quinta-feira, 6 de março de 2014

Um rei degolado - Autor: Iratiense Joel Gomes Teixeira

À cada vez que eu cruzava em frente àquela loja, aflorava-me um velho sonho de consumo. Tão somente sonho, uma vez que o "produto monetário", quando aparecia arraigava-se aos bolsos de meu pai e dali não saía com muita facilidade.

Tinha eu entre meus 8 à 9 anos de idade, o desejo de montar um presépio nos moldes daquele que montava-se todos os fins de ano na casa de dona Avelina, nossa vizinha.

Fazia-nos companhia no jantar daquela noite, um compadre de meu pai. Aproveitei-me da ocasião e cantei a pedra:

-Quero comprar um presépio que vi na vitrine da loja tal,... Blá, blá, blá...Blá, blá, blá...

As respostas vieram-me feito um furacão:

-Endoidô, menino?... Isso custa caro! disse-me mamãe.

-Ele pensa que dinheiro "dá em pencas", enfatizou papai.

-Essa piazada de "hoje em dia" quer tudo o que vêem!... Complementou o medioso do compadre, quase engasgando-se com uma folha de alface. (Que eu havia plantado, diga-se de passagem).

Calado externamente, (proferindo milhares de impropérios em pensamentos) retirei-me da mesa e fui para o meu quarto. Como nunca fui de entregar o jogo no primeiro tempo comecei a arquitetar um plano e já na manhã seguinte estava eu, de casa em casa, vendendo ameixas pela vizinhança.

Em pouco mais de duas semanas havia conseguido dinheiro suficiente e mais algum excedente para uns consumismos extras.

Quase gaguejando, tal era a emoção, me dirigi ao balconista da tal loja:

-Quanto custa aquele presépio?

-Trinta e nove mil cruzeiros. Respondeu-me.

-Vou levá-lo.

Com uma certa desconfiança olhou-me, enquanto eu metia a mão no bolso retirando um calhamaço de notas esparramando-as sobre o balcão de vidro.

Sob o olhar atento de dona Tereza, a dona da loja, o balconista deu uma cusparada entre os dedos e começou a contar aquele "rolo" de notas, que ultrapassava o valor do objeto solicitado.

Com o excedente adquiri alguns agradinhos para o pessoal de casa. Retornei empurrando a bicicleta com todo o cuidado para não correr o risco de derrubar o precioso invólucro. Feliz, pelo caminho, sentia-me um bem sucedido empresário do ramo de "horti-fruti". No meu caso, tão somente "fruti" já que hortaliças eu as plantava apenas para consumo próprio. (e de  alguns compadres "mediosos" de meus pais).

Presépio montado. Obedecendo aos exageros de dona Hilda, minha  mãe, (montanhas, pontes, patos... folhagens, ninhos... Uma parafernália). Ficou bonito! Fez sucesso pela vizinhança. À cada novo ano, inovações eram introduzidas. O lago de espelho, plagiado da matriz de São Miguel, ficou um luxo. Alguém, meio desastrado, deixou cair sobre o mesmo uma pilha de lanterna. Abriram-se algumas rachaduras. Fiquei "P" da vida. Dona Hilda, com sua diplomacia, resolveu a questão.

-Não fiques zangado. Ficou até bonito! Estas rachaduras dão o aspecto de ondas no lago, não achas?

E assim, ano após ano, o presépio fora montado na sala de nossa casa.

O tempo correu, o menino esquivou-se e o adulto não tinha lá muita paciência para estas coisas. No entanto, mal dezembro começava a dar o ar de sua graça e a "apurrinhação" começava.

-Vê lá se vai dando andamento ao presépio, dizia minha mãe. Não deixes pra última hora, concluía meu pai.

-É verdade!... Já reservei um canto da sala  especialmente pra ele. Mexa-se! Determinações de dona Hilda.

E o mártir aqui, não tinha escapatória. No final das contas eu até acabava gostando de reviver aquele clima de tantos anos.

Inevitavelmente, as peças começaram a sofrer a ação do tempo. Algumas ranhuras, mutilações (a mula perdera uma das orelhas), uma ovelha quebrou-se e, numa queda, acidentalmente "Baltazar", um dos reis magos teve a cabeça decepada.

Uma catarata violentíssima acometera-se das vistas de meu pai. Este, antes da cirurgia que o "remoçou para a vida", segundo suas palavras, no intento de mostrar-se prestativo, apanhou um punhado de "durepox " e reconstituiu (?) o rei mutilado.

Seria cômico, caso não fosse trágico, mas o neblinado das cataratas fizeram com que a cabeça do rei fosse colada no sentido oposto.

Assim, aquele olhar respeitoso do bibelô, antes dirigido ao invólucro com ouro que levava como presente, apreciava agora tão somente a sua região glútea.

Papai, no melhor estilo "versátil da melhor idade", vangloriava-se:

-Tás vendo! Resolvi o problema do "reizinho". Ainda bem que hoje existem "estas colas modernas".

Foi o riso mais sufocado em toda a minha vida. Concordei para agradá-lo e fui saindo à francesa. Com uma serrinha de cortar cano, decepei novamente o "Balta" e com a "cola moderna" coloquei-lhe a cabeça no lugar. O pescoço sofreu uma ligeira diminuição, mas o olhar dirigia-se a partir daí para o ouro a ser presenteado.

Para encerrar o assunto, desde então, "Belchior", o do incenso, sumiu, escafedeu-se. Presume-se ter fugido horrorizado diante da atrocidade de  duas cirurgias, sem anestesia, sofridas pelo companheiro "Baltazar".

Mais alguns dias, e agora em nossa casa, o presépio às vésperas de seu cinqüentenário ocupará um lugarzinho na sala. A mula sem orelha, a ausência de algumas ovelhas, um anjo com ligeiras escoriações e, eles: Baltazar e Gaspar, preocupados ainda com o sumiço de Belchior, o fujão.


Autor: Iratiense Joel Gomes Teixeira - Irati/PR
Página do autor:
Publicação autorizada através de e-mail de 16/12/2011
PS. Quando  êste  conto  foi  escrito,o presépio  era  ainda  um  quase  cinquentão. Hoje, tem  êle, exatamente  52  anos.

4 comentários:

joeeliasfarias@hotmail.com disse...

Parabéns por mais uma pérola Sr. Iratiense. Entre Um rei degolado e Ecos & Cheiros ... vou ficar com as duas. São o próprio natal! Um abraço.

Alexandre Tomaz disse...

Li e gostei muito de Um Rei Degolado. Parabéns e Feliz Natal a todos.

Fabiana Lopez disse...

Adorei sua crônica de natal Sr. Iratiense! Bom natal e feliz ano novo.

Carlos Costa disse...

Comecei a ler seu escrito por curiosidade do títul, depois por puro prazer e, ao final, viajei em seu excepcional conto, imaginando as cenas do "Baltazar", colocado com a cabeça para as costas e depois a sua fuga. Viajei, literalmente, em sua narrativa. Um abraço,