Dias
difíceis. Era chegado o momento em que Alzira precisaria tomar uma difícil
decisão, talvez uma das mais difíceis de sua vida. Emocionada, angustiada e
muito confusa, agarrava-se à lembrança do dia em que bateram à sua porta e
ofereceram-lhe aquele filhote – era uma linda cadelinha, de olhar doce e
carente.
Passaram-se
catorze anos desde que Killah fora acolhida na casa de Alzira, fora trazida por
um vizinho. Ele contou-lhe que acabara de encontrar o filhote em um bueiro
perto da linha férrea e estava acompanhado do menino Duda – sobrinho de Alzira
– quem o ajudara no resgate e pedira a ele para que o ajudasse a convencer sua
tia a adotá-la. Houve muita resistência pela adoção, pois não fazia muito tempo
que o cão de estimação da família havia desaparecido, talvez tenha sido
roubado. Todos sofreram muito pela perda, jurando não acolher em casa e nem se
apegar mais a nenhum animal. E outro detalhe é que Duda estava apenas passando
uma temporada na casa da sua tia, daí a pouco voltaria para sua casa, em outro
país. Entretanto, aquele olhar “pidão”
do menino e também dos dois filhos de Alzira, além daquela expressão de
abandono da cadelinha, acabaram por convencê-la. Assim adotou-se Killah, nome
escolhido por Duda e prontamente aprovado por todos.
Os
dias se tornaram mais divertidos para os meninos com a presença daquela
cadelinha e até Alzira que resistira tanto, embora tentasse disfarçar, já se
perdia de amores por ela. Um filhote dá muito trabalho, destrói coisas, faz um
bocado de sujeiras em seu espaço e até certa idade, chora e requer muita
atenção. Entretanto, não faltaram promessas por parte dos meninos, de que se
responsabilizariam por todas essas coisas, desde os cuidados com a comida, com
a higiene de Killah e do espaço que ela ocupasse. Ledo engano! Na verdade, só
se responsabilizaram mesmo pelos bons momentos de brincadeiras e de dar a ela
os primeiros treinamentos, comandos e essas coisas que se costuma ensinar aos
cães. Assim Alzira a cada dia se sentia mais apegada e em contrapartida, ganhou
uma verdadeira e fiel guardiã, na medida em que Killah crescia.
Dizem
que cachorro não pensa, não fala, mas essas afirmações eram contestadas
veementemente por Alzira, que não se cansava de contar aos outros que a sua
cadela era diferente, especial e que elas conversavam e se entendiam muito bem.
Dizia que ela entendia perfeitamente o “dialeto” canino. Como mera espectadora,
eu mesma pude presenciar alguns momentos em que, entre palavras de Alzira e
grunhidos de Killah, elas pareciam mesmo travar uma boa conversa.
Havia
outros comportamentos bem interessantes, como por exemplo, no horário dos
cochilos costumeiros de Alzira, após o almoço, a cadela deitava-se na soleira
da porta do cômodo onde a sua dona descansava e ali permanecia até que ela se
levantasse. Nenhum convite para brincadeiras com os meninos, a fazia sair dali.
Assim que foi conhecendo toda a família, filhos, sobrinhos e outros, de sua
dona, ela passou a comportar-se de uma maneira notável: quando chamavam à
campainha, Killah era a primeira a se manifestar. Dirigia-se ao portão latindo
braviamente e se percebia que era alguém da família, parava de latir e corria
até o interior da casa, até encontrar Alzira, correndo de volta ao portão em
repetidas vezes, como se quisesse avisá-la da chegada de alguém de casa. Quando
se tratava de desconhecidos a bater à porta, ela não parava de latir e não se
distanciava da entrada. Há uma coisa muito curiosa, ela não gostava de
prestadores de serviços públicos, como agentes da companhia de luz, de água,
correios, limpeza urbana, latia como fera quando percebia a presença deles. Era
preciso atendê-los através da grade que cercava o jardim. Alzira me disse que nunca entendeu bem esse
comportamento, mas acreditava que de alguma forma ela queria dizer: “Nunca deixe
estranhos entrar em sua casa, se eu não puder estar por perto.”. Mas, sabe-se lá o que passava na cabeça dela.
Ela impunha respeito aos de fora, mesmo sendo a cadela mais dócil que seus
donos, familiares, ou amigos que recebiam em casa, conheceram.
Entre
essas e outras tantas histórias que ouvi e poderia contar, passaram-se os catorze anos de vida de Killah e ela já não se parecia em nada mais com aquela
respeitável guardiã da família e da casa. Não mais se manifestava aos chamados
e já tinha enormes dificuldades para se movimentar. Foi aos poucos perdendo a
visão e até mesmo o faro. Alimentava-se com dificuldade e em poucos dias teve
as patas traseiras completamente paralisadas. Era preciso que os filhos de
Alzira a levantassem e a segurassem, até mesmo para fazer as suas necessidades
fisiológicas. Eles a levaram em veterinários, tentaram vários tratamentos,
medicamentos e nada, a cada dia ela piorava, chegando o momento em que
paralisaram também as patas dianteiras e aí foi um sofrimento só, ver aquela
amiga e companheira naquele estado. Veio então o veterinário e explicou sobre o
prognóstico da doença: em poucos dias paralisariam também os órgãos vitais e
com isso viriam inúmeras outras consequências. Não havia cura e nenhum paliativo
que pudesse dar-lhe alívio. Sugeriu então, que a melhor solução para evitar
maiores sofrimentos para Killah, seria praticar a eutanásia.
Segundo
contou-me Alzira, aquela sugestão caiu-lhes como uma bomba. Todos se
desesperaram e a tristeza tomou conta da família. Era uma decisão crucial e ela
se viu “entre a cruz e a caldeira”, pois seus princípios e valores e que os
passava para sua família, eram contrários a tirar a vida de um ser vivo animal.
Claro que era um momento de reavaliar tudo aquilo, mas esse foi um grande
desafio. Chamou os filhos e perguntou a eles o que achavam a respeito dessa
situação. De início, ambos se manifestaram contra a ideia de eutanásia e se
propuseram a continuar cuidando dela até o fim e Alzira por sua vez, também
relutava por essa medida drástica. Entretanto, dois dias após a última visita
do veterinário, tudo que ele previra aconteceu, alguns órgãos pararam de
funcionar, ela já não respondia mais aos toques de seus donos, não se
alimentava e parecia desmaiada na maior parte do dia. Foi aí, que um dos filhos
de Alzira a chamou e disse-lhe que não havia outro jeito, que ela
providenciasse tudo, mas que havia uma condição: ele não deveria estar presente
quando a levassem. A filha também teve a mesma reação.
E
agora? – pensou Alzira – a responsabilidade é toda minha, mas o que fazer?
Pensou
durante toda a noite e no dia seguinte, esperou que seu filho saísse para o
trabalho e com uma tristeza enorme, decidiu-se: ligou para a clínica
veterinária e acertou os detalhes. Para sua surpresa, a sua filha, ao ouvir o
telefonema, disse-lhe que mudou de ideia e que elas mesmas levariam Killah até
a clínica e que ela dispensasse o transporte que essa oferecia. Isso facilitou
um pouco mais a tarefa. Embrulharam a cadela em um cobertor e a filha levou-a
no colo, como se fosse um bebê.
Na
clínica, as duas quiseram saber de todos os detalhes, se haveria sofrimento
para Killah, quanto tempo demoraria, onde seria enterrada, etc. Assim que
souberam que ela seria anestesiada antes da injeção letal, se sentiram mais
aliviadas e fizeram questão de assistir a aplicação da anestesia, até o último
olhar que Killah lhes lançara – um olhar, que Alzira me descreveu, como o mais
doce que ela já vira antes e que talvez quisesse dizer, “obrigada por me evitarem
mais sofrimentos, estou partindo feliz”.
Saíram
as duas daquela sala e aguardaram o procedimento final. Assim que o veterinário
veio avisar-lhes que estava concluído, elas entraram novamente e se
certificaram que Killah já não sofria mais. Não houve jeito de conter as
lágrimas, mas elas saíram dali convictas de que aquele foi o melhor remédio.
Naquela
casa todos se lembram de Killah com muito carinho. Ela lhes deixou uma de suas
crias e que foi também acolhida no coração de todos, com alegria e muito amor. Fiquei
pensando na dedicação, no sofrimento dessa família e avaliando a força, a
natureza do amor que um animal de estimação desperta nos humanos. E eu que
nunca cogitei em ter um animal em casa, acabo de adotar uma cadelinha. Seu
nome? Killah.
4 comentários:
Texto muito interessante, dentro dos parâmetros do concurso e que aborda a eutanásia, tida e havida como tabu, para a maioria das pessoas. Há alguns deslises gramaticais, facilmente contornáveis. Parabéns a quem o produziu.
Os animais são capazes de promover grandes transformações na vida das pessoas. Killah deixou saudades muito boas tenho certeza. Parabéns! Marina Alves.
(Padrão usado em todos os textos comentados para dar a todos um tratamento igual). Fazendo pois uso dos critérios apontados no regulamento, deixo aqui minha impressão: ortografia, gramática e pontuação: se há erros graves desta natureza, não percebi durante a leitura. Traz uma história comovente, contada de forma competente num tom lúcido e de reflexão, lê-se carinho e respeito nas entrelinhas. Está entre um dos melhores textos lidos (até agora) deste concurso. Parece estar perfeitamente de acordo com a proposta (observando o requisito de demonstração de afeto pelo animal). Lembrando que estou apenas comentando os textos sem compromisso. Avaliação pessoal: ótimo texto! Parabéns à autora ou ao autor e muito boa sorte! (Torquato Moreno)
comovente, fez-me lembrar da nossa cadelinha que viveu conosco por 14 anos. Conceição Gomes
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