Autora: Ana Bailune
Ano: 1933. A menina
segurava a mão do pai às portas do colégio interno, implorando-lhe:
-Pai, não me deixe aqui!
Eu quero ir para casa com você!
O pai, pesaroso,
respondeu:
-Mas eu não posso tomar
conta de você, filha! Desde que sua mãe morreu, tem sido muito difícil para
mim. Mas olha, aqui você será bem tratada. Não será como nas outras casas, e eu
prometo que venho sempre visitá-la. Você vai ficar bem, e terá uma porção de
amiguinhas para brincar com você.
A menina chorou, e chorou
mais ainda quando, de mãos dadas com Irmã Malvina, viu o pai afastar-se e sair
pelo portão do colégio. Irmã Malvina levou-a para o dormitório e apresentou-a
às outras meninas. Logo, ela fez uma boa amiga, uma menina negra com quem as
outras meninas não brincavam. A menina pegou-a pela mão, dizendo:
-Você vai ver, aqui não é
tão ruim. Temos uns gatos no porão, e temos a horta, que a gente pode ajudar a
cuidar, e tem também teatrinho no Dia das Mães. Você gosta de teatrinho?
Ao ouvir a palavra 'mãe,'
a menina entristeceu-se:
-Eu não tenho mãe.
A colega consolou-a:
-Muitas aqui não tem. Eu
tenho mãe, mas ela mora em outra cidade, trabalha em casa de família,e nem
sempre pode vir visitar-me. Aquela ali, a Neusa, não tem mãe nem pai. Viu? Não
fique triste!
E puxando-a pela mão,
levou-a até o porão, para conhecer os gatos.
Na manhã seguinte, às
cinco e trinta, elas foram despertadas pelo sinal da escola, enquanto Irmã
Dulcina entrou no dormitório, anunciando:
-Ponham seus camisolões
de banho, meninas!
-As garotas ainda
sonolentas, vestiram seus camisolões de banho. Já no banheiro, a menina
perguntou:
-Por que a gente tem que
tomar banho de roupa?
-Porque é pecado ficar
nua na frente dos outros, ora!
A menina aguardou, até
que chegasse sua vez de usar um dos chuveiros, e teve um choque ao constatar
que a água que saía deles era gelada! Imaginem só, tomar banho às cinco e
trinta da manhã, no inverno, de camisolão e água gelada! Mas com o tempo, ela
acabaria se acostumando, embora jamais viesse a gostar.
As aulas começavam
pontualmente às sete, e iam até o meio-dia. Depois, elas iam almoçar no enorme
refeitório. Cada menina tinha direito a apenas um prato raso de comida, e
ninguém podia repetir. À tarde, tinham aulas de datilografia e trabalhos
manuais. Às três, era servido um lanche que constava de uma caneca de café
preto bem ralo e um pedaço de pão; quando tinham sorte, ganhavam também uma
banana ou laranja. Nos finais de semana, cada menina tinha direito a um pedaço
de goiabada.
Às cinco da tarde,
jantavam, e só voltariam a comer novamente, na manhã seguinte.
A maioria das freiras
eram rígidas. Algumas delas, eram até mesmo cruéis, como Irmã Malvina. Se
alguma menina a desobedecesse, ou fizesse algo que ela não aprovava, ia para a
frente da sala de aula e tomava 'bolos:' com uma palmatória, Irmã Malvina batia
várias vezes na palma da mão da menina considerada 'travessa' ou 'preguiçosa.'
Havia também os sermões,
onde as freiras ensinavam o que era e o que não era pecado - mas a primeira
lista era sempre infinitamente maior que a segunda. Tinham que tomar muito
cuidado, pois Deus via tudo, até mesmo, o que elas faziam no banheiro quando
pensavam que estavam sozinhas. Deus era um punidor implacável, que todas
deveriam respeitar e temer muito!
Havia missas aos
domingos, e elas tinham que estar de pé bem cedo e colocar seus uniformes de
gala. Era uma ocasião feliz, pois podiam assistir aos sermões do Padre Pedro,
que era jovem e muito bonito. Mas... até mesmo aquele pensamento era
pecaminoso, e quando ela disse à uma das amigas que achava o Padre bonito, Irmã
Malvina, que ia passando, a ouviu. Puniu-a com cinco 'bolos' na mão, dizendo
que toda vez que tivessem pensamentos como aquele - segundo uma das freiras -
deveriam rezar, ajoelhadas sobre o milho, dez Padre Nossos e Dez Ave-Marias!
Ela não conseguia entender por que achar alguém bonito era pecado.
As visitas eram a cada
quinze dias, e seu pai sempre ia visitá-la. Algumas meninas nunca recebiam visitas.
A menina tinha que dividir os doces que o pai levava com algumas de suas
coleguinhas, por ordem das Irmãs, e muitas vezes, quando não dava tempo de
esconder algum doce, ficava quase sem nada.
Ela sempre perguntava ao
pai quando a levaria embora com ele. Mal sabia que teria de viver ali até
completar dezoito anos!
Certa vez, ela riu de uma
brincadeira que uma das colegas tinha feito durante uma aula de gramática. Foi
apenas um riso abafado, acompanhado pelo riso de outras meninas, mas Irmã
Malvina calhou de estar olhando logo para ela! Chamou-a à frente da classe, e
depois de puni-la com dez 'bolos,' olhou-a bem dentro dos olhos e esbravejou:
-Você está aqui porque lá
fora, ninguém mais a quis. Trate de comportar-se, ou irá direto para o
inferno quando morrer!
Aquela frase
ficaria marcada em sua memória e em seu coração enquanto a menina vivesse:
Ninguém mais a quis!' E durante toda a sua vida, ela nunca conseguiria
acreditar que era amada.
Autora: Anabailune - Petrópolis/RJ
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2 comentários:
Muita emoção neste texto da Ana.
É triste e lindo ao mesmo tempo.
E tudo tão parecido para mim em alguns pontos.
Parabéns a autora que deu show num texto tão delicado. Realmente algumas pessoas não entendem a sensibilidade de uma criança, e então as tratam como qualquer coisa que respira, fala, e aborrecem. "ninguém mais a quis", que crueldade!
Felizmente são apenas algumas pessoas.
Abraço Carlos
Obrigada por publicá-lo aqui, Carlos. este texto foi baseado nas histórias que minha mãe me contava sobre o colégio interno onde passou a infância e a adolescência, e tentei reproduzir o mais fielmente possível o que me ficou na memória sobre aquelas tardes, à mesa da cozinha, em que ela me contava suas histórias. Grata pelo comentário, "Aleatoriamente."
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