quarta-feira, 11 de junho de 2014

Texto: 43 (do concurso) - A vidência de Jericó

Jericó, o burrinho que sabia os dias da semana( Esta estória eu a escutei da boca do meu avô, que a ouviu da boca do avô dele – de nome Romualdo – com quem acontecera o caso de um burrinho muito inteligente que sabia os dias da semana de cor e que virou uma lenda no Centro-Oeste de Minas Gerais)
Jericó ...  Eta burrinho inteligente .... Veja vocês que ele sabe os dias da semana de cor...
Quando eu falei assim, o Matias Beba, um vaqueiro ruivo e de sardas na cara, riu assoberbado. Donde já se viu burro inteligente, compadre Romualdo? E o Posico, crioulo alto, cabelinho de picumã, acabando de enrolar seu palheiro, emendou: Uai, burro é burro, tem jeito de ser inteligente não, Rumuardo! O próprio nome já conta!
A gente era em cinco pessoas, os outros dois, o Tõe Ludovico e o Zé Sinhana ficaram calados, mas sacudiram a cabeça em sinal de concordância, como a dizer: Tá dereito! Tá dereito!”
O risinho irônico daqueles dois caboclos parecia estar debochando da minha fala sobre o Jericó e apoiando as tiradas do Matias e do Posico.
Comigo não, Sebastião. Como existe Deus no céu, vou provar provadinho que o que tô falando num é mutreta não. É verdade verdadeira.
Nós tinha acabado de tirar o leite das vacas do coronel Venício  Ramalho, no retiro dos Munjolos. Enchemos três latões de 50 litros. Um era levado para dentro, usado nas despesas da casa grande, pra fazer queijo, requeijão, doce, biscoito, bolo, broas ... Aquelas gostosuras que a dona Afonsina fazia como ninguém numa fartuura que o povo da família comia, os empregados e as visitas também e ainda sobrava.
Mas voltando às latas de leite, as outras duas que não entraram nesses pormenores, essas eram levadas todo santo dia para a cooperativa da cidade. Ah! ia esquecendo, de menos no domingo.
Com o tempo, tinha-me esquecido do pouco caso dos meus companheiros sobre minha conversa a respeito do burrinho Jericó.
Mais num é que fiquei sabendo que os merda andaram esparramando o causo e muita gente tava mangando de mim de eu dizê que o Jericó era inteligente e sabia os dias da semana de cor!!! Isso é pataquada do Romuardo –tão falando por aí.
Então, de noite, lá em casa, debaixo das coberta, consurtei os conseio da Barbina, minha muié. E ela achou que eu tinha mais  é que reagi. E conseio da Barbina pra mim é ordem.
Decidi, portanto, que eu ia prová pressa gente que Romuardo Rufino Garbaza, filho de Raimundo Rufino e Rita Garbaza lá do Puladô, é caboclo sério. Num é home de pataquada.
Aí falei pra Barbina: Eu vou é partir pro debate com esses mequetrefes.
No domingo de tarde, cheguei mais cedo na venda do Pedro Miséria, no arraial do Mato Seco. A turma tava toda lá. Bebendo cachaça, garrada no truco, jogando conversa fora. Fui entrando, meio espaventado, dei bons dias como é de praxe pela boa inducação. Logo fui falando antes que arguém me argüisse: 
Sem contá esse, daqui a dois domingo, cês tejam todos aqui. Vou provar com testemunhas idôneas o que falei e tenho dito sobre o Burrinho Jericó.
Houve um silêncio domo o de velório de defunto importante. Cheguei no barcão e pedi uma cachaça. Bebi de um trago. Paguei o Pedro Miséria. Dei boas tardes pra todo mundo. Cisquei da venda, sem proseá mais nada com ninguém. Montei meu cavalo rusio e vortei pra fazenda.
No dia marcado, eu tava de vorta lá na vendinha. Um povão me esperava num burburinho de desconfiança. Chegaram comigo o Posico, o Matias, o Ludovico e o Zé Sinhana. Além deles, o Néia, filho do meu patrão. Cheguemo. Abrimo caminho até o balcão.
Cada um, na sua vez, foi falando: O Romualdo tem razão. O Jericó é um burro inteligente. Ele sabe mesmo os dias da semana de cor. Na vez do Néia, ele falou que tinha visto, por duas semanas, com seus óios que a terra hão de comer, o seguinte sucedido:
De segunda a sábado, às seis horas da manhã, o Romualdo pegava o cabresto e ia, lá no fundo do pastinho, buscar o Jericó. Ele chegava no curral. Comia o que tinha no cocho. Era cana, mio ou fubá a fim de lhe dar sustança pra viagem. O Romuardo esperava ele acabá. Botava freio, baixeiro e sela. Punha o peitoral. Apertava a barrigueira. Punha as latas no lombo dele e os dois iam trotando pra cidade.
Aí o Néia, ante uma platéia atenta, encerrou:
Mas no domingo, gente, acreditem se quiser...só no dia de  domingo, que é o dia de forga do Jericó, num carece de buscá. Ele vem sozinho. Amanhece na porteira do curral para comer sua ração no cocho. Conclusão: ele então sabe contá divera os dias da semana de segunda a domingo direitinho.
E arrematou: É só o que eu tinha pra contá. E hoje ninguém se preocupe, não A bebida é à vontade e por minha conta em homenagem ao Jericó, o burrinho mais inteligente do mundo,  e ao Romualdo, homem de palavra. Pra esse eu boto a mão no fogo. Tudo que ele falar, todo mundo deve acreditar.

Texto: 37 (do concurso) - Travessuras de Pedro e do gato Sherlok

(Conto bom-despachense de finados, baseado em fatos reais) 

Sou um cidadão bom-despachense, já passado dos 60 anos, nascido lá pras bandas do Engenho do Ribeiro e há muitos anos fora de minha terra natal. Na adolescência, fui estudar num seminário de padres de uma cidade na Zona da Mata Mineira         
Veja você, prezada leitora, que na cidade onde eu estudava para ser padre, nos meados do ano, aconteceu de falecer uma das mais ricas, religiosas e queridas personagens locais.
Filantropo por natureza, ele era sempre o primeiro a encabeçar as doações para as obras da paróquia. Quando veio a falecer aos 89 anos, na boca de uma noite de quinta-feira, a cidade inteira parou pra homenagear seu grande benfeitor.
Naquela época, Frei João, já idoso e com dificuldades para subir à torre da igreja vinha preparando-me para ser seu substituto como sineiro da matriz. Um ofício e uma arte muito importantes naqueles tempos, porque os sinos das igrejas e das capelas do Brasil, até meados do século XX, eram o grande meio de comunicação temporal e espiritual para as populações dos povoados e de pequenas e grandes cidades. Eles repicavam festivos no natal e nas aleluias ou para receberem excelências, eminências e personalidades que visitavam o lugar. Ressoavam e ribombavam compassados, soturnos, ao anunciarem a morte de pessoas. De qualquer pessoa que se finasse, fosse ela criança, adulto ou idoso, pobre ou rica.
Naquele dia, falecera conforme já lhes contei, um homem de elevada envergadura moral da cidade. A igreja quis retribuir com zelo a fidelidade de seu fiel servidor. Frei João ensinou-me e disse-me que eu devia entender uma coisa: É que o sino a gente não bate nem toca. Não!  Sino, a gente o faz cantar nos dias festivos e o faz chorar nos acontecimentos tristonhos.
Ordenou-me ele que eu subisse à torre e até o sol se esconder, por ordem do vigário padre José, eu deveria fazê-lo soar. Soar por vezes repetidas, no toque grave e rouco para defunto: dão ...dão...dão. E no dia seguinte, eu ficaria de plantão na torre e  executaria o mesmo serviço desde o momento em que o féretro saísse de sua residência até a matriz.
Posteriormente à missa de corpo presente, que eu continuasse minha tarefa, de modo que o badalar tristonho prosseguisse até o momento em que o corpo descesse à sepultura. Fato que eu poderia acompanhar passo a passo, uma vez que o cemitério era próximo da igreja e, lá do alto da torre, ser-me-ia dado assistir a este último momento do falecido ilustre.
Ora orgulhoso, ora um tanto entediado, fui me desincumbindo da missão, modéstia à parte executada com competência. Todavia já nos finalmentes, um ato totalmente impensado e lamentável aconteceu. Os meus prezados leitores e as caríssimas leitoras sabem como é a cabeça de um adolescente. Seus neurônios são como os relâmpagos ligeiros e irresponsáveis que riscam os céus: pensam pouco e agem sem raciocinar. Ali estava eu entediado e entorpecido, física e mentalmente, por aquele som monótono de compassadas e repetitivas badaladas Mas não estava só. Deitado preguiçosamente, aos meus pés, encontrava-se o Sherlock.
Sherlock era o gato de estimação da meninada do colégio. Lá aparecera e fora adotado por nós. Sherlock estava sempre comigo, comigo estava naquele fúnebre dia. Eu badalando o sino... dão... dão ...dão e ele dormindo este sono frouxo e relaxado que só os bichos gatos sabem dormir.
Num dado momento, meu cérebro oco e irresponsável parou de vez de pensar. Lenta e maquinalmente, sem raciocinar nas conseqüências de meu ato, peguei a corda de um dos sinos e com ela amarrei o felino pelo meio. Na barriga. Entre as quatro patas. Sonolento, ele, de início, não reagiu. Aceitou tudo passivamente, mesmo tendo eu apertado muito a laçada. Porém, de repente, o bichano se deu conta do que eu lhe havia feito. Soltou um miado agudo e nervoso, unhou-me fortemente o braço. Endoidou-se. Escapuliu-se de minhas mãos e iniciou uma ciranda louca no espaço, sob o sino. E este sino começou a repicar doida e festivamente pelos pulos loucos do Sherlock, atado a suas cordas. Com a mão direita, tentava detê-lo... em vão ...  com a esquerda prosseguia batendo o toque de defunto no segundo sino. Foi neste dia que, em parceria com meu amigo bichano, produzimos a mais inusitada das sinfonias fúnebres jamais vistas e ouvidas em qualquer tempo ou lugar do planeta.
O sino dele, com seus movimentos bruscos e circulares, emitia sons travessos em alegres repiques que não condiziam de modo algum com o momento de tristeza que vivia a cidade. No segundo sino, no fundo destes sons alegres, eu marcava o compasso com as notas musicais pesadas emitidas pelo toque de defunto.
O cemitério ficava perto. Com um olho no gato que esperneava preso às cordas e o outro na necrópole, percebi que estávamos no momento exato da descida do corpo à sepultura. Então vislumbrei que a cerimônia fora interrompida. O zum-zum-zum do povo chegava aos meus ouvidos, abafados pelo barulho do bronze a badalar.
Só dei conta de mim, quando consegui enfim deter a fúria musical do ensandecido Sherlock. Logrei, então, soltá-lo de suas amarras e ele sumiu-se, escadas abaixo, na maior e mais desesperadas das velocidades que um felino pode alcançar.
 Neste instante, percebi que a torre se enchera de gente: o padre superior do seminário, um dos homens mais bravos que conheci. O frei disciplinador, colegas curiosos, uma pá de gente. O padre superior e o frei disciplinador, fora de si, gritavam:
 –Um absurdo! Um desrespeito inominável!Uma ofensa à memória daquela santa e venerável criatura! Ah! Meu Deus , meu Deus! Como a paróquia vai se explicar ao povo por tamanho vexame!!!
Senti o mundo despencar sobre minha cabeça. Se eu pudesse... se ela não estivesse tão longe, lá em Bom Despacho, eu clamaria por minha mãe e pularia no colo dela, à busca de proteção para meus apertos.
Ato contínuo, pegaram-me pelas orelhas, arrastando-me à sala do conselho, onde me deixaram de castigo à espera de futuras e duras penas a que, sem dúvida, eu seria submetido... Talvez até a temida e indesejada expulsão ...Passaram-se horas que me pareceram séculos. Eu pensava: ─Ah! Meu pai, o que será de mim!
Finalmente, já no ocaso do entardecer, a porta da sala se abriu. Quem entrou, acompanhando Frei João, foi o Padre José, o vigário... Ele era mais calmo, mais compassivo que o padre superior. Senti-me parcialmente aliviado. .
O padre José me passou severas repreensões, mas num tom manso e até misericordioso para com meu erro homérico. Ponderou-me o bom sacerdote que, pela gravidade daquilo que  acontecera, eu me tornara uma “persona non grata” ao seminário e à cidade. (Nesse momento, percebi que os olhos de Frei João lacrimejaram). Afinal eu, com a colaboração do Sherlock, fora o responsável pelos repiques festivos e ofensivos que, completamente inoportunos, soaram como uma comemoração à morte do sepultado defunto.
A igreja precisava dar uma satisfação à população e à ilustre família do finado e ao povo em geral que o respeitavam tanto. Assim seria de bom alvitre e aconselhável que eu fizesse minhas malas, pois, no dia seguinte, bem de manhã, seria transferido para o seminário da capital.
Quanto ao gato Sherlock, este seria definitivamente banido e proibido de freqüentar o seminário e de gozar da convivência dos alunos.
Na saída, o bom Padre José voltou-se e ainda brincou comigo: ─Agora, meu rapaz, como sineiro, você e o gato Sherlock considerem para sempre encerradas suas carreiras. Nesse assunto, vocês são dois desastres ambulantes.
Na manhã seguinte, estava na estação. Quando olho, quem estava ao meu lado? Ninguém mais que o gato Sherlock, meu companheiro de agruras e travessuras. Ele já ia entrando no trem, certamente para partir comigo e comigo se juntar em meu exílio. Fiquei até feliz com seu companheirismo. Mas aí aconteceu algo que me fez perder para sempre meu bravo amigo e colega sineiro. Nunca mais tornei a vê-lo. Neste momento, o sino da estação, secundado pelo sino da maria-fumaça, bateu anunciando a partida do trem. O pobre Sherlock, ainda traumatizado com as fatídicas badaladas do dia anterior, soltou um miado de agonia e pavor. Eriçou os pelos da cauda até os bigodes, e riscou no mundo, bem longe daquele som de sino, que na tarde anterior, nas torres da matriz de Manhumirim, marcaram nossas vidas e nos separaram para sempre.  

terça-feira, 10 de junho de 2014

Vaso quebrado

Autor: Carlos Costa

Creio no riso e nas lágrimas como antídotos contra o ódio e o terror. (Charles Chaplin)


À Luiz Eron Castro Ribeiro, advogado, e os médicos Élio Ferreira da Silva e Dante Luis Garcia Rivera, com os quais  sempre posso contar. Minha gratidão por serem meus amigos!


Meu vaso de rosas quebrou, mas com paciência, resignação e muita fé, recolho o resto dos cacos quebrados, do chão gélido de um centro de cirurgia, cheios de bactérias com as quais fui presenteado e vou reconstruindo com paciência, resignação e sabedoria a nova vida que me restou para viver, recuperando o que fora um dia um vaso e, novamente, depositar dentro dos restos que conseguir reconstruir para recolocar o perfume das rosas que cultivei no coração e entregá-lo a quem quiser recebê-lo, agora com cheiro ruim...! Meu vaso não era perfeito, mas ninguém é perfeito em seu todo. Contudo, desejo reconstruí-lo com o máximo de perfeição que Deus me permite fazê-lo. 

De origem pobre, pais agricultores e analfabetos funcionais, porém sérios, honrados e honestos, desde a adolescência, busquei construir um futuro melhor. Minhas sandálias havaianas percorreram ruas de paralelepípedos na Manaus de outrora perdida nas lembranças que nunca mais voltarão e meu frágil corpo sacudindo no banco traseiro do ônibus de madeira da Santa Luzia/Boca do Incoboca, toda vez que deixava de circular em pista de paralelepípedo e passava para a de barro batido, em frente a empresa Amapoli, onde minha mãe trabalhou, no Morro da Liberdade. Como meu amigo Luiz Eron, também consegui construir meu castelo de sonhos, mas tudo desmoronou em 2006 quando sofri a primeira de 11 cirurgias no cérebro para tratar de um empiema cerebral, deixando o hospital infectado por duas bactérias incuráveis. No início, me desesperei e tratei de recolher com paciência e sabedoria os cacos que me presentearam do vaso que guardava minhas rosas perfumadas e tive que recomeçar tudo de novo, passo a passo, um degrau por vez na subida porque sei que posso despencar também se pular algum degrau de minha nova escada.

Meu corpo físico de hoje não lembra em nada o menino que transportava caixa de picolé, tambor de cascalho nas costas, sempre maior do que eu era, vendia velas e flores em porta de cemitério no bairro do Morro da Liberdade, em frente a casa do Sr. Panta, parado e parando os fregueses com velas, fósforos na mão e, de quebra, uma caixa de fósforo de brinde, mas me orgulho de tudo o que fiz, só não da surra que levei de minha mãe Josefa Costa por querer superar meu irmão Roberto Costa, que também vendia picolé, ao retirar dinheiro do caixa da mercearia que a família possuía no bairro da Betânia, voltar mais cedo para casa, devolver o dinheiro que era de minha mãe, mesmo recebendo parabenizações por vender mais picolé e voltar mais cedo para casa do que meu irmão! 

O ônibus Santa Luzia/via Beco do Imboca, passava sempre em frente a Usina Triunfo, de propriedade do empresário Isaac Benayon Sabbá & Cia,  e beneficiava pau rosa, copaíba e sova, mesmo depois do início da Zona Franca de Manaus, .onde meu amigo Luiz Eron Castro Ribeiro, começou a trabalhar aos 14 anos, também na década de 70. Estava retornando para casa, sujo de tinta de jornal no calção e feliz por ter conseguido vendê-los todos. A empresa, Usina Triunfo, que expelia fumaça negra de sua chaminé ao fundo,  foi totalmente alagada pelas águas do Igarapé do 40 em 1976. Já se vão 40 anos decorridos em minhas lembranças e recordo tudo como se tivesse acontecido ontem. 

Também gostava de pegar essa linha de ônibus só para passar em frente a Usina e procurar inutilmente meu amigo do Colégio Durval Porto, onde estudamos, com os olhos que ainda não se escondiam por trás dos 7,5 graus de cegueira. Hoje a Usina Triunfo foi transformada em uma Escola, talvez para ensinar como não se deve agredir a natureza com fumaça negra ou branca e nem jogar lixo nos igarapés. Nada podia ver, além da parede branca da fábrica porque embora meus olhos ainda não se escondessem por detrás dos óculos, eu não tinha visão de Raio X. Que pena! Ficava só imaginando o que Eron pudesse fazer dentro da fábrica, enquanto voltava feliz de mais um dia de trabalho, com dinheiro no bolso que economizava moedas para depositar na Poupança Socilar, uma das primeiras a surgir em Manaus, além da CEF que já existia, mas não podia abrir poupança porque ainda não possuía documentos, além da minha carteira estudantil do colégio Dorval Porto. Sempre economizei porque parece que eu previa o que me ocorreria hoje, quando mal tenho dinheiro para viver; hoje conto com o dinheiro de minha esposa para pagar algumas pequenas despesas! Como já afirmou Charles Chaplin: “a vida é uma peça de teatro que não permite ensaios”. Eu não ensaiei. Vivi, trabalhei e estudei muito.

Hoje, mais maduro, experiente pelas besteiras e bobagens que fiz na vida, resignado, aceitei minha nova condição de vida, maduro sem os dois lados de meu crânio, que minha esposa insiste para que eu sempre saia com chapéu para não despertar curiosidade nas pessoas, que sempre perguntam: “isso foi acidente?”ou como uma garotinha na praça de alimentação do Manauara Shopping que, certa vez, em sua santa inocência, assim me perguntou: “por que tua cabeça está toda assim?” e eu tive que responder que tinha sido vítima de 11 cirurgias desde 2006, todas no cérebro e que passei a viver infectado por bactérias hospitalares, desde então. Também a ser como um inválido por muitos, pensador por alguns, escritor por outros e livre pensador por vários, sempre exigindo minha cidadania e reconstruindo com lembranças buscadas em lampejos de memória, o resto que ainda terei para viver. Meus sonhos e esperanças estão se esvaindo como o vento que sopra em meu rosto no calor úmido de minha cidade de Manaus.

Hoje, relembro isso com certo remorso, mas saudades também porque eu era feliz  ao chegar em casa e depois poder jogar bola na rua com meus colegas. Ah, que saudade!

Agora olho para trás e vejo que faria tudo de novo, sem tirar nem por nada. Faria igualzinho. Talvez, porém, não tivesse feito as cirurgias, mesmo desaconselhado pelo e amigo e médico Élio Ferreira da Silva, que queria mais diagnósticos e ia quase todos os dias no Hospital para ver-me inerte, autômato, olhando para a parede branca do hospital e me dava conselhos para que eu não operasse. Mas como não operar, se eu estava surdo? Sinto saudade das vozes de meus alunos perguntando assuntos de Serviço Social, que dominava e ainda domino com maestria, mas não tenho mais condições de voltar a fazer palestras como fazia antes. A última e primeira que fiz foi aceitando convite da professora Darcy Amorim, mas vi que não consigo mais me expressar como antes fazia com prazer e orgulho porque eu assumo que sou assistente social, apenas com meu vaso de rosas quebrado e reconstruindo de novo minha vida.

Como disse sabiamente o cineastra e filósofo Charles Chaplin “a vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termina sem aplausos”. Eu vivi a minha, não como gostaria, mas como eu precisava vivê-la e hoje recebo os aplausos pelo que escrevo, fazendo a alegria de muitos que me acompanham ao redor de 46 países! 

Autor: Carlos Costa - Manaus/AM

Texto: 20 (do concurso) - Entre a cruz e a caldeira

Dias difíceis. Era chegado o momento em que Alzira precisaria tomar uma difícil decisão, talvez uma das mais difíceis de sua vida. Emocionada, angustiada e muito confusa, agarrava-se à lembrança do dia em que bateram à sua porta e ofereceram-lhe aquele filhote – era uma linda cadelinha, de olhar doce e carente.
Passaram-se catorze anos desde que Killah fora acolhida na casa de Alzira, fora trazida por um vizinho. Ele contou-lhe que acabara de encontrar o filhote em um bueiro perto da linha férrea e estava acompanhado do menino Duda – sobrinho de Alzira – quem o ajudara no resgate e pedira a ele para que o ajudasse a convencer sua tia a adotá-la. Houve muita resistência pela adoção, pois não fazia muito tempo que o cão de estimação da família havia desaparecido, talvez tenha sido roubado. Todos sofreram muito pela perda, jurando não acolher em casa e nem se apegar mais a nenhum animal. E outro detalhe é que Duda estava apenas passando uma temporada na casa da sua tia, daí a pouco voltaria para sua casa, em outro país.  Entretanto, aquele olhar “pidão” do menino e também dos dois filhos de Alzira, além daquela expressão de abandono da cadelinha, acabaram por convencê-la. Assim adotou-se Killah, nome escolhido por Duda e prontamente aprovado por todos.
Os dias se tornaram mais divertidos para os meninos com a presença daquela cadelinha e até Alzira que resistira tanto, embora tentasse disfarçar, já se perdia de amores por ela. Um filhote dá muito trabalho, destrói coisas, faz um bocado de sujeiras em seu espaço e até certa idade, chora e requer muita atenção. Entretanto, não faltaram promessas por parte dos meninos, de que se responsabilizariam por todas essas coisas, desde os cuidados com a comida, com a higiene de Killah e do espaço que ela ocupasse. Ledo engano! Na verdade, só se responsabilizaram mesmo pelos bons momentos de brincadeiras e de dar a ela os primeiros treinamentos, comandos e essas coisas que se costuma ensinar aos cães. Assim Alzira a cada dia se sentia mais apegada e em contrapartida, ganhou uma verdadeira e fiel guardiã, na medida em que Killah crescia.
Dizem que cachorro não pensa, não fala, mas essas afirmações eram contestadas veementemente por Alzira, que não se cansava de contar aos outros que a sua cadela era diferente, especial e que elas conversavam e se entendiam muito bem. Dizia que ela entendia perfeitamente o “dialeto” canino. Como mera espectadora, eu mesma pude presenciar alguns momentos em que, entre palavras de Alzira e grunhidos de Killah, elas pareciam mesmo travar uma boa conversa.
Havia outros comportamentos bem interessantes, como por exemplo, no horário dos cochilos costumeiros de Alzira, após o almoço, a cadela deitava-se na soleira da porta do cômodo onde a sua dona descansava e ali permanecia até que ela se levantasse. Nenhum convite para brincadeiras com os meninos, a fazia sair dali. Assim que foi conhecendo toda a família, filhos, sobrinhos e outros, de sua dona, ela passou a comportar-se de uma maneira notável: quando chamavam à campainha, Killah era a primeira a se manifestar. Dirigia-se ao portão latindo braviamente e se percebia que era alguém da família, parava de latir e corria até o interior da casa, até encontrar Alzira, correndo de volta ao portão em repetidas vezes, como se quisesse avisá-la da chegada de alguém de casa. Quando se tratava de desconhecidos a bater à porta, ela não parava de latir e não se distanciava da entrada. Há uma coisa muito curiosa, ela não gostava de prestadores de serviços públicos, como agentes da companhia de luz, de água, correios, limpeza urbana, latia como fera quando percebia a presença deles. Era preciso atendê-los através da grade que cercava o jardim.  Alzira me disse que nunca entendeu bem esse comportamento, mas acreditava que de alguma forma ela queria dizer: “Nunca deixe estranhos entrar em sua casa, se eu não puder estar por perto.”.  Mas, sabe-se lá o que passava na cabeça dela. Ela impunha respeito aos de fora, mesmo sendo a cadela mais dócil que seus donos, familiares, ou amigos que recebiam em casa, conheceram.
Entre essas e outras tantas histórias que ouvi e poderia contar, passaram-se os catorze anos de vida de Killah e ela já não se parecia em nada mais com aquela respeitável guardiã da família e da casa. Não mais se manifestava aos chamados e já tinha enormes dificuldades para se movimentar. Foi aos poucos perdendo a visão e até mesmo o faro. Alimentava-se com dificuldade e em poucos dias teve as patas traseiras completamente paralisadas. Era preciso que os filhos de Alzira a levantassem e a segurassem, até mesmo para fazer as suas necessidades fisiológicas. Eles a levaram em veterinários, tentaram vários tratamentos, medicamentos e nada, a cada dia ela piorava, chegando o momento em que paralisaram também as patas dianteiras e aí foi um sofrimento só, ver aquela amiga e companheira naquele estado. Veio então o veterinário e explicou sobre o prognóstico da doença: em poucos dias paralisariam também os órgãos vitais e com isso viriam inúmeras outras consequências. Não havia cura e nenhum paliativo que pudesse dar-lhe alívio. Sugeriu então, que a melhor solução para evitar maiores sofrimentos para Killah, seria praticar a eutanásia.
Segundo contou-me Alzira, aquela sugestão caiu-lhes como uma bomba. Todos se desesperaram e a tristeza tomou conta da família. Era uma decisão crucial e ela se viu “entre a cruz e a caldeira”, pois seus princípios e valores e que os passava para sua família, eram contrários a tirar a vida de um ser vivo animal. Claro que era um momento de reavaliar tudo aquilo, mas esse foi um grande desafio. Chamou os filhos e perguntou a eles o que achavam a respeito dessa situação. De início, ambos se manifestaram contra a ideia de eutanásia e se propuseram a continuar cuidando dela até o fim e Alzira por sua vez, também relutava por essa medida drástica. Entretanto, dois dias após a última visita do veterinário, tudo que ele previra aconteceu, alguns órgãos pararam de funcionar, ela já não respondia mais aos toques de seus donos, não se alimentava e parecia desmaiada na maior parte do dia. Foi aí, que um dos filhos de Alzira a chamou e disse-lhe que não havia outro jeito, que ela providenciasse tudo, mas que havia uma condição: ele não deveria estar presente quando a levassem. A filha também teve a mesma reação.
E agora? – pensou Alzira – a responsabilidade é toda minha, mas o que fazer?
Pensou durante toda a noite e no dia seguinte, esperou que seu filho saísse para o trabalho e com uma tristeza enorme, decidiu-se: ligou para a clínica veterinária e acertou os detalhes. Para sua surpresa, a sua filha, ao ouvir o telefonema, disse-lhe que mudou de ideia e que elas mesmas levariam Killah até a clínica e que ela dispensasse o transporte que essa oferecia. Isso facilitou um pouco mais a tarefa. Embrulharam a cadela em um cobertor e a filha levou-a no colo, como se fosse um bebê.
Na clínica, as duas quiseram saber de todos os detalhes, se haveria sofrimento para Killah, quanto tempo demoraria, onde seria enterrada, etc. Assim que souberam que ela seria anestesiada antes da injeção letal, se sentiram mais aliviadas e fizeram questão de assistir a aplicação da anestesia, até o último olhar que Killah lhes lançara – um olhar, que Alzira me descreveu, como o mais doce que ela já vira antes e que talvez quisesse dizer, “obrigada por me evitarem mais sofrimentos, estou partindo feliz”. 
Saíram as duas daquela sala e aguardaram o procedimento final. Assim que o veterinário veio avisar-lhes que estava concluído, elas entraram novamente e se certificaram que Killah já não sofria mais. Não houve jeito de conter as lágrimas, mas elas saíram dali convictas de que aquele foi o melhor remédio.
Naquela casa todos se lembram de Killah com muito carinho. Ela lhes deixou uma de suas crias e que foi também acolhida no coração de todos, com alegria e muito amor. Fiquei pensando na dedicação, no sofrimento dessa família e avaliando a força, a natureza do amor que um animal de estimação desperta nos humanos. E eu que nunca cogitei em ter um animal em casa, acabo de adotar uma cadelinha. Seu nome? Killah.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Texto: 19 (do concurso) - O Guapeca

Eu tinha cinco anos de idade, quando morreu o cachorro de estimação da família que atendia pelo curioso nome de Peca. Aliás, muito tempo depois é que fui saber que o nome dele era uma simplificação de “guapeca”, termo muito usado no sul do Brasil para nomear o cachorro doméstico.
 Peca era um cão de uma raça muito popular, conhecida desde a Roma antiga por “canis viralactum”, ou seja, um simples vira-latas. Porém, os seus pelos aveludados da cor marrom, sua agilidade e graça, além de alguns  traços diferenciados, o colocava muito próximo da realeza dos Golden Retriever, originários da Grã-Bretanha. 
No convívio da família ele transmitia muita alegria, era o tempo todo: “Peca pra lá, Peca pra cá”. “Eita bichinho espoleta”, meu pai dizia. Às vezes, quando ele colocava o focinho entre as ripas do portão que dava para a rua, minha mãe ralhava:
– Não vai pra rua, Peca!
Ele não ia, e muito menos eu. Porque ela sempre nos mantinha, eu e o cachorro, do portão para dentro. Brincar na rua, nem pensar! “Isso não é coisa de guri educado”, ela dizia. E só saíamos, eu e o Peca, juntos com a família. Quando íamos à casa da vó Davilina ou de algum outro parente.
Curitiba não era como é hoje, eram os anos 1950, e agente ia a pé à casa da vó; desde a Vila Leão que ficava no bairro do Portão, até o bairro Novo Mundo. Nos dias de domingo Peca ia sempre faceiro pela rua, penso que ele, assim como eu, aguardava ansiosamente por aquele passeio.
Naquele tempo era um costume muito arraigado as visitas em família nos dias de domingo. Ninguém ficava em casa como hoje, vendo TV até o domingo acabar. Eu adorava ir à casa da vó, lá era o nosso ponto de encontro; tios, tias, primos e primas, compadres e comadres. Minha avó gostava muito de mim, embora eu fosse adotado, era tratado como da família desde sempre. Aliás, nessa época eu nem sabia que era adotado. Ela e os meus tios viviam me elogiando, diziam sempre que eu era muito educado, inteligente, criativo, coisas assim; coisas de guri bem comportado. 
Além do clima harmonioso, existiam também as brincadeiras com os primos que eram da minha idade. E muito mais: o café gostoso moído na hora, pão feito em casa, bolo, paçoca de amendoim, cocada, compotas e outras quitandas. De vez em quando, algum tio me agradava com algumas balas de ovos muito gostosas; eram as minhas preferidas.  Eu tinha uma predileção bem acentuada por doces, minha mãe dizia que era por causa das lombrigas, e ficava por isso. Para mim o importante era que todo domingo era dia de festa na casa da vó, e para o Peca também. Nunca vi um cachorro tão contente como naqueles dias de domingo, até parecia criança também. Logo de manhã os olhos dele brilhavam mais que tudo, parece até que adivinhava o dia; até o pelo dele que era marrom ficava mais sedoso depois que minha mãe dava-lhe um bom banho.
E assim, eu e o Peca fomos convivendo na vida; brincando e correndo pelo quintal que era dividido com algumas galinhas e um gato do vizinho que de vez em quando aparecia por lá. Minha mãe e a tia Ondina eram bordadeiras de mão cheia, como se dizia.  Então de vez em quando uma ia bordar na casa da outra. Quando íamos à casa da tia Ondina, que morava na mesma vila, era uma festa também e o Peca ia junto feliz da vida. Lá também era bom de passear. Do portão até a varanda da casa tinha uma espécie de portal adornado com parreiras de uvas pretas e uvas verdes, a gente caminhava por debaixo das parreiras.  Quando chegava o tempo das uvas maduras até o Peca comia e se lambuzava. Tia Ondina e minha mãe achavam graça de ver o cachorro comendo uva e abanando o rabo de contente.
Naquele tempo também era comum ter o médico da família, e o nosso se chamava Dr. José. Ele era um pouco mais velho e muito atencioso. Meus pais me levavam lá muitas vezes, já que eu era muito doente nessa fase da infância. Eu era muito magricela e frágil, então volta e meia tinha que ir ao médico. Lembro que além dos remédios que ele receitava, sempre havia a recomendação de que eu tinha que tomar muito fortificante. E minha mãe seguia à risca as instruções do Dr. José. Daí que eu tomava óleo de fígado de bacalhau, Biotonico Fontoura e Sadol que era para abrir o apetite. Algumas vezes por dia minha mãe me chamava:
– Venha cá guri, tá na hora de tomar o fortificante!
Quando eu ia o Peca ia junto, só que ele não precisava de fortificante. Se tivesse que dar alguma coisa pra ele tomar devia ser calmante, pois o serelepe corria pra lá e pra cá o dia inteiro. Meu pai dizia que se eu tivesse a energia que o Peca tinha, minha mãe ia ter um trabalho redobrado comigo.
Às vezes, os adultos não acreditam muito nas impressões das crianças, mas, naquela tarde fria de julho, uma quinta-feira, quando minha mãe começou a me aprontar para ir ao Dr. José, eu senti que o dia, além de nublado, estava meio estranho; algo estava meio fora de ordem, só que eu não sabia o quê.  Até mesmo o Peca estava um pouco distante, não estava tão alegre como das outras vezes que ia conosco. Mesmo assim, lá fomos nós para o médico. Eu, minha mãe e o Peca, que de vez em quando me dava uma lambida na mão. Chegamos ao consultório do Dr. Jose e antes de subirmos uma escada que levava até ao atendimento, minha mãe recomendou ao Peca:
 – Você fica aí esperando quietinho, não vá sair pra rua, hein!
Peca deu um resmungo como se tivesse entendido e, como sempre fazia naquelas ocasiões, se acomodou no tapete que ficava próximo à porta. Acabamos de subir a escada e fomos aguardar lá na sala de espera até que fôssemos chamados. Pode até parecer estranho, mas eu gostava de ir ao médico, porque na sala de espera tinha muitas revistas e, como eu já sabia ler um pouco, ficava ali entretido folhando as revistas da época enquanto o tempo passava. Enquanto isso, minha mãe conversava com as outras mulheres que esperavam também. Às vezes eu dava um tempo nas revistas e ficava ouvindo minha mãe falar dos seus bordados e de outras coisas da vida. Quando perguntavam a meu respeito, ela dizia que eu era muito fraquinho, mas, que o Dr. José estava cuidando disso e eu vinha melhorando.
Fomos a chamados e o Dr. José foi logo perguntando se eu estava tomado os fortificantes. Então minha mãe narrava tudo com detalhes sobre a minha saúde. Nesse dia, depois de me examinar ele disse que eu estava bem melhor, que estava ficando corado e que era só obedecer e tomar direito os remédios que eu ia ficar com uma saúde de ferro. Minha mãe ficou muito contente com as palavras dele, falou que assim ficava mais aliviada. Eu também fiquei alegre em saber que o tratamento estava indo bem, principalmente por que não precisava tomar injeção. Eu tinha um medo assombroso de injeção, só de ouvir falar já me dava arrepio. Outra coisa que eu gostava muito mesmo quando ia ao Dr. José, é que ele na saída me dava uns pirulitos com sabor de framboesa, que me deixavam com a língua vermelha e um cheirinho bom.
E foi assim, animados com as boas notícias do médico sobre a minha saúde, que nos deparamos com uma incomoda surpresa no fim da escada, o Peca não estava nos esperando no tapete onde o tínhamos deixado. No primeiro instante Minha mãe ficou sacudindo a cabeça transtornada sem saber o que fazer:
– Onde será que esse cachorro se meteu?
Pergunta daqui e dali e ninguém sabia do cachorro. Então ela me deixou sentado na escada e saiu para a rua a perguntar nas lojas que existiam ali por perto. Até que o dono de um armazém que conhecia minha mãe, disse que tinha visto o cachorro e que ele tinha sido atropelado e morto por um caminhão...
Creio que para me preservar da cena, ela nem me levou para ver o corpo dele. Apenas me pegou pela mão, e enquanto voltávamos para casa contou que o Peca tinha morrido num acidente. Eu sem entender muito bem o ocorrido, voltei chorando e triste pelo caminho.  Em vão ela tentava me consolar, dizendo que a vida era assim mesmo, que cachorro vivia pouco e que, diferente das pessoas, não tinham noção de perigo. Foram momentos de uma tristeza que parecia não ter fim. Em casa até chá de camomila adoçado com mel, minha mãe me deu e nada do desgosto passar.
Quando à noitinha meu pai chegou do trabalho foi outra angústia. Meu pai ainda tentava entender o sucedido:
– Mas como é que isso foi acontecer? Ele já estava acostumado a ficar esperando lá na entrada do consultório. Será que alguém abriu a porta e espantou ele de lá? Sozinho ele não ia sair, ele era muito obediente...
 Dúvidas e mais dúvidas, até que minha mãe pôs um fim na conversa. Disse que não adiantava ficar remoendo o assunto porque isso não ia trazer o Peca de volta. Era melhor a gente ir se consolando e guardar as boas lembranças dos anos que ele tinha alegrado a vida da gente com suas estripulias. Com ares de sabedoria ela falou:
– Foi Deus que quis assim, vai ver que ele já tinha cumprido o tempo dele aqui na terra.
Eu na minha santa ingenuidade ainda perguntei para ela:
 – Mãe, será que o Peca foi pro céu?
– É claro que foi. Ele não fazia mal a ninguém.  E lá deve ter um lugarzinho para os cachorros bonzinhos também, afinal todos são criaturas de Deus, né!
Depois dessa conversa, apesar do aperto no coração, da saudade entranhada no pensamento, fiquei mais consolado, como dissera minha mãe. Afinal o Peca tinha ido para o céu e já devia estar dando seus pulos por lá. Fiquei até imaginando que deveria ser bom para ele, pois no céu não devia ter portão para impedi-lo de ir pra rua, então ele podia ir aonde quisesse...
De vez em quando eu ainda via o Peca correndo pelo quintal, mas, minha mãe dizia que era imaginação de criança. Como podia ser imaginação, se eu o via correndo atrás das galinhas no quintal? Se até o gato rosnava para ele? Coisa difícil de entender.
Às vezes, quando ouvia algum cão latindo na rua eu corria até o portão pra ver se era o Peca, mas, não era... Assim mesmo eu ficava lá, até que a minha mãe ralhava, como nos tempos do Peca:
– Não vai pra rua não, guri!
Quando isso acontecia, eu apenas sorria. Depois corria para os seus braços, ela me abraçava e me entendia só pelo olhar.

domingo, 8 de junho de 2014

Texto: 36 (do concurso) - Uma amizade improvável

Há poucos dias assistia a um desenho animado na tv, com a minha netinha. Eu não prestava muita atenção no filme. Divagava sobre qual animal eu poderia escrever um conto. Quando desisti, devido à completa falta de inspiração, quis saber dela do que se tratava o filme. Era sobre um ratinho que sonhava ser um fino cozinheiro. Pobre ratinho! Sofreu horrores com o preconceito dos humanos e da sua própria família. Cada um no seu quadrado, era a lição que lhe impunham a todo momento. Imagine um restaurante requintado, tendo como o seu melhor cozinheiro, um rato! Porém, como em todo filme infantil que se preze, os mocinhos venceram no final e os preconceituosos sucumbiram. O filme me lembrou uma canção sobre um ratinho, o Ben, composta por Michael Jackson, lá pelos anos 70, e a procurei na internet para mostrá-la à minha neta, que  não a conhecia. Ela, então, me disse: “Vó, por que você não inventa uma estória sobre um ratinho? Acho que ficaria legal, bem diferente, que tal?”  De repente, eu me lembrei de um rato, sim, e não precisaria inventar uma estória. Ela aconteceu de verdade e foi muito significativa para mim:
Há muitos anos, quando a minha filha, hoje mãe desta neta, era ainda adolescente, apareceu com duas ratinhas brancas, destas chamadas cobaias, e as enfiou dentro de casa. Pensei morrer de nojo e medo. - É o fim do mundo, é o cúmulo da rebeldia, é o modo mais rápido de matar uma mãe, suma com isso daqui, ai-que-nojo... As ratas ficaram. A primeira providência que elas tomaram como novas donas da casa foi a de destruírem as capas dos meus melhores discos de vinil. – Bom, ratos vivem, no máximo, dois ou três meses, então, tudo o que eu tenho a fazer é esperar que esse tempo passe rápido... Fiz uma prateleira, com uma tábua, na parede da despensa e coloquei comida e água, na esperança, não muita, que elas permanecessem só ali. E, para minha surpresa, elas se comportaram exemplarmente. Faziam menos sujeira quando comiam, que a minha própria filha. A outra sujeira, a da saída, não era assim um sacrifício tão grande (para a filha) limpar, Passamos a conviver pacificamente mas, sem intimidades, por favor.
Um dia, quando cheguei do trabalho, exausta e aborrecida, me sentei no sofá, perto da minha filha, sem perceber que ela estava com as duas ratinhas no colo. – Ai! Tira isso de perto de mim! – Calma, mãe, olha, passa a mão nelas, sente a maciez dos pelos... Vai, mãe, coragem... Não passei, mas não resisti quando a minha mão foi levada até uma delas. – Tá, passei, agora tira daqui.
Num outro dia, a minha filha: - olha, mãe, que legal! – batia com um dedo no chão e as ratinhas vinham correndo até ela. – Tenta, vamos ver se elas vão até você. Tentei. Elas vieram. Passei a mão nelas e senti-lhes a maciez dos pelos.
Ah! Vamos resumir essa história: todos os dias, quando eu chegava do trabalho, lá da porta mesmo, eu já tamborilava os dedos no chão e, de onde estivessem, vinham correndo em minha direção, e todos os dias era uma festa. Eu me sentava no sofá e elas passeavam pelos meus ombros, pescoço, cabeça, emaranhavam meus cabelos e ganhavam muito, muito carinho. Aprendi, por elas, a andar com passos lentos dentro de casa, a não fazer movimentos bruscos para não assustá-las, a fazer e a me permitir afagos, a não ter mais preconceitos de espécie alguma. Hoje, não há criança ou bicho, sejam de quais tamanhos forem, que eu não saiba como dosar a minha força e os meus gestos, para deixá-los seguros diante de mim.
Lamentei profundamente a vida tão curta de ratinhas brancas, cobaias de laboratório e gente. Uma delas morreu de causa não identificada, simplesmente a encontramos morta. A outra foi atacada por um gato, que não sei de onde surgiu, e morreu acariciada, na palma da minha mão. Pena esta história não ser infantil. Gostaria que fosse. Nas histórias infantis não se conta a morte dos mocinhos. Só contei porque achei importante dizer quem desembruteceu a palma da minha mão.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Texto: 52 (do concurso) - A gata que era um gato


Penso que o lugar mais inadequado para ter  animais é em apartamento. Por essa razão nunca fiz questão de ter cachorros ou gatos. Mesmo assim, um belo dia meu filho mais  moço apareceu com   um  felino  SRD, totalmente preto e semi desmamado. Fiquei furiosa e disse que não ia cuidar do animal. Meu   filho deu o nome de Mulata para a gatinha, assim pensava ele. Todos os dias  punha Mulata na mochila e a levava para o trabalho. Nos finais de semana deixava  Mulata comigo e se mandava para a praia ou para qualquer outro passeio. Claro, eu não podia deixar a gatinha passar fome e frio. Ela miava muito e de repente  me  vi com Mulata no  colo tentando acalmá-la. E assim o amor foi crescendo por ela. E já que  ia ficar conosco,  resolvemos levá-la  ao veterinário o qual  fez as perguntas de praxe inclusive  como era o nome. Respondemos que ela chamava-se Mulata. O veterinário  riu e    disse: mas ela não é gata, é um gato! Depois disso tivemos que escolher um novo nome. Passamos a chamá-lo de  Bellekc que está com cinco anos e é o nosso  encanto aqui em casa.Ele é muito carinhoso mas muito independente. A casa é dele. Dorme o dia todo em qualquer lugar que lhe apraz. Faz alongamento toda manhã e toma banho de sol.  A  noite sai para  exercitar seu instinto felino. O veterinário nos aconselhou a não deixá-lo sair, mas quando chega a noite ele fica de pé na porta,  toca na chave, chora até que  abrimos a porta. Não  sei como reeducá-lo para que fique em casa.Se alguém sabe de uma receita, me avise.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Texto: 18 (do concurso) - O bode Calibu

A velha  senhora, Dona Leonete, agora vivendo na cidade grande, no outono de sua vida, tinha como alegria permanente,contar histórias de seu tempo de menina para os netos. Uma das historias foi a do seu amor pelo bode Calibu, um belo exemplar caprino, que lhe dera muitos prazeres inocentes. Com os olhos semi cerrados, ela voltava ao passado e se via menina sapeca fazendo artes naquele findão de mundo que era o seu mundo. Assim ela começou, diante de olhos e ouvidos atentos dos netos.
“Até meus nove anos de idade, meus pais e minhas irmãs morávamos em um sítio enorme, no povoado chamado Igarapé-Açu-de Cima, próximo a Vila de Irituia, hoje uma bonita cidadezinha no norte do Pará. No sitio tínhamos árvores frutíferas, patos, galinhas, porco, perus e  pombos. Minha mãe cuidava da casa e das criações e meu pai tinha um pequeno armazém de secos e molhados, único no povoado.Nunca nos faltou alimento, as criações garantiam galinha à cabidela, torresmo, pombos assados, ovos de perua e outras delicias. Tínhamos também um  belo igarapé onde tomávamos banho, lavávamos roupas, louças  e de onde utilizávamos água para beber. Entre as criações havia alguns caprinos, entre os quais o chefe do grupo, o bode Calibu. A companheira de Calibu, garantia o leite diário para a família. Com esse leite meu pai fazia um saboroso mingau de farinha dágua com ovos quebrados dentro. Uma delicia, além de substancioso. Calibu era nosso companheiro de travessuras e quando embrenhávamos pelo mato, ele nos acompanhava, como se fosse nosso guardião.  Nòs tínhamos um amor muito grande por ele e pela família, mas ele era o nosso xodó. Em nossa casa, havia uma espécie de mezanino caboclo onde meu   pai guardava mercadorias e cujo acesso era por uma escada rústica. O nosso amigo Calibu era manso e por casa dessa mansidão, principalmente eu, adorava puxar sua longa barbicha, faze-lo de montaria e segurar-me nos seus chifres enormes.  Durante algum tempo ele suportava os puxões, mas passado o tempo da paciência, ficava furioso, me derrubava  no chão e tentava me atingir com os chifres. O que eu fazia? Subia  para o mezanino caboclo para minha proteção. Calibu ficava no pé da escada espumando  de  raiva, esperando que eu  descesse. E quem disse que eu descia? Só quando ele cansava e ia embora.Pois bem uma  bela manhã, eu estava brincando com minhas bruxas de pano, quando minha irmã mais velha veio  correndo e gritando:
-Mana, vem ver! O Calibu morreu!
-Morreu? Como? Eu não acredito. Morreu de quê?
- Vem ver! Ele tá na beira do igarapé, inchado que nem um balão!
Corremos para lá e vimos o nosso amigo mortinho da silva.     
Ficamos sabendo por nossa mãe, que  Calibu comera mandioca braba deixada por um dos trabalhadores do sitio, por descuido. E mandioca braba é veneno.
Foi choro de não mais acabar. Não podíamos acreditar que nosso amigo morrera. Pedimos ao nosso pai  que fizesse o enterro de Calibu, como se fosse gente. Meu pai atendeu e depois disso, todos os dias íamos na sepultura dele  levar flores e galhos de plantas para deixá-la  enfeitada.
Meu pai ficou muito penalizado não só  por nós, como pela dificuldade de conseguir  outro bode para fazer a cobertura da  viúva caprina, garantir filhotes e o leite para o alimento da família. Tanto procurou que conseguiu outro  animal vindo do nordeste,  para a nossa felicidade em tempos de meninice.  E a historia recomeçou com as nossas atanazações com o nosso novo companheiro que passou a chamar-se de Capitão."
As crianças  ficaram admiradas das traquinices da avó e perguntaram se havia outras parecidas.
-Sim, respondeu a avó. Ma isso fica para  outra noite. Abençoou os netos e foi dormir.

terça-feira, 3 de junho de 2014

Texto: 17 (do concurso) - O gato de Donana

Helena era uma garotinha de olhos verdes e cabelos loiros encaracolados. Seus pais a deixavam sob os cuidados de uma tia-avó. Essa tia morava em um sítio próximo a um povoado onde o pai de Helena era comerciante e a mãe, funcionária pública.
No sítio, viviam a viúva Donana, suas duas filhas e o arisco gato Mimi. A filha mais velha trabalhava no povoado. A filha caçula, uma moça extrovertida e bonita, foi passar férias na Bahia, conseguiu um pretendente, casou-se e mudou para aquele estado. 
Donana criava galinhas, vendia as frutas do sítio ou as aproveitava para fazer doces, vendia algodão e mamona para as beneficiadoras da capital. Na época das chuvas, também plantava feijão e milho.
Mimi era o único macho da casa, se achava um rei. Não demonstrava a menor afetividade por ninguém. Sua pelagem era rajada e seu tamanho era exageradamente grande em comparação com os gatos da vizinhança. Além de bonito, era exímio caçador, vivia no encalço de calangos, passarinhos e ratos. Era comum vê-lo no terreiro da casa devorando suas caças. Ele tinha uma cadeira sempre forrada com um pano e ali nenhum humano podia se sentar. Se algum desavisado sentasse no trono do rei, logo ele miava e roçava as pernas da pessoa como quem diz: “esse lugar é meu”.  Às vezes, ele dormia na sala de jantar em cima de um móvel em que a louça era guardada. Mimi gostava de dormir, ouvindo sua dona cantar. Com uma voz afinada, Donana cantava valsinhas enquanto se ocupava dos afazeres domésticos.
Quando Helena completou sete anos, foi com uma tia conhecer a capital. Era sua primeira vez em uma cidade grande e diante do mar. Porém, a saudade do sítio falou mais alto, ela sentiu falta da adorada Dona Ana, de suas deliciosas comidas e do Mimi. Era tanta saudade que a menina sonhava com o gato e com o cenário de suas brincadeiras. Quando finalmente retornou, entrou em casa correndo. Pediu a bênção para sua mãe e foi ao encontro de Mimi, que dormia sobre o móvel da sala de jantar. Na hora que Helena o abraçou, ele ficou irritado e deu nela uma patada, ferindo o braço da menina. Ela ficou perplexa, sem entender aquela reação. Ela só queria lhe dizer que sentiu sua falta e lhe dar um afetuoso abraço.
Passado o susto, a vida transcorreu mansamente. Às vezes, apareciam no sítio os netos e o afilhado de Donana, o menino Miguel. Eles moravam no povoado e gostavam de ir lá pegar frutas ou ganhar alguma guloseima. Também tentavam, sem sucesso, aproximar-se do arredio Mimi.
Até que um dia Mimi apareceu morto. Helena ficou sentida com a morte do bichano com que ela convivera desde filhote. Resolveu que ele teria um sepultamento digno. Reuniu seu irmão, seus primos e Miguel. Eles fizeram uma cova enquanto a menina construía uma cruz de gravetos e colhia flores silvestres. Quando tudo estava pronto, os adultos pararam suas atividades e ficaram observando a meninada da porta dos fundos. O cortejo fúnebre seguiu. Helena chorava e os meninos riam, o que a deixou muito brava. Donana interveio pedindo para os meninos se aquietarem. E, assim, Mimi foi sepultado, com a cruz e as flores silvestres.

domingo, 1 de junho de 2014

Jardim das Almas

Autor: Carlos A Lopes

         Olá, meu nome é Bill, mas podem me chamar de Tutinha ou até mesmo de Ziu, se quiserem.  Só não observem umas mechas claras entre minhas orelhas. É o meu primeiro sinal da velhice! No mais, permaneço ágil, viril, porém pouco compassivo com os humanos.
Hoje vi o meu pai falecer. Fiquei ao seu lado enquanto o meu coração aguentou. Depois, de longe permaneci quieto sem emitir nenhum som e de orelhas empinadas.
Ao chegar à idade limite, a nossa existência não faz nenhum sentido. Um dia, simplesmente vamos deixando de nos alimentar e a fraqueza nos conduz à morte, já que é próprio da nossa espécie, não lutar contra doenças.
Vim morar nesta casa ainda bem mocinho. Em um belo dia, apareceu no caviário do bairro da Madalena, a sobrinha do meu dono, com o intuito de comprar ração e ela acabou por me levar dali em troca de um pedaço de papel.
No caminho já se iniciou uma sessão de carícias e dengos no meu cangote. Detestei! Coisa mais sem graça! Sou um ser ressabiado e fechei os olhos durante todo o percurso. Até podia ter mostrado os dentes para eles... Sou assim mesmo, consinto tais galanteios, mas fico arredio e apoquentado.
Lá na minha nova casa já havia três outros da minha espécie e cada um deles quis adotar-me como filho. Por alguma razão fui separado dos demais e passei a ser orientado por Otávio, quem acabou tornando-se meu pai. Ele, um sujeito mais velho, relaxado, espírito aventureiro, um verdadeiro líder. Era o único que conseguia adormecer deitado de lado e nutria antipatia pelo Júlio César, o mais vistoso da casa. Já esse, muito charmoso, tinha focinho arredondado, olhos simétricos e pêlos escuros sem marcação, no entanto, um sujeito pachola e estressado.
Nos primeiros dias eu ouvia sempre o meu dono falando sobre o tal de Marco Antônio, o primeiro que chegou para morar em sua casa. Ele era novinho, marrom e quase nada se sabia dele, a não ser que veio como presente e que morreu uns dois meses após a sua chegada. Cá para nós, tem quem diga que na morte dele, houve o dedo de Júlio César. Meu dono diz que liderança entre porquinhos da Índia é coisa de “berço” e Marco Antônio pode ter pagado o preço de ter nascido sem tal graça divina.
De todos os novos irmãos o mais feio deles era Zezinho, o único que se prestava às vadiagens próprias de crianças, tais como, correr e brincar; os demais só pensavam em encavalitar, buscando demarcação de domínios. Entretanto, Otávio era daqueles que pagava para evitar uma briga, porém se fosse provocado não abandonava a peleja.  Ele era sempre provocado pelo Júlio César, o mais invejoso e era logo separado dos demais. Nem por isso se ajeitou, estava sempre desejoso pelas carícias do nosso dono, inclusive fingia chorar, só pra cair nos seus braços.
Depois de Marco Antônio, Júlio César foi o primeiro a falecer. Eu estava por perto. Havia chegado um pessoal de São Paulo e meu dono nos colocou num quartinho, lá onde se lava roupas sujas. Ele morreu de uma forma rápida e estranha. Ainda tentaram medicá-lo, nada adiantou. Seus últimos suspiros foram na cama da enteada do meu dono. Ninguém entendeu ¨nadica¨ de nada do sucedido. Houve derramamento de lágrimas e seu corpo rígido foi contemplado de mãos em mãos. Perguntado, meu dono explicou que nossos músculos enrijecem com a morte. Não sei nada disso! Só sei que nem um pouco se parecia mais com aquele “pretão¨ garboso que atraía a atenção de quem chegasse. E para não tornar esse assunto mais triste, só sei que meu dono o levou dali e fez seu sepultamento no jardim, junto ao Marco Antônio.
Pouco tempo se passou após a morte de Júlio César e Zezinho lambeu do gosto da morte, indo parar, também, no jardim do edifício. Na ocasião, olhando pra mim, ouvi meu dono dizer que ia manter a colher de pedreiro na mala do carro. Ele sofreu muito com a morte de Zezinho. Era o nordestino da casa com seu aspecto de famigerado da seca. Zezinho era renegado pelos outros e por isso não entrava em todas as tocas. Pense num sofrimento! Até injeção na veia tomou. De nada adiantou. Meu amigo faleceu de forma lenta. Com ele se foi o vandalismo e os costumeiros pinotes de alegria. A sua ausência acabou estabelecendo uma convivência mais adulta na casa. Eu me transformei num ser sedentário, enquanto o pessoal só tinha olhos para cochilar na frente da televisão. 
Otávio, meu pai adotivo, reinou absoluto por mais ou menos três anos. E durante esse tempo nunca vi tanta “risadagem” naquela casa, pelo pouco ou quase nada que pude observar. Encantava com seu jeito de ser, nada forçado. Não brincava, não “pinotava”, não roía fios, mas sabia deitar-se de maneira engraçada. E por ser o único que se esparramava de corpo enrijecido em qualquer lugar, sobretudo quando ronronava feito um gato. Todos riam dele. Vai ver que foi por isso que o meu dono até escreveu uma história sobre ele. Sobre a abordagem incompreensível do texto? Nada sei dizer a respeito, só conheço mesmo a linguagem da nossa espécie.
Passei toda tarde avistando de longe o meu pai esticado e morto. Ele penou muito até descansar de vez, apesar dos esforços para mantê-lo em nosso convívio. De nada adiantou, era sua hora! Vivemos em geral, um tempo curto, em relação aos outros animais e aos humanos e as coisas acontecem rápido. E mais uma vez meu dono foi ao jardim do prédio, desta vez para enterrá-lo; voltou algum tempo depois entristecido. Pensativo, meu dono se dirigiu ao computador. Ele escreveu, escreveu; quando aconteceu aquele patatí-patatá com a sobrinha, que se derramou toda em lágrimas ao ler o que ele escreveu, enquanto eu permaneci encolhidinho no sofá, o que de nada adiantou, pois eles voltaram à atenção para mim; ouvi-lhes dizendo que não iam comprar outro irmãozinho, pois receavam que eu o matasse, por ciúme. Que imagem eles fazem de mim? Só porque nos últimos meses assumi a condição de mandar no “pedaço”? Está no meu DNA. Alguém há de ter pulso forte por aqui.
Os humanos são mesmo estranhos! Vivem a conversar com a gente, no entanto, em algumas situações desprezam a nossa capacidade de entendimento; de modo que quero externar uma reclamação: Quem botou na cabeça deles que Porquinhos da India apreciam televisão? Não vejo graça alguma nessas “empreguetes” da novela das sete. Gosto mesmo é de barulho de plástico e do som da porta da geladeira! E tem mais. Aqui, acolá, ficam a me acariciar... Odeio! Muito menos andar pra lá e pra cá nos braços de alguém. Nessas horas dá vontade de falar o linguajar deles e dizer: Ponha-me no meu canto, ou poderá ficar molhado! E o pior é que estão dizendo que a cada dia devo dormir junto a um deles, para sentir-me seguro. Só faltava essa! Quero lá isso? Deixa como está. Vou sentir a falta do meu pai, é verdade, mas amanhã é outro dia. E pensar que somente eu e Marco Antonio nunca fomos agraciados nos escritos de nosso dono? Sinceramente, não sei se estou gostando disso!
Entendo que viver num cercadinho, é solitário, podendo até ocasionar alguma inflamação pulmonar ou até ser golpeado por algum inimigo enciumado; no entanto, dormir num lugar alto, às vistas do dono, dificulta a mobilidade, ao contrário do que pensam, é mais perigoso, pois bastaria um simples descuido e eu posso despencar de lá, propiciando fraturas ou um punhado de males maiores, tais como: convulsão, deslocamento do cérebro, enfim, um histórico longo de probabilidades. Os humanos são desatentos, eles não priorizam nossas reais necessidades, não sabem o que é normal para nós. Daí, mesmo contra a vontade, aqui acolá eu distribuo cabeçadas, até que entendam que minha vontade é voltar ao alojamento. Não me sinto na obrigação de ser alisado, enquanto perpetram longas leituras de livros, ou participam de improdutivas conversas com vizinhos.
Para minha surpresa, meu dono jamais comprou outro da minha espécie. Às vezes até tocava no assunto, mais acabava adiando a conversa, sobretudo, considerando fatos envolvendo a sua família, lá do interior. Aliás, taí outra coisa que nunca tive o direito da escolha. Nada nesse mundo de meu Deus me incomoda tanto quanto viajar pro Sertão, a cada dois meses! Além da sensação de estômago embrulhado pelos tantos solavancos da estrada, ainda tem aquele povo que não sabe diferenciar uma coisa da outra; para eles todo bicho de quatro patas, com rabo ou não, são ratos de esgoto. Pode?  Eles ignoram que sou herbívoro, um primo da capivara, o maior roedor do planeta. Quem me conhece sabe, odeio comparações. Sou recifense de procedência e lá cada criatura se alimenta de acordo com sua categoria de vida. Jamais me forçaram a comer alimentos repugnantes, tais como: pamonha, canjica, arroz de leite e beiju. E por essas e aquelas, quando a morte tenta se achegar, o meu dono me salva, à custa de soros e medicamentos, jamais com chá ou crendices.
A alimentação peletizada, regada à fruta, vitamina C, e soro fisiológico, me fizeram extrapolar o meu tempo de vida. Não que eu ligue, fiz pelos meus donos, não queria magoá-los e também carecia de um momento oportuno para descansar em paz. Quando vi a sobrinha do meu dono arrumar as malas, para sua viagem de trabalho na Bahia, percebi que ele ficaria só, então pensei: Nem morrer agora eu posso, fica pra outro momento! A essa altura meus pêlos estavam desbotados e minha mobilidade comprometida, nem de espaço físico carecia mais. Passava o dia trepado numa cama, sob um edredom e com uma caixa de papelão e comidas frescas à disposição. Tinha toda liberdade do mundo e nada parecia me motivar, só queria dormir... Dormir... Dormir até que meu dono voltasse do trabalho, ocasião em que ele trocava os meus panos e repunha o comedouro. Enfim, um vidão, digno de um legítimo raça Inglês, de pelos liso e curtos, nada podia ser melhor. A essa altura, nem sei se sentia a ausência de colegas para as andanças e vagabundagens; a velhice me trouxe calmaria e a inteligência de observar sem interferir.
Esse ano as coisas lá em casa não começaram bem. Há algum tempo que os pais do meu dono estão vivendo conosco por conta de doença na família. O pai dele parece ter sido acometido de uma doença bastante séria, pelo menos é o que dá a entender. As coisas andam se arrastando, tanto que meu dono resolveu se afastar do trabalho para ficar mais tempo no hospital. A tristeza tomou conta da casa e constantemente amigos e familiares aparecem para conversar. Já não suporto mais tanto barulho de telefones e campainha da porta tocando. E como se eu esperasse o momento oportuno para me despedir, adoeci. Faz alguns dias que ando com um guinchar agudo e sem vontade de comer. Meu dono logo percebeu minha perda de peso e passou a medicar-me com soro, vitaminas e gotas de algum remédio, para que eu não sentisse nenhuma dor. E, em meio a tudo isso, imaginei que seria o momento para me despedir da vida. Não sei o grau de apreensão do meu dono quanto a minha doença, pois ele vive muito no hospital, onde o pai agoniza no leito de uma unidade intensiva, por conta de um choque séptico, pelo menos foi o que disseram. Depois da anorexia ou falta de apetite, não devo amanhecer o dia de amanhã respirando. Senti isso no seu olhar, quando me agasalhou com dois lençóis e se deitou ao meu lado triste e calado, só atento a minha respiração forçada e ofegante.
Se eu soubesse escrever como o meu dono, eu deixaria um recado a ele, assim: “Não fique triste com a minha partida, estou indo feliz, pois sei do quanto um humano é capaz de fazer pelos seres de outra espécie, quando ele os ama de verdade, eu pude sentir a força desse amor.”
Na certa, amanhã logo cedinho, devo ser conduzido pelas suas mãos, ao canteiro do edifício, onde serei sepultado junto aos meus irmãos, lugar batizado por ele, como jardim das almas.


Olá, sou o Ziu, o menorzinho, e também o protagonista deste conto. Ao meu lado o meu pai de criação, Otávio.

Autor: Carlos A Lopes - Olinda - PE