terça-feira, 15 de julho de 2014

Circuito interno


Autora: Maria Mineira

Ando pela sala a esmo, envolvida por paredes frias. Enquanto um desespero me invade, procuro sua imagem à minha frente. Aquela tela que mostrava o circuito interno de tevê transformou-se no espelho da minha ansiedade e tormento.
Quero de novo a sua presença, preciso desse alívio que não chega. Meus olhos pousam nos onze livros da estante.  Ansiosa ando de um lado ao outro folheando páginas. A vontade é descer e verificar se o carteiro já deixou a encomenda que chega religiosamente no mesmo dia do mês.
Pela câmera, passo o tempo a observar dia após dia. Perco horas a acompanhar a vida de outras pessoas. Vejo tanta vida à minha frente e começo a duvidar do sentido da vida que estou levando.
Nem as lágrimas insistentes conseguem dar vazão a esse sentimento angustiante. Eu, cada vez mais impotente diante dessa tela, onde minha realidade é o contrário de tudo que sonhei.
Jamais esquecerei nosso primeiro encontro naquela livraria. Ironia do destino, ambos disputávamos o último volume de “Memorial do Convento” de José Saramago. 
— O livro é seu.  Gostaria que aceitasse como presente.  Sorriu e convidou-me para um café.
Aceitei meio encabulada diante daquele homem de cabelos grisalhos e olhar terno. Soube que apesar de brasileiro, trabalhava como professor de Literatura Estrangeira numa universidade inglesa e estava no Brasil em férias, visitando a única irmã. 
Falei do meu trabalho como secretária numa multinacional. Conversamos amena e divertidamente a tarde toda. Ao final, telefones trocados, e-mails também.
Ele e eu tínhamos tanta coisa em comum e não seria um oceano e trinta anos de diferença que iriam nos separar. Foi constante a troca de mensagens, textos, confidências e dicas de livros, pois tínhamos gostos muito parecidos.
Quando percebemos estávamos apaixonados. Apesar da distância, confessou-me que seu amor por mim tornou-o quase adolescente outra vez. Para amenizar a saudade, deu-me a senha do circuito interno de TV da universidade onde lecionava. Assim, acessando um site, podia vê-lo chegar e sair todos os dias do trabalho através da internet. Desde esse dia pude observar cada um de seus movimentos nas manhãs londrinas.
Recordo minha surpresa, quando voltei das férias no interior e através da câmera, vi sua imagem na penumbra entre o acervo de sua biblioteca. Confidenciou-me, que ali sentia-se com alma de passarinho. Nesse dia, após recitar-me um verso de Camões – "Mais servira, se não fora/ para tão longo amor tão curta a vida." falou-me dos problemas cardíacos, da cirurgia marcada, do desejo que eu fosse a guardiã de todos os seus livros...
Através de uma tela, dia após dia vi a imagem do meu amado professor debilitar-se aos poucos. Apenas o brilho dos olhos permanecia.
Aquela tarde nem notei a luz desaparecer e quando o sol retornou derramando seu dourado em meu quarto julguei terminada minha espera. Muito estranho o que senti. Solidariedade na dor? Seria isto o que chamam de sintonia? Não tive fome e nem vontade fazer coisa alguma. Você doente em seu leito e eu ardendo em febre do outro lado do mundo. Senti a dor do meu amor. Os calores do seu corpo se esvaindo me aqueciam aqui, milhares de quilômetros distantes...
Hoje faz um ano... Uma onda quente de saudade envolve todo o meu ser. Anoitece quando finalmente ouço o lamento do interfone. Antes de abrir o envelope, respiro fundo, apertando-o contra o peito, para depois rasgá-lo impaciente. Ao ler a última revelação um sentimento misterioso me faz estremecer... 

Então minhas lágrimas molham as páginas do décimo segundo livro.




                               Autora: Maria Mineira - São Roque de Minas/MG

Ilustração: Edmar Sales - Custódia/PE


          Publicação autorizada pelos  autores

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