quarta-feira, 19 de março de 2014

O homem sem língua e um cachorro sem nome

Autor: Geraldinho do Engenho

Miriam conseguiu seu primeiro emprego, trabalhando no caixa de um supermercado. Foi à realização do sonho alimentado desde criança, quando ela se encantou com a gentileza da funcionária que lhe atendia numa lanchonete. Isso aconteceu no dia em que, acompanhada pela mãe, elas pagavam ali, seus salgadinhos e guloseimas com aquele sabor de infância.
Tão doces como aqueles caramelos, esta lembrança aprimorava cada vez mais sua capacidade no relacionamento com a clientela. Causando admiração e cativando patrões e colegas de trabalho com a sua doçura.
Dentre aquela legião de pessoas que todos os dias passavam pelo seu caixa, estava aquele senhor já idoso e simpático, com a aparência de militar aposentado.
A cada dois dias, lá estava ele de sextinha na mão, com seu agradável semblante, sem dizer uma única palavra. Pagava com seu cartão de crédito os enlatados, lanches, e o pacote de ração para seu cão, que educadamente o aguardava na rua. Em frente ao caixa, de onde Miriam tinha uma perfeita visão ao longo da movimentada avenida. Por ela, seguia o cliente, acompanhado por seu melhor amigo. Talvez esse senhor fosse o mais fiel cliente daquele estabelecimento comercial desde sua abertura. Seu trajeto era periciado pelo olhar de Miriam até desaparecer no final da avenida, no meio dos inúmeros transeuntes.
Embora sem saber a cor das palavras daquele simpático senhor, ela sentia que algo a deixava confortável em sua presença.  Tomada por uma grande afeição, o tratava com todo carinho. Não sabia por que, mas alguma coisa naquele homem a atraia. Seria aquele olhar de ternura que a encantava tanto?
 Às vezes, chegava a invejar seu animal que o aguardava paciente evitando não perturbar nem mesmo aqueles que por ali transitavam. Como se fosse também um ser humano, parecia reconhecer seu lugar e jamais adentrava o estabelecimento.
Afastada do trabalho, gozando férias, levou consigo a imagem daquele cliente. E, onde quer que ela estivesse, não conseguia tirá-lo do pensamento. Seu carisma... Seu olhar terno... Comentou com a mãe a respeito daquela estranha atração. Passou a ela as características do homem, mas a mãe desconversou. Ela insistiu no assunto, mas foi repreendida. A mãe lhe dizia ser impossível ela com aquela idade se apaixonar por um velho que além de tudo deveria ser mudo.
A moça justificou dizendo que aquele sentimento era na verdade um estranho sentimento de respeito, não de um amor sensual.
Ao retomar sua função no trabalho, aguardou com ansiedade a presença do seu ídolo, mas ele não apareceu. Perguntou ao colega, que a havia substituído, todavia ele disse que poucas vezes o atendeu. Com certeza, deveria ter sido atendido por outro funcionário.  Alguns dias se passaram e do cliente nem sinal. Já decorrida uma semana, Miriam notou a presença do cachorro à frente da loja, no lugar do costume. Imaginou ter o cliente entrado sem que ela percebesse, por isso aguardou sua passagem pelo caixa, mas, tal não ocorreu até o momento de encerrar o expediente. No dia seguinte, o cão apareceu novamente. A mesma rotina. No terceiro dia ao encerrar a atividade, o cão estava lá no lugar de sempre e acompanhava com o olhar sua movimentação.  Ela comentou com seu colega de trabalho a respeito do procedimento do cachorro, dizendo-se preocupada.
Convidada pelo colega, que se dispôs a acompanhá-la, os dois o seguiram. Ao perceber que conversavam sobre o assunto, o cachorro se manifestou festejando, dando sinal de que entendera a mensagem. O cão os levou a um bairro nobre. Num luxuoso condomínio, encontraram o pobre homem acamado e febril. Acionaram, de imediato, uma viatura que o conduziu ao hospital aonde ele já chegou sem vida.
Na autópsia constatou-se morte por falência múltipla de um indivíduo, cuja língua fora mutilada talvez por um inexplicável acidente com um produto químico.
Foram examinar seus documentos. Constataram ser ele um ex-pracinha de guerra. Ele deixava, em testamento, todos os seus bens para sua desconhecida filha cuja mãe o havia abandonado ao tomar conhecimento de sua deficiência pós-guerra e jamais dera noticia da filha, que nascera após sua partida. Sabia apenas, por uma velha carta amarelada pelo tempo, recebida no campo de batalha, que a filha havia nascido e recebera na pia batismal o nome de Miriam.
Junto, uma carta escrita de seu próprio punho, solicitando às autoridades procurar pela filha entregando-lhe seus bens e recomendando-lhe a guarda de seu cachorro sem nome!


Geraldinho do Engenho - Bom Despacho/MG

 

Publicação autorizada pelo autor

Um comentário:

Maria Mineira disse...

Excelente conto! Geraldinho do Engenho é um dos meus escritores preferidos, aqui e no Recanto das Letras. Quando leio seus textos tenho a certeza de aprender algo de novo. Parabéns!