[Gerson de Carvalho Silva]
André nasceu e cresceu na Vila do
Alto da Serra. O nome do local havia mudado fazia bastante tempo, mas alguns
preferiam o original. A vila ferroviária de origem inglesa era constituída por
casas de madeira, um “castelo” onde originalmente morava o engenheiro chefe e
um relógio que imitava o Big Ben. O menino cresceu explorando a mata ao redor
que se estendia até o mar, passando a conhecê-la muito bem, às vezes servindo
de guia para gente de fora. Estudou na pequena escola do local, onde sua avó
era professora. Esta lhe contava histórias do folclore indígena como a do
Anhangá, demônio protetor das matas. Ouvia também lendas europeias, trazidas
pelos ingleses, como o Cernunnos, o deus cervo. Além disso, segundo algumas
lendas, os protetores das florestas poderiam assumir formas humanas e almas
perambulavam pelas matas, tentando entender o que lhes tinha acontecido.
Certa manhã, André já
adolescente, ouviu vozes vindas da mata e, aproximando-se teve uma visão pouco
nítida, espectral, de um casal com roupas antigas vagando pela mata. De repente,
desapareceram e ele com medo, correu e nunca falou sobre isso.
André fez faculdade e estudou no
exterior. Morando em São Paulo, ficou sabendo da Festa do Cambuci, fruta
nativa, sua preferida na infância. Voltando à vila, observou que a ferrovia não
descia mais a serra para o litoral e seus equipamentos estavam abandonados. Seus
pais e avós haviam falecido e ele passou boa parte da noite tomando cachaça com
cambuci. Sentiu-se mal e foi para próximo de sua floresta querida, para tentar
se recuperar. Novamente ouviu vozes vindas da floresta e o mesmo casal
apareceu, encarando-o com certo olhar de surpresa.
[Alice Gomes]
André soltou um berro que se
podia ouvir a um quilômetro! Ao sentir que duas mãos lhe sacudiam, retorceu o
corpo e encolheu as pernas, na tentativa desesperada de se levantar e sair
correndo. Sem coragem de abrir os olhos custou a reconhecer a voz de Tiago, o
amigo de infância com quem bebera na noite passada.
- André! André! Acorda! O que
você tá fazendo deitado aqui no meio do mato? Acorda!
Primeiro um olho, depois o outro,
os dois... e o alívio! Estava vivo! - Ou o amigo também tinha morrido -
ainda pensou por um instante.
Enquanto Thiago se esborrachava
de rir da sua cara de pavor, André se acalmava. Aceitou a mão estendida e
tentou ficar em pé, mas as pernas fraquejaram. Permaneceu sentado no chão
por alguns minutos, tocando-se, até se certificar que ainda estava
inteiro. Tiago arrependeu-se de tripudiar do sofrimento de André ao ver
seu estado e, em tom mais sério, lhe afagou as costas, para o tranquilizar.
-Não sabia que você era tão fraco
pra bebida. Acabou dormindo aqui, foi?
- F...Foi... respondeu André,
envergonhado ao perceber o dia claro e vários outros amigos à sua volta.
Levantou-se rapidamente. Precisava urgentemente estar só, para colocar ordem
nos pensamentos.
Já no hotel e com a cabeça sob a
ducha fria, tentou se lembrar de todos os detalhes da noite interior. - Não foi
sonho. Não foi bebedeira. Eu os vi e não foi a primeira vez. E, dessa vez, ELES
me viram! - repetia para si mesmo e a cada vez que repetia um novo calafrio.-
Porque, uma coisa é você ver uma coisa, outra coisa é a coisa te ver!
Agora não adianta mais simplesmente não ir mais à floresta. Quem garante que
eles não venham até mim, onde eu estiver? Uma coisa é certa: uma hora terei de
enfrentar, com medo ou sem medo - Encorajou-se. Tomaria uma atitude. Mas, por
onde começar? Teria de falar com alguém sobre o ocorrido, mas e o medo de o
ridicularizarem? - Dane-se! Vou começar pelo Tiago.
Tiago, depois de rir bastante,
lhe disse que nunca ouvira nada sobre o casal de fantasmas. - Fantasmas, Tiago?
Sou homem de acreditar em fantasmas? - Ora, André, temos que dar um nome
para eles. Se não são fantasmas são o que? - Espectros, fica melhor. - Tá,
espectros. Vamos pensar, então: Por que só você vê esses espectros? Por que os
vê somente na floresta, o que fazem lá? Seriam seres raivosos em busca de
vingança ou querem ir embora mas não podem? Seriam aqueles seres mitológicos,
guardiões de florestas? Seriam antepassados seus, querendo te indicar um
tesouro escondido na floresta? Ou te fazer algum pedido? Seriam seres de outros
tempos, outras dimensões? Seriam... - Chega, Tiago! Você não tá ajudando em
nada, só me deixando mais confuso! Preciso de ajuda profissional. Um
psiquiatra, um padre, um ufólogo, sei lá.
- E se você perguntasse pra mãe
Cida? Lembra dela? Aquela benzedeira que morava sozinha naquela casa cheia de
gatos? Aquela casa, no final da nossa rua, que a gente achava mal-assombrada?
Ela tá velhinha mas ainda vive. Dizem que bugou de vez, agora fala com os
mortos. - Benzedeira, Tiago? Que fala com os mortos, Tiago? - Ah, não se sabe.
Nunca ouviu o ditado? Há mais coisas entre o céu e a terra, esqueci o resto. -
Verdade, quem sou eu pra chamar alguém de doido, a essa altura? Doido com doido
se entende. Está decidido, vamos começar pela Mãe Cida. - E lá seguiram, o cético
(pero no mucho) André e o curioso amigo Tiago, em direção à casa
"mal-assombrada" do final da rua...
[Maria Mineira]
Os dois rapazes caminharam lado a
lado, mas não trocaram palavra. Era dia
alto quando chegaram à casa de mãe Cida, que na verdade morava bem depois do
final da rua, já era quase mato fechado o local de seu casebre. Bateram na
porta e ninguém apareceu. Só se via gatos de todas as cores, espalhados pelo
terreiro, no telhado e janelas.
Olharam em volta e de repente,
por trás de uma enorme mangueira, surgiu
uma velha corcunda, com cabelos brancos despenteados. Seu olhar era torto e os dentes falhados, foi logo dizendo:
– Que se assucedi aqui, dois
minino?
– Mãe Cida, não se lembra da
gente?
– Sou o Tiago, neto da dona
Josefa e ele é o André, da dona
Marita! Morávamos nessa mesma rua!
– Ahhh, se alembro! Era vaçuncêis
que vivia robano as manga e estumano aquele cachorrão nos meus gato! Mi diga
uma coisa, minino, o Paulo, seu avô inda é vivo?
– Infelizmente não, mãe Cida.
Faleceu há mais de 10 anos. – Disse André lembrando-se com saudades de seu avó.
– Antonce só resta vassuncê mais
ieu... resmungou a velha senhora para si mesma. Thiago não percebeu, mas André
pressentiu algo naquela frase misteriosa.
– Viero fazê o quê na casa de uma
véia? Se fô benzição pá mode curá cobrêro, pode intrá. Quebranto eu benzo só
criança de colo.
Era um pequeno cômodo com apenas
um fogão a lenha, uma mesa e uma cama. Em cima das cinzas se espreguiçava um
enorme gato preto de olhos amarelos que se fixaram estranhamente em André. Mãe
Cida mandou os jovens se sentarem e dirigiu-se ao pequeno oratório onde havia
três velas acesas.
André tentou por várias vezes, falar sobre o que
havia visto na noite anterior. A benzedeira sem prestar atenção em nenhuma de
suas palavras, continuou espalhando seu incenso e batendo com galhos de arruda
em seus ombros, enquanto murmurava em voz muito baixa, as suas rezas. Ao
terminar os conduziu até a porta, sem ao menos se despedir...
– Tá vendo, Thiago? Que brilhante
ideia, heim, meu velho? Mãe Cida deve já estar com um pé na cova de tão caduca.
Nem prestou atenção no que eu perguntava.
– Me desculpa, André, apenas
tentei ajudar.
Thiago não viu, porque estava na
frente um tanto sem graça, mas no meio do caminho, surgido não se sabe de onde,
o gato preto de olho amarelo, parou na frente de André, parecia dizer
algo...Naquela noite o rapaz não dormiu, voltaria sozinho no outro dia...
Foi o que fez. O dia ainda
clareava quando ele chegou em frente ao casebre. A mulher o aguardava ao pé da
árvore.
– Achei que não viria! – disse
aquela mulher que já não se disfarçava de anciã maltrapilha, ao segurar firme a
mão de André.
O rapaz deixou-se conduzir. O
local evocava uma aura de floresta noturna, atingida por leve brisa misturada a
uma bruma que pairava no ar deixando-o
etéreo como em um sonho. André não sentia seus pés tropeçando nas raízes da
densa mata. Apenas levitava naquela atmosfera onírica sem saber para onde
estava sendo levado. Quando cessou a viagem, estavam à frente de um pequeno
lago, onde a mulher fez na água, um
círculo com a mão direita e abriu uma passagem.
–
Meu jovem, considera-se pronto
para ser iniciado?
[Helena Souza]
André não se lembrava de como
havia atravessado aquele lugar. O estranho é que não havia molhado suas roupas
e um frio percorreu seu corpo até os ossos.
Começou a seguir a estranha
mulher que não era mais a figura curvada de mãe Cida. Não havia sol. Seu relógio marcava pouco mais
de 7 da manhã. As sombras encobriam a
floresta e ele viu na sua frente um
caminho que ondulava e sumia entre as
árvores centenárias.
Estava assustado, mas não tinha
como voltar atrás. O jeito era seguir cada vez mais rápido aquele vulto que
parecia voar e vez em quando o chamava
pelo nome, verificando se ele ainda a seguia.
Enquanto avançava mata adentro, pensava consigo mesmo: o que eu
estou fazendo aqui? Devo ter enlouquecido, ou será que Thiago colocou algo em
minha bebida?
Ao ouvir um estranho barulho,
André tentou chamar a mulher que o conduzia, porém não viu mais ninguém à sua
frente. Escondeu-se atrás de um grande
tronco de árvore e um suor gelado descia
pela sua testa. Nesse momento
avistou algo oculto pelo crepúsculo. Encolheu os ombros e
esperou pelo pior, pois logo
adiante, perto de uma curva do caminho
estavam ali! Ele não conseguia entender
ainda, mas o que ele viu mudou....
[Gerson de Carvalho Silva] - final
Uma densa neblina, bastante comum
na região, cobria tudo. André, ainda amedrontado ouviu um som de algo que se
aproximava. Levantou-se e andou alguns metros e, do alto, visualizou algo que o
deixou perplexo: nos trilhos abandonados passava um trem. Não um trem qualquer,
mas uma “Maria Fumaça”, que ao passar por ele, o maquinista acenou.
- Pai? Impossível. Além de já ter
morrido, não era esse tipo de trem que operava.
- Não é seu pai – disse a voz da
mulher que assumira ser mãe Cida – é seu trisavô. Eram muito parecidos. Vem
comigo.
O rapaz a seguiu com um autômato.
Com dificuldade conseguiu ver mais alguns dos espectros. A mulher lhe
esclareceu que eram pessoas que de alguma forma se ligaram à floresta.
- Tá vendo aqueles índios? São da
tribo dos Guaianases que foram os primeiros habitantes humanos. Haviam outros,
com roupas de diferentes épocas. O casal que você viu, ficou surpreso porque não era pra
você vir agora. Os escolhidos os veem na infância, como no seu caso, e depois
de certo tempo são incorporados.
- E você, perguntou à mulher, o que realmente é?
- Sou uma espécie de espírito da
floresta. Assumo várias formas. Anhangá é o nome que os índios me deram.
- Estou morto? Perguntou André.
- Não necessariamente, mas já faz
parte da floresta.
- E o Thiago, o que aconteceu com
ele?
- Nada. Mas também será incorporado.
Depois.
O Sol chegou e a neblina começou
a se dissipar. A Vila, agora turística começava despertar, sem saber que era
protegida pela Floresta ao seu redor e seus guardiões. Estes podem vagar em certas
noites frias com neblina pelas ruas e vielas. Alguns os veem, principalmente
crianças, bêbados, pessoas com percepção diferenciada e animais domésticos.
Autores: Helena Souza, Alice Gomes, Maria Mineira e Gerson de Carvalho Silva
Nenhum comentário:
Postar um comentário