segunda-feira, 16 de novembro de 2020

ESPECTROS

 




[Gerson de Carvalho Silva]

André nasceu e cresceu na Vila do Alto da Serra. O nome do local havia mudado fazia bastante tempo, mas alguns preferiam o original. A vila ferroviária de origem inglesa era constituída por casas de madeira, um “castelo” onde originalmente morava o engenheiro chefe e um relógio que imitava o Big Ben. O menino cresceu explorando a mata ao redor que se estendia até o mar, passando a conhecê-la muito bem, às vezes servindo de guia para gente de fora. Estudou na pequena escola do local, onde sua avó era professora. Esta lhe contava histórias do folclore indígena como a do Anhangá, demônio protetor das matas. Ouvia também lendas europeias, trazidas pelos ingleses, como o Cernunnos, o deus cervo. Além disso, segundo algumas lendas, os protetores das florestas poderiam assumir formas humanas e almas perambulavam pelas matas, tentando entender o que lhes tinha acontecido.

Certa manhã, André já adolescente, ouviu vozes vindas da mata e, aproximando-se teve uma visão pouco nítida, espectral, de um casal com roupas antigas vagando pela mata. De repente, desapareceram e ele com medo, correu e nunca falou sobre isso.

André fez faculdade e estudou no exterior. Morando em São Paulo, ficou sabendo da Festa do Cambuci, fruta nativa, sua preferida na infância. Voltando à vila, observou que a ferrovia não descia mais a serra para o litoral e seus equipamentos estavam abandonados. Seus pais e avós haviam falecido e ele passou boa parte da noite tomando cachaça com cambuci. Sentiu-se mal e foi para próximo de sua floresta querida, para tentar se recuperar. Novamente ouviu vozes vindas da floresta e o mesmo casal apareceu, encarando-o com certo olhar de surpresa.

[Alice Gomes]

André soltou um berro que se podia ouvir a um quilômetro! Ao sentir que duas mãos lhe sacudiam, retorceu o corpo e encolheu as pernas, na tentativa desesperada de se levantar e sair correndo. Sem coragem de abrir os olhos custou a reconhecer a voz de Tiago, o amigo de infância com quem bebera na noite passada.

- André! André! Acorda! O que você tá fazendo deitado aqui no meio do mato? Acorda!

Primeiro um olho, depois o outro, os dois... e o alívio!  Estava vivo! - Ou o amigo também tinha morrido - ainda pensou por um instante.

Enquanto Thiago se esborrachava de rir da sua cara de pavor, André se acalmava. Aceitou a mão estendida e tentou ficar em pé, mas as pernas fraquejaram.  Permaneceu sentado no chão por alguns minutos, tocando-se, até se certificar que ainda estava inteiro.  Tiago arrependeu-se de tripudiar do sofrimento de André ao ver seu estado e, em tom mais sério, lhe afagou as costas, para o tranquilizar.

-Não sabia que você era tão fraco pra bebida. Acabou dormindo aqui, foi?

- F...Foi... respondeu André, envergonhado ao perceber o dia claro e vários outros amigos à sua volta. Levantou-se rapidamente. Precisava urgentemente estar só, para colocar ordem nos pensamentos.

Já no hotel e com a cabeça sob a ducha fria, tentou se lembrar de todos os detalhes da noite interior. - Não foi sonho. Não foi bebedeira. Eu os vi e não foi a primeira vez. E, dessa vez, ELES me viram! - repetia para si mesmo e a cada vez que repetia um novo calafrio.- Porque,  uma coisa é você ver uma coisa, outra coisa é a coisa te ver! Agora não adianta mais simplesmente não ir mais à floresta. Quem garante que eles não venham até mim, onde eu estiver? Uma coisa é certa: uma hora terei de enfrentar, com medo ou sem medo - Encorajou-se. Tomaria uma atitude. Mas, por onde começar? Teria de falar com alguém sobre o ocorrido, mas e o medo de o ridicularizarem? - Dane-se! Vou começar pelo Tiago.

Tiago, depois de rir bastante, lhe disse que nunca ouvira nada sobre o casal de fantasmas. - Fantasmas, Tiago? Sou homem de acreditar em fantasmas? - Ora, André, temos que dar um nome para eles. Se não são fantasmas são o que? - Espectros, fica melhor. - Tá, espectros. Vamos pensar, então: Por que só você vê esses espectros? Por que os vê somente na floresta, o que fazem lá? Seriam seres raivosos em busca de vingança ou querem ir embora mas não podem? Seriam aqueles seres mitológicos, guardiões de florestas? Seriam antepassados seus, querendo te indicar um tesouro escondido na floresta? Ou te fazer algum pedido? Seriam seres de outros tempos, outras dimensões? Seriam... - Chega, Tiago! Você não tá ajudando em nada, só me deixando mais confuso! Preciso de ajuda profissional. Um psiquiatra, um padre, um ufólogo,  sei lá.

- E se você perguntasse pra mãe Cida? Lembra dela? Aquela benzedeira que morava sozinha naquela casa cheia de gatos? Aquela casa, no final da nossa rua, que a gente achava mal-assombrada? Ela tá velhinha mas ainda vive. Dizem que bugou de vez, agora fala com os mortos. - Benzedeira, Tiago? Que fala com os mortos, Tiago? - Ah, não se sabe. Nunca ouviu o ditado? Há mais coisas entre o céu e a terra, esqueci o resto. - Verdade, quem sou eu pra chamar alguém de doido, a essa altura? Doido com doido se entende. Está decidido, vamos começar pela Mãe Cida. - E lá seguiram, o cético (pero no mucho) André e o curioso amigo Tiago, em direção à casa "mal-assombrada" do final da rua...

[Maria Mineira]

Os dois rapazes caminharam lado a lado, mas não trocaram palavra.  Era dia alto quando chegaram à casa de mãe Cida, que na verdade morava bem depois do final da rua, já era quase mato fechado o local de seu casebre. Bateram na porta e ninguém apareceu. Só se via gatos de todas as cores, espalhados pelo terreiro, no telhado e janelas.

Olharam em volta e de repente, por trás de uma enorme mangueira, surgiu  uma velha corcunda, com cabelos brancos despenteados. Seu olhar era  torto e os dentes falhados, foi logo dizendo:

– Que se assucedi aqui, dois minino?

– Mãe Cida, não se lembra da gente? 

– Sou o Tiago, neto da dona Josefa  e ele é o André,  da dona  Marita! Morávamos nessa mesma rua!

– Ahhh, se alembro! Era vaçuncêis que vivia robano as manga e estumano aquele cachorrão nos meus gato! Mi diga uma coisa, minino, o Paulo, seu avô inda é vivo? 

– Infelizmente não, mãe Cida. Faleceu há mais de 10 anos. – Disse André lembrando-se com saudades de seu avó.

– Antonce só resta vassuncê mais ieu... resmungou a velha senhora para si mesma. Thiago não percebeu, mas André pressentiu algo naquela frase misteriosa.

– Viero fazê o quê na casa de uma véia? Se fô benzição pá mode curá cobrêro, pode intrá. Quebranto eu benzo só criança de colo.

Era um pequeno cômodo com apenas um fogão a lenha, uma mesa e uma cama. Em cima das cinzas se espreguiçava um enorme gato preto de olhos amarelos que se fixaram estranhamente em André. Mãe Cida mandou os jovens se sentarem e dirigiu-se ao pequeno oratório onde havia três velas acesas.

André  tentou por várias vezes, falar sobre o que havia visto na noite anterior. A benzedeira sem prestar atenção em nenhuma de suas palavras, continuou espalhando seu incenso e batendo com galhos de arruda em seus ombros, enquanto murmurava em voz muito baixa, as suas rezas. Ao terminar os conduziu até a porta, sem ao menos se despedir...

– Tá vendo, Thiago? Que brilhante ideia, heim, meu velho? Mãe Cida deve já estar com um pé na cova de tão caduca. Nem prestou atenção no que eu perguntava.

– Me desculpa, André, apenas tentei ajudar.

Thiago não viu, porque estava na frente um tanto sem graça, mas no meio do caminho, surgido não se sabe de onde, o gato preto de olho amarelo, parou na frente de André, parecia dizer algo...Naquela noite o rapaz não dormiu, voltaria sozinho no outro dia...

Foi o que fez. O dia ainda clareava quando ele chegou em frente ao casebre. A mulher o aguardava ao pé da árvore.

– Achei que não viria! – disse aquela mulher que já não se disfarçava de anciã maltrapilha, ao segurar firme a mão de André.

O rapaz deixou-se conduzir. O local evocava uma aura de floresta noturna, atingida por leve brisa misturada a uma  bruma que pairava no ar deixando-o etéreo como em um sonho. André não sentia seus pés tropeçando nas raízes da densa mata. Apenas levitava naquela atmosfera onírica sem saber para onde estava sendo levado. Quando cessou a viagem, estavam à frente de um pequeno lago, onde a mulher fez  na água, um círculo com a mão direita e abriu uma passagem.

–  Meu jovem, considera-se  pronto para ser iniciado?

[Helena Souza]

André não se lembrava de como havia atravessado aquele lugar. O estranho é que não havia molhado suas roupas e um frio percorreu seu corpo até os ossos.

Começou a seguir a estranha mulher que não era mais a figura curvada de mãe Cida.  Não havia sol. Seu relógio marcava pouco mais de 7 da manhã. As sombras encobriam  a floresta e ele viu na sua frente um  caminho que ondulava e sumia entre as  árvores centenárias.

Estava assustado, mas não tinha como voltar atrás. O jeito era seguir cada vez mais rápido aquele vulto que parecia voar e  vez em quando o chamava pelo nome, verificando se ele ainda a seguia.

Enquanto avançava  mata adentro, pensava consigo mesmo: o que eu estou fazendo aqui? Devo ter enlouquecido, ou será que Thiago colocou algo em minha bebida?

Ao ouvir um estranho barulho, André tentou chamar a mulher que o conduzia, porém não viu mais ninguém à sua frente. Escondeu-se  atrás de um grande tronco de árvore  e um suor gelado descia pela sua testa.  Nesse momento avistou  algo  oculto pelo crepúsculo. Encolheu os ombros e esperou pelo pior,  pois logo adiante,  perto de uma curva do caminho estavam ali!  Ele não conseguia entender ainda, mas o que ele viu mudou....

[Gerson de Carvalho Silva] - final

Uma densa neblina, bastante comum na região, cobria tudo. André, ainda amedrontado ouviu um som de algo que se aproximava. Levantou-se e andou alguns metros e, do alto, visualizou algo que o deixou perplexo: nos trilhos abandonados passava um trem. Não um trem qualquer, mas uma “Maria Fumaça”, que ao passar por ele, o maquinista acenou.

- Pai? Impossível. Além de já ter morrido, não era esse tipo de trem que operava.

- Não é seu pai – disse a voz da mulher que assumira ser mãe Cida – é seu trisavô. Eram muito parecidos. Vem comigo.

O rapaz a seguiu com um autômato. Com dificuldade conseguiu ver mais alguns dos espectros. A mulher lhe esclareceu que eram pessoas que de alguma forma se ligaram à floresta.

- Tá vendo aqueles índios? São da tribo dos Guaianases que foram os primeiros habitantes humanos. Haviam outros, com roupas de diferentes épocas. O casal que  você viu, ficou surpreso porque não era pra você vir agora. Os escolhidos os veem na infância, como no seu caso, e depois de certo tempo são incorporados.

- E você, perguntou à mulher,  o que realmente é?

- Sou uma espécie de espírito da floresta. Assumo várias formas. Anhangá é o nome que os índios me deram.

- Estou morto? Perguntou André.

- Não necessariamente, mas já faz parte da floresta.

- E o Thiago, o que aconteceu com ele?

- Nada. Mas também será incorporado. Depois.

O Sol chegou e a neblina começou a se dissipar. A Vila, agora turística começava despertar, sem saber que era protegida pela Floresta ao seu redor e seus guardiões. Estes podem vagar em certas noites frias com neblina pelas ruas e vielas. Alguns os veem, principalmente crianças, bêbados, pessoas com percepção diferenciada e animais domésticos.


Autores: Helena Souza, Alice Gomes, Maria Mineira e Gerson de Carvalho Silva


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