quarta-feira, 8 de agosto de 2012

O testamento – Novela amazônica - Autor: Carlos Costa

Deixo para trás a saudade e alguns hectares de terra. Não bem só isso: deixo também alguns poucos amigos, umas poucas cabeças de bode que teimam em permanecer existindo, uma cabana mal construída que eu chamo de lar e uma terra miserável que nem sei o porquê de existir. Não dá nada. Não produz nada. Deixo também uma mulher que me abandonou. Os filhos vivos. Os filhos mortos. E muitas lembranças. Mas do que isso, nada tenho para deixar porque até a dignidade eu já perdi. Mas não haverá ninguém para receber minha herança.

Inicialmente, desejo apresentar meu existir a vocês, embora não tenha certeza de um existir, afinal, viver miseravelmente como eu vivo não é existir. É ser teimoso por natureza. Chamo-me Juvenal, Juvenal do seu Zé do Bode porque meu pai criava bodes e assim fiquei conhecido. Ele já morreu. Que Deus o tenha ou o diabo que o carregue. Nascido no Nordeste.

Tenho poucas lembranças do meu pai, porque a morte veio buscá-lo quando eu era pequeno. Dizem que ele morreu de impaludismo. Confesso que nem sei o que é essa doença que deram o nome de impaludismo. Ela existe mesmo ou é mais um nome inventado?

Durante a II Guerra Mundial, navios atracaram no porto de Fortaleza. Muitos nem se davam a esse trabalho e paravam no meio do mar. Soldados desciam. “Ou você vai cortar seringa no Amazonas ou vai participar da guerra”, diziam os soldados. E havia alguma opção?

Quando tinha meus seis anos, caminhava seis quilômetros até um poço de água. Era dele que nós tirávamos a água para beber, cozinhar, dar aos bodes, tomar banho e para suprir outras necessidades também.

Cresci nessa rotina: apanhar água no poço e ver os bodes morrendo de fome ou de sede. De manhã, tirava leite de cabra para beber. Mas isso era raro. As cabras passavam tanta fome e sede que nem leite davam direito.

Como disse, tenho poucas lembranças do meu pai.

Mas sei que ele fez de tudo para que eu tivesse um futuro melhor do que o dele e não morrer de empaludismo. Analfabeto de pai e mãe, dizia que eu tinha que aprender a ler e a escrever. Aprendi muito pouco, só dá para o gasto. Não tenho medo de dizer que isso que você está lendo foi revisado. O professor disse que tentaria aproveitar minhas idéias e nem sei se ele fez isso mesmo porque, embora tenha freqüentado escolas, aprendi a ler muito pouco. Se ele mudou alguma coisa me desculpem, porque é culpa do revisor.

Quando meu pai morreu, lembro apenas que chorei muito e tive que assumir a casa porque eu era o mais velho. Meu pai foi enterrado no quintal mesmo. Colocaram-no dentro de uma rede e depois na cova. Nem caixão fizeram. Minha mãe chorava muito e foi amofinando, amofinando, até que morreu também. Fiquei só no mundo porque todos os meus irmãos morreram também, acho da mesma doença do meu pai.

Bem, não é verdade que fiquei totalmente só no mundo. Conheci uma garota bonita quando ia buscar água. Maria. Ela se chamava Maria da dona Maroca. Acho esse negócio de nome uma coisa esquisita. Nome não serve para nada. O nome do pai dela eu nunca soube. Sei que ela teve um pai mas nunca o conheci. Aliás, eu já disse o nome da minha mãe? Já morreu mas se chamava Maria também, igual ao nome da Maria que conheci. Ela tinha somente 16 anos e eu 17.

Decidimos nos mudar para o Amazonas. O ano era 1906. Época boa para se produzir o látex. Não fui para guerra, mas fui produzir látex para o Exército.

Depois de quase um ano de viagem, cheguei eu e a Maria no Amazonas e nos casamos. Tivemos cinco filhos. Dois morreram logo depois do nascimento.

Só vim conhecer um padre depois dos meus 20 anos, quando casei com Maria. Era assim: um filho morria e a gente fazia logo outro. Lembro que meu pai dizia: filho, onde come um comem dez. Mas não concordo mais com isso. Continuo miserável.

Aportei em Manaus sem dinheiro e com dívidas.

Procurei trabalho. Só tinha nos seringais. Estou agora com 21 anos, um de casado e já pareço velho. O seu Richard, um inglês, pagou todas as nossas despesas de viagem. Dizem que em Manaus vou melhorar de vida. Os homens andam bem vestidos, com terno de linho branco e chapéu na cabeça. Falam coisas estranhas. É uma língua que não entendo. Acho que é francês ou inglês, ou alemão não sei ao certo. Acho que é tudo junto e misturado.

Decidi enfrentar a vida e aceitar o emprego oferecido pelo senhor Richard, no seringal dele. Na hora do embarque, Maria chorou. Meus filhos também. “Vou voltar logo”, gritei, mas acho que ninguém me ouviu devido ao barulho do motor.

Navegamos vários dias. Paramos em um lugar isolado. Tudo era selva. Fiquei espantado ao saber que a maioria era do Ceará. Tinham vindo como “Soldados da Borracha”. Acreditaram nas promessas do Governo Federal. Eu não: acreditei somente no emprego do senhor Richard.

Tinha-se que caminhar para dentro da selva. Cortar pés de seringueira. Chovia muito no meio da selva. Trazíamos toda a produção para a margem do rio. O motor passava recolhendo tudo.

Passei seis anos no seringal. Muitos morreram. Nunca recebi o suficiente. Trabalhava mais de 18 horas por dia. Durante esse tempo, vi minha mulher, a minha Maria e meus filhos apenas uma vez. Ela estava morando na casa do seu Richard e parecia bem. Estava forte e corada. Seu Richard não deixou Maria ficar comigo, deitar comigo. Disse-me que ela estava indisposta. Trabalhava muito. Seu Richard prometeu que eu a veria antes de voltar para o seringal. Não cumpriu a promessa e eu voltei. Nem me deu um abraço. A vi de longe, apenas. Mas notei que ao lado dela tinha um menino louro. Acho que era colega dos meus filhos. Pareciam todos bem, mas estranhos.

Abandonei o seringal. Voltei para Manaus em 1912. Nesse período, não ganhei nada. Continuo devendo. A cidade, antes bonita e alegre, estava abandonada. Seu Richard tinha ido embora. Encontrei minha Maria. Ela estava morando em uma barraca imunda, no bairro dos Remédios. Culpavam os malasianos pela nossa crise. Como iria sustentar a nossa família? A cidade, antes bem desenvolvida, estava falida.

Tentei voltar para o seringal. Não deixaram. Diziam que a borracha não tinha mais compradores. Um tal de Henry Vicham havia roubado nossas seringueiras. Tudo foi parar na Malásia. Não sei se isso é verdade. Sei que agora sou chamado de arigó porque sou nordestino. Não é verdade. Sou um trabalhador e fui abandonado.

Os navios sumiram do porto. As ruas ficaram desertas. Só se vê nordestinos pela rua, perambulando. Fiquei sabendo que a minha Maria não era mais a mesma. O menino lourinho que eu vira era filho dela com o seu Richard.

Tentei me matar. Enfiei uma faca no peito. Levaram-se para o Hospital. Não tinha médico e nem remédio. Comia um dia e o outro não. Chegou o ano de 1942. O mundo estava novamente em guerra e afundaram um navio nosso. 657 pessoas morreram. Tenho certeza que haviam cearenses entre os mortos. Não me deixaram lutar.

Voltei aos seringais. Os japoneses tinham invadido os seringais no Oriente. Eu não sabia que existia isso. Fui contratado por uma Companhia de Desenvolvimento da Borracha. O dinheiro voltou a aparecer. Os navios também reapareceram.

Maria continua morando em Manaus. Meus filhos vieram comigo para o Seringal, só não o lourinho que é filho do seu Richard e não meu.

Hoje chegou navio. Soube que o Ceará continua seco e miserável. Companheiros meus voltaram. Outros chegaram para cortar seringueiras. Eram os soldados da borracha. A produção fracassou novamente. Uns americanos vieram como mandantes. Não entendiam nada de produção em floresta.

Um tal de doutor Figueiredo Rodrigues que era inspetor de saúde no porto de Manaus somava os mortos por empaludismo. Manaus tinha crescido muito, mas continuava pobre. Não haviam farmácias ou médicos. O interior estava abandonado.

Tinha um juiz que cuidava dos pobres.

Fui procurar Maria. Desejava saber notícias dela. Encontrei-a com um homem de cabelos loiros. Já tinha outros filhos. Desejava levá-la para o Nordeste. Mas cada filho era de uma cor diferente. Dos cinco filhos que tive com Maria, quatro morreram no seringal. Só ficou o mais velho. Até o Richard, nome da criança loira que eu vi quando voltava para o seringal, havia morrido também. Tinha encontrado minha Maria, não em um poço, mas nas ruas de Manaus.

Decidi voltar para o Nordeste, sem nada também.

A idade não me permite mais grandes sonhos. Foi uma viagem mais miserável ainda. Redes por todos os lados. Depois, estrada de chão batido. Homens jovens, crianças, mulheres jovens dividiam o ônibus caindo aos pedaços. Era o melhor e era o que o meu dinheiro podia pagar.

Eram todos nordestinos como eu, regressando do inferno. A chata de rodas estava cheia de desiludidos e arrependidos. Antes eu era um migrante desiludido com a terra seca. Agora, estava desiludido com a terra, a vida e com Maria. Comi o pão que o diabo amassou. Agora volto para o começo.

Uma chuva forte alcançou a chata. O vento era forte. Muitas pessoas choravam. Morrer não deveria ser tão ruim assim.

Felizmente a tempestade passou. Pensei em Maria. Como ela teve coragem de me deixar assim? Maria foi ingrata. A vida era ingrata. Fugi da seca. Estou mais velho agora, voltando. Não matei nem roubei...

Enfim, cheguei. O lugar parece o mesmo, miserável como antes. Não há água, floresta ou bichos, mas homens estranhos.

Esse é meu testamento: não deixo nada para ninguém. Você não quer o meu herdeiro? Se somente você, leitor, acreditar que toda essa minha estória é verdadeira, posso morrer feliz.
Autor: Carlos Costa - Manaus/AM
Publicação autorizada pelo autor

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