segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

"As regras e o suco de limão" - Dias Índios (XXIV)

Autor: Professor Wanderley Dantas
"Lu, você come peixe quando está menstruada?", perguntou a indígena para minha esposa. A nossa presença dentro da aldeia abre espaço para que eles nos perguntem sobre muitas coisas como essa. Assim, por causa da presença da Lu, as mulheres têm se aproximado dela e sentido liberdade de fazer comparações e indagar sobre si mesmas. É óbvio que não falamos nada que não seja perguntado a nós e, mesmo assim, seguimos toda cautela, porque não queremos realizar esses passos por eles. A situação da proibição de certos alimentos em determinadas épocas está ligada, segundo alguns estudiosos, às questões espirituais, mas também econômicas. Muitas culturas têm "proibições" alimentares. Quem não já ouviu da mãe que não se pode misturar leite com manga ou coisas semelhantes? A própria Bíblia apresentou aos judeus no deserto uma lista de animais puros e impuros.
-Pergunta para elas por que elas não fizeram o suco de limão? Insisti com o indígena agente de saúde amigo meu, que estava me visitando na casa do cacique.
-Elas disseram que é porque você é o dono da comida e não pediu para elas. Bem, diante dessa resposta, eu ri da minha confusão. Aproveitei e compartilhei com eles o que eu estava imaginando que poderia ser.
-Rapaz, sabe de uma coisa? Vou te contar e depois você explica para elas também. Bem, toda vez que eu chego aqui na casa do Cacique, trago uma ou duas caixas de comida (arroz, feijão, macarrão, etc) e entrego ao cacique, dizendo: "Esta é a nossa comida"! Assim, todos na casa comemos da minha comida acrescentada da comida própria deles, peixes e biju. São as filhas do cacique que fazem a comida para todos nós na casa. Entretanto, eu já estou para ir embora e os dois sacos de suco de limão estão aí fechados até agora. Sabe, lembrei de uma história que aconteceu com duas professoras que foram expulsas de uma aldeia e não sabiam o motivo. Não lembro bem dos detalhes, mas sei que elas resolveram fazer o que todos nós deveríamos fazer, o quanto for possível, antes de entrar numa área transcultural: estudar a cultura específica e seus detalhes. O que as professoras descobriram? Todos os dias, elas iam no mato colher limões para fazer suco, todavia, o que elas não sabiam é que naquela cultura o suco de limão era anti-concepcional e o povo logo concluiu que elas deveriam estar dormindo com os maridos da aldeia e, então, as expulsaram! Eu estava aqui pensando: "será que entre vocês também seria assim; será que as filhas do cacique não faziam suco de limão, por causa de alguma proibição semelhante"? Quando meu amigo indígena terminou de ouvir a explicação, riu também.
-Não, não - disse ele rindo do que eu estava explicando - a gente bebe suco de limão sim.
-Mas há alguma coisa parecida, alguma comida que vocês não podem comer?
-Professor, a criança não pode comer peixe e a mãe também não, logo assim que a criança nasce.
-Por quê?
-Não sei... aquele povo da sua história não tinha as regras deles? Então, essas são as regras da gente. Aqui na Região tem povo índio que faz diferente da gente, mas aí já são as regras deles... Essas são as regras dos homens para as mulheres e crianças...
Eu estava encantado com aquilo que eu estava ouvindo. Aquele discurso era lindo e profundo. Era uma auto-avaliação e uma percepção do povo e do mundo que os cercava: "essas são as regras da gente"... Logo eu pensei no mundo bíblico, especialmente em Pedro, apóstolo de Jesus, um homem pescador e também cheio de regras a seguir. Pedro era um legalista que também seguia uma lista rígida de alimentos impuros nos quais não devia sequer tocar (Lev 11). Mas, no meio do dia, Pedro teve uma visão e Deus disse a ele: "Pedro, não chame de impuro o que Deus purificou". Pedro descobriu naquele momento que Deus estava mudando as regras para que o Evangelho pudesse chegar a todos os povos (Atos 10: 9ss). Esta é uma chave preciosa para um futuro discipulado que estou guardando e aguardando: mostrar que na pretensão da rigidez cultural, Deus pode interferir e mudar as nossas regras!

Autor: Professor Wanderley Dantas

http://o-seringueiro.blogspot.com.br/

Publicação autorizada pelo autor

Um comentário:

Maria Mineira disse...

Bom dia, Professor. Acompanho todos os seus textos. Essa questão de costumes e culturas é muito interessante. Cresci num ambiente rural cheio desses tabus. Manga com leite, amendoim com laranja eram alguns dos alimentos que não se podia misturar, com risco de morte, segundo os costumes. Lembro-me também de ouvir minha vó dizer que mulher menstruada não podia lavar os cabelos, mulher de resguardo só podia comer lombo de porco sem gordura.Arroz se ela comesse estava condenada a ter "barriga d'água". O Brasil é um país de uma riqueza cultural incrível. Um abraço e parabéns pelos textos!