinho. Anos depois ainda havia ¨senhoras¨ me perguntando: ¨Ei menino, quando é que teu pai vai fazer outro forró daquele?¨ Minha mãe é que não gostou nada daquele acontecido!

No final da década de 70, o Cine Custódia fechou as portas, encerrando a fase romântica do cinema no interior. Digo isto porque dezenas de outros cinemas também assim procederam. A televisão de ótima imagem e som estava acessível a todos. Mesmo cinemas famosos não foram páreo para as programações gratuitas, entre eles: Bandeirantes (Arcoverde), São José (Afogados da Ingazeira) e Alvorada (Tabira).

Em nome do meu pai eu gostaria de registrar o nome de pessoas que contribuíram com o cinema durante quase uma década, sem receber uma prata sequer como pagamento. Foram valiosas as locuções feitas por José Melo e Fernando José, mesmo quando meu pai fazia exibição em outras localidades. Era a voz deles nas primeiras viagens, depois ficou sendo a de papai mesmo. Registro que o falecido Humberto de João Anjo foi o nosso primeiro operador de som e do projetor. Um carinho todo especial ao nosso Severino do Rádio, pelos tantos reparos em nossos equipamentos. Alguém gritava: ¨Cadê o som¨. Meu pai dizia: ¨Chamem Severino!¨ Sem os amigos Guilherme Queiroz e Claudinete Simões o cinema não teria funcionado por muito tempo. O primeiro ¨esquecia¨ de cobrar o aluguel e ao segundo cabia o financiamento de filmes, quando eram épocas difíceis. Por fim, ao também amigo da família Pedro Vitor. Este foi o fiel escudeiro da paz e da tranquilidade em suas atribuições diárias pela cidade e a noite era o nosso anjo da guarda. Coitado, assistia até cinco vezes ao mesmo filme e sempre ao lado de Rosa, à época sua namorada. Quando lá não estava, aos primeiros ¨sapateados da turma¨ meu pai dizia: ¨Chama Pedrin¨. E Pedro ao entrar, dizia em alto e bom som: ¨Pessoal, eu estou aqui¨. A fita podia partir por vezes (e partia mesmo) e ninguém reclamava.

Com a chegada da televisão até a praça ficou vazia. A mulherada só descia para a praça após a novela das oito. Houve até quem cobrasse entrada em sua residência, daqueles desprovidos de um aparelho receptor. Por estas e outras o prefeito Luizito disponibilizou um aparelho a céu aberto, a quem quisesse assistir. Ao meu pai coube perceber a chegada da hora do descanso de uma vida de trabalhos, onde perambulou pelas mais diversas profissões. Isto porque aos nove anos de idade saiu de casa para trabalhar pelo simples prato comida. De lá pra cá, foi agricultor, carreiro, pedreiro, vendedor de ovos, vendedor de sapatos na feira, dono de padaria, militar, comerciante de móveis, entre outras. Prosperidade mesmo só no início dos anos sessenta quando se tornou um dos principais comerciantes da região do Pajeú. O rádio já existia, mas foi o meu pai que o popularizou na região. O preço foi alto demais para uma pessoa acostumada a uma vida singela. Em um triste cair de tarde do ano de 1968 deixamos Tabira, enxotados pelas dívidas e pelo desencanto pelo lugar. Outra cidade teria que nos abraçar e nisto fomos felizes. Custódia representou o porto seguro em um momento de aflição, onde era difícil tomar um rumo certo ou dar sentido ao rumo.

Autor: Carlos Lopes - Olinda/PE

Um comentário:

Carlos Costa disse...

Que mergulho em suas gostosas lembranças, hem amigo? Lindas recordações, perfeita narrativa e ótima crônica.Parabéns!