quarta-feira, 11 de novembro de 2020

O VISCONDE ENCANTADO

 



Carlos A. Lopes

Nos últimos dias não se respirou outro assunto na cidade. O jornal fazia e refazia alardes, enaltecia e repetia o dia e a hora do evento. Até que o dia chegou e parte da população se alvoroçou para conhecer em carne e osso o tão esbravejado visitante. 

Ninguém reclamava, pois valia a pena todos os esforços. A grande maioria queria conhecer  alguém de sangue azul, para tanto, valia deixar os afazeres de lado.

Estavam presentes no palanque, o governador, secretários e outras autoridades constituídas e  onde se destacava uma bela jovem de cabelos escuros, corpo enxuto e um quadril de fazer inveja. Era Dora. Filha única do secretário de governo e ex-prefeito da cidade. 

No mais, tudo parecia ser uma festa fora de época. Tinha a figura do galanteador, jogadores, dezenas de máquinas de tirar retrato, e pintores registrando o movimento que mais parecia uma feira de interior.

Os dias se sucediam dando lugar a resignação. A cada novo dia boatos inspiravam novas interpretações. E por aí tudo transcorria: um grito aqui, outro ali, uma coruja que piava, tudo desviava a atenção, mas cada vez despertando menos curiosidade e diminuindo a certeza de um desfecho alegre para aquela história. 

Dora, desfalecida do corpo, admitia estar de pernas moídas de tão cansada, também desiludida. Sentia arrepios, não de frio, mas por causa de uma solidão, que deixava o seu coração inquieto e perturbado. 

Fora aconselhada a não voltar ao Jiquiá, pelos perigos que agora o lugar quase deserto podia lhe causar. Ela se sentia culpada pelo que viesse de ruim a acontecer. Dora tinha em mãos cartas e mais cartas que tratavam dos perigos da ousadia de um aviador lunático. Na grande maioria delas, ela lhe enviara respostas de reprovação. Porém agora se lamentava e entendia que lhe faltava mais firmeza nas suas respostas.

Tratava-se do Visconde de Saint-Roman, um homem de virtudes e negócios recompensados, entretanto, sobre seus ombros pesavam alguns atritos diplomáticos, mas nada que abalasse a reputação familiar. A sua autoridade irresistível às vezes imaginativa e exuberante, não disfarçava suas variadas fantasias. Vez ou outra não se opunha a uma verdadeira quimera, sendo o mais lunático dos nobres.

Em todo caso, ele decolou de Saint-Louis no dia 15 de junho de 1936, às seis da manhã, em um voo descrito pelos jornais como um salto sobre o Atlântico, com data e hora de chegada. Dias depois restos do seu avião foram encontrados no extremo noroeste da região Nordeste, bem distante da rota planejada. Contam os ribeirinhos tê-lo visto se arrastando pelas proximidades dos  destroços do avião envoltos em chamas. Também contavam do movimento vítreo dos olhos que assustava pela inquietude e vontade de não se entregar ao destino.

Conceição Padilha

Era muito grande a decepção sentida por todos, com a não chegada do esperado e ilustre aviador. Foram tantos preparativos para o evento, desde  o figurino dos convidados até o feriado municipal.

Porém toda o sensacionalismo que acompanhou a  espera foi substituído pela dúvida e muitos questionamentos pairando no ar. Onde andaria o nobre Visconde?  Estaria ele se permitindo ter o comportamento de um aviador maluco  e saltado do avião nos ares? Ou teria ele escapulido de tudo, tendo para isso usado de toda a sua esperteza?

O comentário era geral, não se falava em outra coisa por toda cidade: que fim terá tido o lunático aviador? O jovem Visconde?

O coração de  Dora sofre ao lembrar da forma como conheceu o jovem Roman, quando, escondida dos pais, foi a Inauguração do pequeno campo de pouso. Quando não resistiu o olhar maneiro do gentil piloto e nem tampouco  recusou o convite para um rápido encontro nos emaranhados de arbustos de um parque próximo. Depois foram cartas e mais cartas, onde ele  descrevia suas aventuras e peripécias em suas acrobacias aéreas.

Dora chora a incerteza sobre o paradeiro do seu amor. Mas consola-se levando a mão ao ventre, lembrando que não está mais só.

Socorro Beltrão

Passados três meses, Dora não tem mais como esconder dos pais a gravidez. Estava cada vez mais preocupada com a reação deles, o pai não era problema, até a ajudaria, mas a mãe ia causar uma grande tempestade. E, também estava preocupada com o paradeiro de Roman, o seu Visconde. Conseguiu esconder os enjoos matinais. A princípio perdeu peso, mas agora, engordava a olhos vistos. Já tinha lido quase todos os livros da Biblioteca do avô, leitor inveterado, deixara um belo acervo. Herdara do avô o gosto pela leitura. Já era do seu costume passar horas ali, lendo. Onde podia ficar quietinha, "lendo", sem ter que responder aos questionamentos da mãe. Queria ficar sozinha para pensar e sonhar com o seu amado.  Ele voltaria. Foi só um acidente. O amor que os unia era mais forte e o manteria vivo... Agora, naquele recanto, o coração oprimido, fazia suas próprias conjecturas. Roman tinha sido atraído por ela. E foi recíproco.  Não podia ser falso o sentimento que os uniu. Ele não a enganou, não fez juras de amor ou lhe prometeu um futuro de princesa. Não a seduziu. Eles viveram um momento de união de corpos e almas. Foi mágico e Dora faria tudo novamente. Não estava arrependida. Mas precisava encontrar uma maneira de contar aos pais que seriam avós. Era urgente. Tinha que se decidir. Saiu para dar uma volta, estava numa loja, já próximo ao casarão onde morava, quando sofreu um desmaio. Seu pai foi chamado às pressas. Preocupado chegou ao local, para encontrar sua filhinha, sentada numa cadeira, branca como cera, chorando copiosamente. Carinhoso, a abraçou, convidando-a para voltarem para casa, antes que chegasse aos ouvidos de sua mãe, o ocorrido. Mas, Dora pediu para antes irem a cafeteria. Alegando estar em jejum. O que foi uma boa ideia, pois explicaria aos presentes o motivo do desmaio. 

Assim que chegaram ao local, o pai providenciou café e guloseimas e Dora confessou o que estava se passando. Deixando claro ao pai, não ter sido seduzida. Que foi recíproco e que Roman seria o amor de sua vida. Afirmou com muita certeza que ele estava vivo. Seu pai homem compreensivo que era, a ouviu e...

Cristhian Dias

Seu pai homem compreensivo que era, a ouviu e com muita alegria abraçou a filha e assegurou de que não deserdaria a moça, mesmo que fosse o pior de todos os pecados, ele nunca deixaria sua menina à mercê da pobreza, muito menos, a criança que Dora esperava. O pai prevendo a reação da esposa, recomendou a filha que preparasse um banquete naquela noite, para a sra. Helena,  sua mãe, e que depois de tantos agrados, ouvisse dos próprios lábios da filha, o segredo que ela já não conseguia mais esconder.

Era visível a preocupação de Dora em sua face, já em seu coração, o Criador ouvia sua prece silenciosa: “Ó Bom Deus, perdoai as minhas falhas, mas concede-me por tua graça, lábios persuasivos para com minha mãe”. Depois de um abraço, pai e filha voltaram para a Mansão, mas, infelizmente, uma das criadas, por sinal, a mais perversa, ouviu cada uma das palavras e tendo nutrido inveja, desde mocinha, pela beleza e pelo luxo que a srta. Dora possuía, foi então, procurar Dona Helena para lhe contar sobre os últimos acontecimentos.

A sra. Helena demorou-se muito para atender sua criada, pois conversava com senhoras da alta sociedade que se gabavam pelos bens que possuíam ou pelos filhos que estavam a estudar no exterior. Ao terminar a  conversa da senhora, a criada de nome Emília, se dirigiu, logo ao aposento e pôs-se  a falar, até mesmo, sem se lembrar das reverencias às quais estava acostumada a prestar para com os patrões. Quando a garota encerrou, a sra. Helena soltou um forte e estridente grito de fúria, que fez com que uma das pobres empregadas que estava a finalizar o banquete, quebrasse um dos preciosos pratos italianos, que Jorge e Helena haviam ganhado de presente de casamento.

Carlos A. Lopes

E como raiva de mãe é tão passageiro como visita de beija flor, entre prantos de mãe e filha, veio a calmaria familiar. Mas Dona Helena quis saber tim-tim por tim-tim de toda a história. Desfazendo o maço de cartas, cronologicamente, Dora ia deixando a mãe ciente dos seus segredos amorosos.

Tudo começou na euforia do carnaval de Nice. Na ocasião, Dora se impressionou com os atributos físico de Roman e em poucos dias já frequentava o belo apartamento que ele mantinha em plena Rua Boulevard de Courcelles, próximo ao Arco do Triunfo. 

Dora não adivinhava até onde aquele sonho podia durar. E nessa euforia de fins de tarde, quando deu por si, já estava envolvida demais para repensar os passos. E na solidão do seu quarto de hotel o remorso a fez encurtar sua estada em Paris.

Roman só se conformou com a ausência da amada, na garantia que por meio diplomático poderia reencontrar Dora no Brasil. Não tardou a vir ao Recife. Numa visita do casal ao Jequiá, quando conhecia a torre de atracação de Zepelins, juntos puderem  reviver  momentos de paixão e foi justamente nessa ocasião que Dora engravidou.

Depois da partida do Visconde, Dora parecia uma boneca sem corda. Após o escândalo do tal banquete, Dona Helena só se alterou com a leitura da última carta lida, sob a condição de morte imposta a Dora caso ela não retornasse à França na companhia de Roman. Dizia que estando ele vivo ou morto, trataria de arrancar-lhe o filho, mesmo que fosse igual a um lobo selvagem. Afinal, este filho faz parte da  sua premonição, seria o responsável pela redenção social da nobreza familiar. 

A leitura da carta foi interrompida pela zoada da explosão de um motor em frangalhos, sobre o telhado da casa. Momentos de silêncio quebrados apenas pelo tilintar da campainha no portão da rua. Tocou uma vez, duas vezes e parou. Dora se dirigiu até a janela do seu quarto e não avistou ninguém, apenas sentiu uma rajada de vento vindo diretamente ao seu encontro. De repente escuta-se o ranger do portão a abrir-se lentamente. Algo se apossou do ar. Uma invasão de misteriosa fumaça escura. Por mais que tentasse não entendia se tratar de algo natural. O cheiro de enxofre e aquele som esquisito de alguém arrastando correntes, deixou a todos em pânico. O inusitado se aproximava cada vez mais, até que finalmente Roman se apresentou na porta do quarto, favorecido pelo luz vinda da janela. Parecia igual a história contada pelos ribeirinhos no momento do acidente com o avião: seu rosto tinha a cor de chumbo, o brilho dos olhos apagara-se e de tão queimado, o branco dos seus ossos era percebido na pele. Restava-lhe um sopro de vida, uma tentativa de encontrar em alguma brisa mágica, o acalanto final, que o devolveria às condições de almejar o seu último propósito.

E se alguém quer saber o que houve com o  casarão depois dos fatos acontecidos, diria que quase nada. A enorme moradia vive às ruínas. Depois daquele 1936 poucos ousaram viver ali, mesmo assim por pouco tempo. Há quem conte de portas que se abrem sozinhas, de sangue escorrendo em  retratos e imagens de gesso. Além de tantas aberrações, ainda vez por outra, ouve-se aquela maldita zoada de um avião em destroços sobre o telhado. E por fim, sobre o destino do filho de Dora, extraído do seu corpo enquanto a mãe agonizava, possivelmente é um francês bem sucedido, cuja missão nesta vida seria alavancar a dignidade de uma nobreza em ruínas.


Autores: Maria Conceição Padilha, Socorro Beltrão, Carlos A. Lopes e Cristhian Dias

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