quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Desejo













Autora: 
Elizabeth Vargas Marcondes

Entre mil sóis o calor de um...
Abraço estreito que cala alma,
Acalma!

Me dá a calma de que preciso
No momento impreciso do amor
Que se fez na primavera...
Percorreu décadas outonais.
Viu flores e espinhos...
Espalhados no quintal da vida.

Desejo!...
O frio de todos os invernos...
Que se fora e hão de vir,
Na sonata de dois corações 
Que desejam os mesmos acordes
Da mais bela canção que a vida fez!

Desejo!...
A profusão de corpos que esperam
Na ânsia deste querer. 
E o tempo sabedor de nós...
Apesar dos Nós...
Nos presenteou.

Desejo, apenas desejo 
A troca dos olhares ...
...Que ainda não trocamos
Mas que embevecida espero...
No afago das mãos
No beijo molhado...
O cuidado de nada perder.

Autora: Elizabeth Vargas Marcondes - Londrina/PR

O Coreto da Lua

Suzo Bianco

Reviver aquilo, que nos aconteceu quando nos conhecemos, me traz um misto de nostalgia, melancolia e felicidade, mesmo depois de tantos anos.
Eu caminhava sem rumo por uma passarela de madeira suspensa, desses tipos de caminhos construídos sobre plantas e moitas, no intuito de sentir melhor o bosque sem formar trilhas. Era um lugar lindo e calmo, chamado Por da Lua, uma área grande de mata preservada bem no coração da cidade de Clinzândia, ao norte do Deserto Cinzento, lugar esse que quase ninguém ousava mencionar.
Por da Lua era um parque bastante procurado por todos devido sua essência mágica e qualidade calmante, sob as copas verdes, as pessoas se sentiam mais relaxadas, abrigadas, tranquilas para caminhar e caminhar sem rumo certo, aproveitando a atmosfera entorpecente a qualquer hora do dia.
Bom exemplo desse costume era eu mesmo, que mesmo sob o manto imperioso da noite e da luz fantasmagórica da soberana Lua, andava a passos lentos, fazendo ranger as ripas de madeira, pensando em nada demais, apenas uma sombra ambulante em meio aos focos de luz branca, derramados pelos postes que se dispunham de metros em metros, de cada lado da trilha. Foi quando avistei o Coreto da Lua.
Um lugar aconchegante e fresco, todo branco, muretas bem trabalhadas com ornamentos que, num padrão suave, lembravam folhas de árvores e animais silvestres. O telhado era bem cuidado, a tinta anil das telhas ainda parecia fresca, embora coberta por folhagem seca, plantas rasteiras e trepadeiras. Em seu cume, um cata-vento na forma de uma Lua prateada girava lentamente ao gosto da brisa noturna. E sob o telhado, lá embaixo, bancos curvos, moldados de forma que acompanhassem a curvatura do coreto, convidavam silenciosamente os possíveis transeuntes a algumas horas de meditação ou reflexão. E isso fazia todo sentido, já que, quando ali cheguei, percebi uma jovem de cabelos longos e escuros. Sentada, cabisbaixa, concentrada em um ponto invisível no meio do pequeno salão que o coreto disponibilizava, ela nem sequer notou quando me aproximei. Parecia triste, e associei aquela situação com a do homem que ia embora, por outra abertura, também de ombros caídos, quieto e aparentemente melancólico.
Possivelmente a moça sentia algum recente aperto no peito ou decepção amorosa.
Pensei em abordá-la com um cumprimento reconfortante quando ela de repente me notou, com olhos arregalados, fazendo-me estacar em meu lugar. E ali de pé, vi a jovem espiar mais uma vez o homem, que se distanciava por outra trilha suspensa do bosque, como se não acreditasse no que lhe estava acontecendo. Ela tornou a reparar em mim, como se eu fosse algum tipo de fantasma. Antes que ela pudesse dizer algo, arrisquei:
— Parece triste, posso lhe ajudar?
— Quem é você? – Ela logo perguntou.
— Ninguém, eu estava apenas caminhando quando a vi aqui e... Pareceu-me triste.
— Na verdade não. – Sorriu. – Não estou triste. Estava apenas pensando na loucura que acabou de me acontecer, quando você apareceu. E, sinceramente, isso só me deixou mais confusa ainda.
— Não entendi.
— O homem que acabou de sair daqui.
— O que tem ele, era seu namorado, ou algo assim?
— Não sei o que dizer, não agora, depois que você apareceu.
— Não compreendo.
— Era um senhor, um senhor de meia idade, gentil, mas de olhar tristonho. — Percebendo que eu ainda não a entendia, explicou: - Bem, eu estava aqui, lendo meu querido diário, quando ele apareceu, bem ali. — Apontou para a outra abertura do coreto. — Ficou me olhando como se me conhecesse há anos, olhos cristalizados de lágrimas. Fiquei um tanto desconsertada, assustada até, não sabia o que fazer ou o que falar quando ele me disse: “Sei que deve estar assustada, sei que não me reconhecerá, sei que deve me achar um mendigo louco ou algo assim, ou só um velho carente e esquisito, sei que provavelmente irá ignorar esse encontro daqui algumas horas, sei de tudo isso, mas ainda tenho esperança de realizar meu sonho, de lhe abraçar pela última vez e de me lembrar como eu poderia ter sido feliz, e desperdicei isso...” Então ele chorou abertamente, de maneira tão tocante que me apiedei e o abracei com toda a sinceridade que eu poderia oferecer. Ele então me afastou gentilmente, e disse: “podemos dançar?” Sorri, limpei minhas próprias lágrimas e dançamos por um tempo, como pai e filha que há muito tempo não se viam. Até que nos afastamos. Ele me olhou nos olhos. “Obrigado, e me perdoe, minha querida. Adeus!” – Sorriu a jovem ao lembrar daquilo. – Então ele simplesmente foi embora, quando você chegou.
— Nossa! — Falei, me aproximando. — Que estranho. — Tomei coragem e me sentei ao lado dela. Era linda. – Essa cidade é cheia de gente maluca.
— Tem razão! — Ela concordou, voltando a sorrir.
Nossos olhos brilharam naquele momento; os dela eu pude ver, os meus eu mesmo os senti.
Naquele dia nunca poderia imaginar que aquela jovem se tornaria a minha companheira, amada de uma vida inteira.
Tivemos muitas coisas juntas depois daquilo; alegrias, viagens, lembranças, tristezas e arrependimentos. Eu mesmo, hoje, reconheço o quanto a fiz mal. Pois com o tempo a paixão diminuiu, e isso me distraiu. Tornei-me negligente, arrogante, iludido e idiota. Ela, coitada, acompanhou minha áurea tornando-se tão tola quanto eu. Começamos a brigar demais, a discutir demais, a querer sem merecer demais, até que num dia fatídico, minha tão amada companheira veio a falecer num acidente de balão.
Ela só queria ver a Lua mais de perto, para ver os problemas mais de longe.
Aquilo viria a me recuperar do modo mais doloroso possível. Passei desesperadamente a procurar uma forma de reverter àquela situação, a da morte de alguém que eu não soube aproveitar, amar, enquanto viva.
Procurei tanto que acabei achando.
Uma bruxa, oriunda das cavernas do Deserto Cinzento, ficara sabendo de minha agonia e me propôs um acordo:
— Se o senhor me der sua vida, posso fazer com que você a veja mais uma vez, e assim, além de revê-la, poderá finalmente descansar em paz...
E inundado de tristeza, movido pela dor da perda e do amor perdido, aceitei o acordo.
Fui levado para o passado, e a revi.
Linda, sozinha, minutos antes de me conhecer, sob aquele lindo coreto mágico. O primeiro contato quase me fez gritar de dor e saudade saciada. Mas não podia. Enchi-me de coragem, aproximei-me e lhe disse:
— Sei que deve estar assustada, sei que não me reconhecerá, sei que deve me achar um mendigo louco ou algo assim, ou só um velho carente e esquisito, sei que provavelmente irá ignorar esse encontro daqui algumas horas, sei de tudo isso, mas ainda tenho esperança de realizar meu sonho, de lhe abraçar pela última vez e de me lembrar como eu poderia ter sido feliz e desperdicei isso.
Então desabei abertamente, de maneira tão tocante que me senti uma criança arrependida por ter feito algum mal imperdoável.
Ela me abraçou, com força. Eu a afastei gentilmente, falando:
— Nós podemos dançar?
Ela sorriu, limpou suas próprias lágrimas, e dançamos por um bom tempo, até que nos afastamos. Eu a amava, imensamente, e sem poder me revelar só pude olhá-la nos olhos:
— Obrigado, — Suspirei controlando meus sentimentos que pareciam querer-me afogar. — E me perdoe, minha querida. — Me virei de vez, para evitar novo pranto aberto. Apenas conseguindo murmurar minha última palavra, aquela que há anos não pude ter dito:
— Adeus!
E agora, mesmo prestes a doar minha vida para aquela bruxa, reviver aquilo, que nos aconteceu quando nos conhecemos, me traz um misto de nostalgia, melancolia e felicidade, mesmo depois de tantos anos.

Autor: Suzo Bianco - São Paulo/SP

Livro: Dedos de prosa - Uma homenagem de: Maria Olimpia


Tenho feito bons amigos na internet e as amizades acontecem de formas diferentes. Um dia recebi um e-mail pedindo permissão para publicar um texto meu no blog Gândavos – Os Contadores de Histórias. Foi assim que conheci Carlos Lopes. O pedido se repetiu e outra autorização para ser publicado foi dada. Depois ele me disse que estava publicando um livro e queria permissão para publicar no livro comentários meus aos seus textos. Permissão concedida. Semana passada o livro chegou como um presente e eu fiquei encantada com a qualidade: edição e texto.


Dedos de Prosa é o nome do livro. De conto em conto Carlos Alberto dos Santos Lopes desfia seus contos, como se os contasse nos dedos, das mãos e dos pés. Ou só das mãos, indo e vindo. São histórias que viveu e que refletem sua formação moral e cultural. E que mostram, em cada página, a pessoa que é: Um amigo generoso capaz de repartir o que tem de bom com todos.

O livro ficou bonito.Seus amigos compartilhando. Ali está a orelha escrita pelo carioca Gilberto Dantas. O fluminense Nêodo Ambrósio de Castro, escreve a contra capa. Na introdução, Carlos afirma ser um sujeito de sorte por ter recebido colaborações de amigos das mais diferentes partes do país. E relaciona todos.

Edmar Sales é o responsável pelas ilustrações, muito bonitas por sinal. Cada conto é precedido de uma ilustração, emoldurada em preto. Nas costas de cada ilustração, nossos comentários, em branco sobre preto. E aí vem os contos, todos ilustrados com a mesma figura colorida da capa, agora em preto e branco. Eu digo – surpreendeu-me pela beleza.

Gosto de ler contos e crônicas porque posso ler um, parar e deixar o resto para depois – mas contei todos os dedos dessa prosa saborosa em uma única noite.

Um dos comentários que fiz foi sobre o conto A esposa virgem. Escrevi:”Comecei a ler o conto, bem escrito, de fácil leitura e fui pensando – simplesinho, onde estará o choque? Porque conto tem que ter esse elemento, o que nos surpreende e muda todo o roteiro para onde estávamos sendo conduzido. E ele veio antes do que eu esperava. A reviravolta, onde tudo o que parecia ser deixou de ser. Era outra coisa, muito diferente e surpreendente.A simplicidade com que a história está sendo contada é mais um elemento perturbador. O próprio Maquiavel não faria melhor. Uma história boa de ler do princípio ao fim. Traz a marca da boa literatura”.

Presto aqui minha homenagem a esse escritor e homem de cultura pernambucano que espero breve conhecer pessoalmente. É que Recife é um dos meus destinos favoritos. Parabéns Carlos e obrigada por sua amizade e confiança.


Autora: Maria Olimpia Alves de Melo - Lavras/MG

http://marilim.net/
http://vidasetechaves.wordpress.com/


http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=27042

Publicação autorizada pela autora


Entrevista: Alice Gomes

Alice Gomes 

¨Há quem acredite existir uma diferença entre escrever e ser escritor, porém se alguém tem ideias originais para criar boas histórias, se elas têm o potencial de despertar o interesse das pessoas; o autor desenvolveu a habilidade de prender o leitor em sua narrativa, da primeira palavra até o ponto final. Assim sendo, com certeza é um bom escritor! As palavras são um grande instrumento transmissor de ideias e pensamentos, com poderes de transformar o mundo em um lugar melhor e mais bonito".
A escritora Alice Gomes nasceu em Arapongas, no Paraná, residente em Porto Velho, Rondônia. Como a própria se define: Contabilista por profissão (aposentada), além de alguns trabalhos em outras áreas, e poeta por predestinação. Uma filha, três netas. Muito trabalho, pouca renda. Que já conheceu intimamente o lado mais doce e o mais vil do ser humano. Enfim, uma vida pessoal medíocre como a maioria dos brasileiros.

1-             Quando e como surgiu seu interesse pela leitura e escrita?
Alice Fomes - O interesse pela leitura foi através dos gibizinhos do Tio Patinhas, bem antes da escola. Pela escrita, na adolescência, quando percebi a possibilidade de ter um mundo só meu.
2-             Quais foram seus livros preferidos quando era criança e os livros favoritos atualmente?
Alice Gomes - Meu primeiro livro foi A Casa dos Sonhos, que ganhei aos sete anos da minha professora, por bom comportamento na sala de aula. A partir daí, todos os que pude ler na Biblioteca, aleatoriamente.  Na minha casa não havia livros e ninguém, exceto uma das minhas irmãs, me incentivou a ler e muito menos a escrever.  Sou um ponto fora da curva. Por ler de tudo um pouco aprendi sozinha a depurar o meu gosto literário. Hoje prefiro os autores portugueses. Apenas para citar um, gosto muito do Saramago.
3 - Quais escritores são suas fontes de inspiração?
Alce Gomes - Nenhum, em particular.
4 - De que forma o conhecimento adquirido, seja pelo senso comum, ou pelo meio acadêmico,  ajuda na hora de escrever?
Alice Gomes - Não falo de outra coisa que não venha do conhecimento empírico. Coisas que vivi ou vi, seja em prosa ou verso, sejam reais ou metafóricos. Eu penso que a vida é um constante aprendizado, venha de onde vier a teoria será sempre o nosso olhar quem estará em nossas palavras.
5- Segundo o escritor Rubem Fonseca, “a leitura, a palavra oral é extremamente polissêmica. Cada leitor lê de uma maneira diferente. Então cada um de nós recria o que está lendo, esta é a vantagem da leitura". É isso mesmo? Concorda com essa proposição?
Alice Gomes - Concordo, em parte. Como leitora eu busco sempre me aproximar ao máximo do que o autor quis, efetivamente, dizer. É claro que, à primeira leitura, buscamos sempre o nosso reflexo, baseados em nossas experiências, mas já aprendi a me policiar para não incorrer no mesmo erro que não gostaria de ver em relação aos meus escritos. Mas, Quintana já dizia que o autor pensa uma coisa, escreve outra e o leitor entende uma terceira...  O importante é conseguirem se comunicar de alguma forma  autor e leitor.
6- Ainda segundo o Escritor Rubem Fonseca: “um escritor tem de ser louco, alfabetizado, imaginativo, motivado e paciente.” É o suficiente para ser um bom escritor?
Alice Gomes - Sobretudo paciente, o que não sou mas deveria... rsrs Faltou aí a verdade. Dificilmente me interesso em conhecer mais textos de um autor quando  não senti  a sua verdade. Não que eu não goste dos loucos, eruditos, imaginativos e motivados, porém, já admirei textos que de loucos não tinham nada, já obtive grandes ensinamentos em textos coalhados de erros gramaticais, já chorei em textos absolutamente concretos, já senti empatia por linhas desconexas  de autores completamente desmotivados, mas, não contendo a sua verdade, serão meras palavras.
7 - Para qual público se destina sua criação?    
Alice Gomes - Para os meus iguais, quando e onde estiverem.
8 - Como funciona o seu processo de criação? Quais sãos suas manias (ritual da escrita)?
Alice Gomes - Não tenho processo, talvez por isso não escreva tanto quanto gostaria. Como já disse só escrevo o que me vem à cabeça e nem sempre o que me vem à cabeça pode ser escrito naquele momento, depois esqueço. As minhas maiores criações ainda nem comecei a escrever, justamente pela indisciplina . Não sei se posso classificar como mania, mas gosto de escrever ouvindo música, tv, e com duas ou três abas abertas no computador, tudo ao mesmo tempo.
9 - Em geral, os seus personagens são baseados em pessoas que você conhece, ou são ficcionais?
Alice Gomes - As minhas personagens são todas eu, inclusive as que eu nem conheço...rsrs
10- Você tem outra atividade, além de escrever?
Alice Gomes - Financeira, atualmente não. A minha atividade primordial é observar o mundo, escrevo só nos momentos em que me canso dele.
11 - Você faz parte das Coletâneas Gandavos. Qual a sensação de participar ao lado de escritores de várias regiões do país?
Alice Gomes - É uma grande oportunidade de aprender com outras culturas. Repito o que disse no prefácio do Encantadores de Histórias: Gandavos é um pequeno grande barco, do qual somos todos marinheiros, saídos um de cada porto do Brasil, com nossas  bagagens de vida, nossas experiências e influências, e  que ao final de cada viagem convergimos para o mesmo cais, trazendo na mala o sentimento de parceria, que somente quem compartilha sabe o valor que isso tem.
12 - O financiamento coletivo e a publicação independente têm se mostrado a opção das publicações Gandavos.  Quais são os pontos positivos e negativos desse tipo de publicação?
Alice Gomes - O ponto positivo é o baixo custo da nossa vaidade de ver publicado um texto ou dois em cada livro, já que individualmente é muito oneroso. O negativo (para mim) é o constrangimento de ter que votar e ser votado durante a fase de amostragem dos textos. 
13 – Você já fez publicação de livros sozinho, seja impresso ou virtual? Quais e como o leitor pode adquiri-los?
Alice Gomes - Eu tenho um e-book com alguns poemas, “A umas que sou nas almas que fui”, disponível para download gratuito no site Recanto das Letras, presente da minha amiga e editora Helena Frenzel.
14 - Qual mensagem você deixaria para autores iniciantes, com base em suas próprias experiências.
Alice Gomes - Escreva, sem receio. Aprenda com os seus erros, invente outros. Seja você mesmo, o mundo anda cheio de cópias. Mostre-se mas não se venda. E lembre-se: raros escritores são lidos enquanto vivos.

Aos olhos do observador - Autora: Ana Bailune

Dois amigos passeavam pelo jardim da casa de um deles - mais favorecido pelas posses. Este último tinha convidado o primeiro para visitá-lo, pois sentia-se vazio e infeliz, e necessitava de alguém com quem conversar. Vamos chamá-los de Zé (o mais feliz) e Chico (o infeliz).

Enquanto Zé caminhava pelo jardim, reparava na beleza das árvores: seu amigo tinha plantadas várias fruteiras: goiabeiras, pitangueiras, limoeiros, laranjeiras, jabuticabeiras, pessegueiros e ameixeiras, onde pousavam passarinhos de todas as cores, cantando felizes. Algumas frutas maduras tinham caído no chão e permaneciam sob as copas das árvores, e alguns esquilos alimentavam-se delas. Logo, Chico reclamou:

"Não sei mais o que faço para acabar com esses pássaros malditos! Comem todas as frutas!"

O amigo Zé percebeu, mas ficou calado, que se não fossem pelos pássaros, as frutas apenas apodreceriam nas fruteiras, pois o amigo não as colheria jamais.

Passaram por um lindo córrego, pequeno, mas que dava ao jardim um ar de beleza e frescor, além de emitir um ruído reconfortante. Zé achou aquilo maravilhoso, mas Chico observou com amargura:

"Estou pensando em mandar aterrar este riacho. O barulho me incomoda durante a noite."

Enquanto caminhavam, eram seguidos de perto por Bibo, o cão vira-latas de Chico. O animalzinho cheirava as moitas, corria, brincava e pulava; de vez em quando, trazia um galho seco, que Chico jogava para ele, que saía correndo e latindo atrás do galho, trazendo-no de volta para que Chico o jogasse novamente. De repente, Chico bradou com impaciência:

"Sai daqui, animal estúpido! Deixe-me em paz!"

O animalzinho assustou-se, e saiu correndo com a cauda entre as pernas, indo esconder-se sob uma moita. Penalizado, Zé entendeu que provávelmente, Bibo estava acostumado àquele tipo de tratamento, pois parou de seguí-los.

Finalmente, o passeio terminou na varanda, onde havia uma rede, duas cadeiras confortáveis e uma jarra de refresco de frutas esperando por eles em uma mesinha. Após servir-se de um copo, Zé falou:

"Você tem um belo espaço aqui, Chico! Uma beleza só... árvores de frutas, flores, passarinhos, um cão... e até um riacho! Luxo só!...

Suspirando fundo, Chico respondeu:

"Quer saber? Comprei este espaço para fugir da vida agitada da cidade grande, onde não aguentava mais viver. Tanta poluição e barulho, competição... mas acho que me decepcionei, não consigo ser feliz aqui, assim como não era feliz por lá. Minha mulher finalmente me deixou, levando os meninos, e fico aqui sozinho o tempo todo."

Desejando animar o amigo, mas sabendo que qualquer coisa que dissesse poderia ser inútil, Zé pensou bem antes de falar. Depois, tomando um gole de suco e olhando em volta, para a beleza do lugar, ele disse:

"Amigo, me desculpe, mas se você não é feliz aqui, não será em lugar nenhum! Olhe só em volta, tanta beleza e riqueza... sabe, eu acho que o que lhe falta, é deitar naquela rede ali, que está balançando sozinha pelo vento desde que cheguei... e de lá, observar o que você tem, e dar mais valor, ser mais grato por tudo. E ter paciência com as pessoas, pois você sempre foi tão 'estourado,' que acabou afastando todo mundo."

Chico olhou para o amigo, pensando no quanto aquelas palavras eram simplórias... só mesmo o Zé para ter um pensamento tão bobo! Mesmo assim, sabia que ele estava tentando ajudar. Para agradá-lo, foi até a rede e deitou-se - algo que nunca tinha feito antes. E não é que a paisagem de lá era mesmo bonita?

De mansinho, Bibo foi se aproximando, e deitou sob a rede. O dono começou a acariciá-lo. O 'barulho' do rio tornou-se bem mais agradável, até que virou um ruído relaxante e delicioso. Dali ele podia enxergar os passarinhos, e começou uma conversa com o amigo, na qual ambos, lembrando os tempos de infância em que brincavam perto de uma mata, começaram a identificar algumas espécies.

No final da tarde, Chico estava com as mãos sujas de terra - passaram algumas horas capinando canteiros e replantando mudas de flores - suado, e sentindo-se revigorado pelo trabalho. Além de tudo, sentia por dentro uma sensação que nunca tivera: a felicidade.


Descobriu-a dentro dele, ao deitar-se naquela rede.

Autora: Anabailune - Petrópolis/RJ


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Publicação aurorizada pela autora em 29/07/2012

quinta-feira, 8 de março de 2018

Sarau de verão


Alberto Vasconcelos

Quando mudei para a Rua Conselheiro Theodoro, no bairro do Zumbi, na época, afastado do centro do Recife, existiam apenas cinco casas separadas por terrenos vazios, onde mais tarde seriam feitas construções bem mais modernas.
A minha casa, como as demais, eram construções antigas, talvez dos primeiros anos do século XX e uma delas estava praticamente em ruínas, com o reboco destacado em várias partes. Duas das janelas laterais, com a madeira carcomida pelas intempéries e pelos cupins, balançavam ao sabor do vento presas pelas dobradiças enferrujadas num desafio constante à lei da gravidade.
Minha casa era enorme, principalmente porque, sendo solteiro e morando sozinho, só ocupava três dos muitos cômodos.
Raramente eu via os vizinhos. Também passava bem pouco tempo em casa porque, como vendedor viajante, chegava a passar mais de mês fora de casa.
Certa vez, voltando de uma dessas viagens, foi que aconteceu o caso que, ainda hoje, me dá arrepios quando lembro.
Passava das dez da noite daquela sexta-feira 23 de março. As chuvas pareciam estar com pena de se despedir do verão.
Chovia a cântaros.
Os trovões eram de ensurdecer e os raios rasgavam as nuvens densas na noite escura. Todas as casas fechadas, ninguém pelas ruas.
Apenas na casa em frente à minha, aquela que antes esteve em ruínas, havia festa.
Pensei comigo: finalmente apareceu alguém para cuidar da casa bonita, mas tão mal tratada.
Alguém tocava piano acompanhado por flauta. Modinhas antigas e alegres. O som do piano contrastava com o ruído dos trovões que não chegava a perturbar os participantes da festa. Gente alegre, bonita e muito bem vestida.
Entrei em casa, troquei a roupa molhada pela chuva e deitado, com a janela do quarto aberta, fiquei me deliciando com aquela música maravilhosa.
De repente, gritos de desespero.
Vozes acaloradas.
Levantei-me a tempo de ver as pessoas correndo pela rua e desaparecendo na bruma.
Fechei a janela e custei muito a conciliar o sono, dando tratos à bola para imaginar o que teria acontecido.
Na manhã seguinte levantei-me com o firme propósito de me inteirar do acontecido, porque a casa do outro lado da rua, estranhamente, permanecia com o mesmo aspecto de abandono.
Na calçada, procurei me informar com a vizinha idosa que estava observando o cachorro que ela soltara para dar uma voltinha. Ela me disse:
Eu era menina quando aconteceu a tragédia dessa casa. Aí morava uma família muito feliz e festeira. Pai, mãe e filha tocavam instrumentos e num dia 23 de março, o noivo da moça, com uma crise de ciúmes, matou o pianista amigo da família que ele julgava ser amante da sua noiva. Quando se viu acuado, matou também a noiva e os pais dela, a golpes de machado.
Depois de preso foi encontrado morto, pendurado pelo cinto, na grade da delegacia. Desde essa época que a casa ficou abandonada e mal assombrada.
Todo ano, na noite do último dia do verão, as almas penadas dos mortos revivem aqueles momentos de horror.

Autor: Alberto Vasconcelos - Santo André/SP

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Califórnia

Escritora:Ana Bailune

Pisava no chão seco e farinhento da vila de Córrego Seco desde que nascera. Nome mais apropriado para um lugar, não existia. Tudo era tão seco, que até mesmo o carcará tornara-se pássaro raro. Somente os que, como Joana, não tinham outra alternativa, continuavam vivendo ali. Ela não conhecia outra vida, tendo gasto em seu caminhar, muitas solas de chinelo. De sol a sol, de solo a solo, de cacto a cacto. Sua magreza alongava-se ainda mais na sombra projetada no chão pelo sol escaldante. No alto da cabeça, carregava uma lata d’água barrenta que tinha ido buscar a dois quilômetros da sua casa. Passava pelas ruínas da velha igreja sem notar, como quem passa por uma fé que deixara de existir.
Tinha apenas vinte anos de idade, mas aparentava quarenta. Em fila, seguiam-lhe seus três meninos, aonde quer que ela fosse. O pai? Partira para a cidade grande em busca de uma vida melhor, deixando apenas uma promessa: “Um dia, eu mando buscar ocês.” Nunca mais voltou. Nunca mais deu notícias. Também, que notícia poderia chegar àquela lugar esquecido por Deus?
Joana nem sentia saudades do marido. Tinha antes muitas outras coisas a sentir: fome, sede, cansaço, desesperança, e um medo que crispava-lhe o estômago: o de ver morrerem seus filhos. Todos os dias, chegavam-lhe histórias de crianças que morriam. Às vezes, passava um cortejo na porta de casa, um pequeno bando de gente maltrapilha carregando um pequeno caixão.
Certa manhã, antes mesmo de clarear, Joana acordou com um sobressalto: tivera um sonho ruim. Vira um de seus meninos dentro de um caixão. No sonho, estava em uma sala vazia e escura, onde, bem no meio, havia um caixão cercado de velas. Ela foi se aproximando devagar, com medo do que fosse ver, enquanto ouvia uma risada sardônica atrás de si. Sentiu um arrepio na nuca, e quando chegou bem perto, levou à mão ao peito e olhou: lá estava seu mais velho!
Joana levantou-se correndo, e foi olhar seus meninos, e ao ver que dormiam pesadamente na esteira de palha, deu um suspiro de alívio; ainda não era naquele dia!
 Na noite seguinte, teve o mesmo sonho. A única diferença, é que o menino no caixão era o seu do meio. E na terceira noite, o sonho repetiu-se, mas era o seu mais novinho que estava morto. Joana achou que aquilo era um sinal; tinha que sair dali! Precisava ir embora, pois beber água barrenta e comer farinha com lagarto cozido não era vida para menino. Mas ir embora para onde, meu Deus? Não tinha nada, não sabia ler, mal sabia falar direito... e enquanto cismava, andando de um lado para o outro debaixo do sol, à porta de seu casebre, enquanto os meninos comiam feijão com farinha, veio de repente uma ventania; e com a ventania, uma folha de papel, uma página de revista que grudou no seu rosto.
Surpresa, Joana pegou o pedaço de papel e olhou: era uma fotografia, uma imagem de um lugar onde havia um jardim verde e exuberante, cheio de flores coloridas, junto a um rio azul enorme de lindo. Havia também muitas pessoas felizes, e em uma fotografia menor, mesas com toalhas brancas cheias de pratos de comidas que ela nunca tinha provado, e um sorridente homem de branco que era tão bonito, que só podia ser um anjo de Deus!  Ela nunca tinha visto tanto verde na vida, nem mesmo na época da chuva! Notou as letras sob a foto, e achou que elas deveriam dizer o nome do lugar na fotografia; decidiu que fosse aonde fosse, era para lá que ela iria! Como? Isto não importava; sentiu sua fé renascer, e da mesma forma que Deus lhe mandara a resposta, também havia de levá-la até o lugar.
Foi até a casa do ‘seu Tinoco’, o único por ali que sabia ler, e entregou-lhe a fotografia. O velho olhou-a, e após seguir as letras com o dedo, devolveu-lhe o papel, dizendo: “Esquece, filha. É longe. Ocês nunca vão chegar lá!” Mas Joana insistiu: “Me diz o nome do lugar, me diz onde é, ‘seu’ Tinoco. O resto, é com nós!” O velho balançou a cabeça, e disse com enfado: “Califórnia. É esse o nome.” Joana nem perguntou mais nada: voltou para casa, e juntando as poucas coisas que tinham, mostrou a fotografia e anunciou aos meninos, que se entreolharam, animados com a sua primeira aventura: “Se apronta, porque nós vai pra Califórnia.” E partiram naquela mesma manhã. Joana nem se deu ao trabalho de fechar a casa. No chão, o vento derrubou a única fotografia amarelada que o marido lhe deixara. ‘Seu’ Tinoco, da porta de seu casebre, viu-a partir em direção ao deserto, seguida pelas três crianças, carregando uma grande trouxa de roupa na cabeça. Ele apertou os olhos, enquanto a imagem dos quatro desaparecia, serpenteando com o calor que brotava do solo.
Meses depois, um homem caminha pelo chão árido de Córrego Seco, dirigindo-se à casa. Traz uma pequena mala de viagem, e muitas saudades e lembranças. Está feliz, pois conseguira arranjar trabalho de jardineiro na casa de um senhor muito poderoso e tão bondoso quanto rico, lá na cidade, no sul do país. Logo que conseguiu o emprego – depois de morar nas ruas,  trabalhar em muitos canteiros de obra, sem carteira assinada e receber um salário abaixo do mínimo, passar muita necessidade e até mesmo fome, João - o marido de Joana- finalmente conseguira fugir do lugar onde era mantido como trabalhador escravo. Em sua fuga, acabou indo bater à porta de seu benfeitor, que vendo seu estado emocional lastimável e seu perigoso nível de desnutrição, decidiu acolhê-lo, cuidar de sua saúde e oferecer-lhe trabalho em sua casa.
Assim que ficou sabendo de sua história, deu-lhe dinheiro e mandou que fosse buscar sua família, em Córrego Seco. As crianças iriam frequentar uma escola, e sua Joana poderia ajudar nos serviços de casa.
Mas quando João chegou, não viu sinal de seus filhos e de sua Joana. ‘Seu’ Tinoco deu-lhe as notícias: “Eles foram embora. Pra Califórnia.” Agoniado, João indagou: “Mas... quando?” Seu Tinoco, montando um cigarro de palha, respondeu: “Faz uns mês... foram naquela direção!” 
Ao ver que ‘seu’ Tinoco apontava a direção do deserto, João sentiu seu coração encher-se de agonia.
Voltou para o casebre. Deitou-se na esteira de palha semicoberta pela areia, e chorou, desejando do fundo de seu coração, que sua mulher e seus filhos tivessem conseguido alcançar a Califórnia.

Autora: Ana Bailune - Petrópolis/RJ
Texto vencedor do Primeiro Concurso do Blog Gandavos

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Os últimos


Escritor: Augusto Sampaio Angelim

Somente os dois moravam naquele lugarejo abandonado.
A pequena vila que, há trinta anos atrás era ponto de parada para viajantes que se dirigiam a São Paulo, e chegara a ter mais de cem almas, hoje era um lugar fantasma. Outrora, além das casas, havia até um posto de gasolina e uma pousada que abrigava uns poucos viajantes. À beira daquela enorme estrada reta de terra batida, de quase cem quilômetros sem curvas, o que restou de seu casario sequer dava para ser avistado de longe.
Desde os tempos de Juscelino que se falava no asfaltamento da rodagem. Pavimentaram outras rodovias e aquela foi ficando na poeira. O asfalto não veio e nem as outras coisas do progresso. Então, o povo se foi. Os poucos moradores, foram embora. Primeiro os mais novos. Depois, os mais velhos. Ao final, todos.
Sina de quem nasce na beira da estrada é ir embora.
As casas, a maioria umas taperas, não resistiram ao tempo e foram ruindo. Da capela, onde se rezava uma missa por ano, nem mais um sinal. Escola, nunca teve. O casario abandonado serve de abrigo aos bodes e algumas ovelhas. Alguns forasteiros, vendo esse cenário de abandono, se benzem. Outros param e fotografam a calmaria, como se, por um instante, quisessem adivinhar seus mistérios e, depois, continuam seus destinos ignorados. Os que são das redondezas, se consternam com a desolação, quando passam a caminho das cidades da vizinhança.

Mas eles ficaram.
Restaram apenas os dois.
Eram os últimos.
O casal tinha umas vaquinhas e outras criações. Um pasto até grande, onde podiam soltar os bichos à vontade. Tiravam o sustento das criações e do plantio de milho e feijão. Não podiam ir embora. Até planejaram isso no passado, mas os dias foram passando e não conseguiram arredar os pés dali.
Possuíam cavalo, mas, agora, quando iam à feira, montavam uma motocicleta. Novos tempos. Uma moto velha, com cinco ou seis anos de matrícula atrasada. Tinha uma placa apenas por enfeite, mas ninguém se importava de abordar os dois.
A mulher ainda guardava traços da beleza de antigamente.
Rosa.
Rosa Maria da Felicidade de Jesus. Este era o seu piedoso nome. Promessa da mãe dela.
Ele, João Ferreira, ainda era aparentado de Lampião, pois sua família vinha das bandas de Serra Talhada.
Chegara ali moleque novo, com os pais.
Os velhos morreram, os irmãos se mandaram.
Até o início dos anos oitenta ainda teve notícias de Tonho e de Miro, que foram para São Paulo.
Vandinho morreu menino, assim como Maria Aparecida.
Das Dores, fugiu com um malabarista de um circo. Essa entrou cedo, na “lata do mundo”.
Nunciada arrumou marido para as bandas do Pajeú, até virou professora. Tirou a sorte grande.
Um caminhoneiro de Ibimirim disse que tinha encontrado Tonho, em São Paulo, numa feira nordestina, há uns dois anos.
Ele e Rosa se conheceram na festa da padroeira do Moxotó. Morena bonita de sorriso desconfiado, mas que, logo, caiu nas suas graças. Além disso, era mulher direita. Nem precisa dizer que era virgem. Até sabia ler e escrever, coisa que ele nunca aprendeu, por falta de oportunidade.
A desgraça é que nunca tiveram filhos.
Um menino sequer.
Poderia até ser uma menina, mas Deus não quis, como costumava dizer a mulher. Fizeram várias tentativas para ela engravidar.
Foram aos médicos de Arcoverde, Garanhuns, Paulo Afonso e até Recife, quando eram um casal ainda jovem. Tomaram chás receitados pelos mais velhos, mas nada. Entraram e passaram os anos e nenhum menino para trazer alegria para casa e depois ajudar na lida do campo. Nos últimos anos Rosa se queixava dos incômodos no estômago, todos os dias. Na “boca do estômago”. Também todas as noites. “Nada não, passa logo”, dizia ela. Não passou. Numa dessas noites, teve febre muita alta. Delirou, chamando meninos que ela nunca pariu. Chamava por Joãozinho, Maria, Verônica, Gregório. Nomes que haviam planejado para os filhos que nunca tiveram.
“Joãozinho, você vai cair dessa cerca, minino!”;
“Grigório, vá pegar o leite!”;
“Maria, mexe o feijão!”
“Verônica, arruma os cabelos, muié!”. 
 

A mulher não dizia coisa-com-coisa. Ficou preocupado e, quando amanheceu o dia, foi até a casa de Seu Domingos e fez trato para levarem a mulher para o hospital de Arcoverde. Não teve jeito, morreu dois dias depois, sem dizer mais nada. O doutor disse que tinha sido aquela doença miserável, cujo nome cristão humilde tem medo de pronunciar. O enterro foi na cidade, pouca gente. Os parentes quase todos tinham se mudado para outros lugares e o casal vivia recluso.

Agora era ele o único morador do lugar.
Não tinha mais ninguém além dele.
Acocorado debaixo de uma baraúna velha, às margens da estrada, de alpercatas, calças dobradas no meio da perna, chapéu e um pedaço de pau na boca, como se fosse um palito de dentes, riscava o chão com um graveto. Não fazia planos. Não tinha plano nenhum. Apenas pensava nessas coisas e em Rosa.

Olhou para o céu e viu que a noite ia chegando de mansinho. Duas lágrimas escorreram de seus olhos. Limpou o rosto com a mão rude, deu um pigarro e levantou-se decidido: já era hora de recolher o gadinho para o curral e cuidar dos outros bichos.
A noite já tinha tomado conta do mundo.

Autor: Augusto Sampaio Angelim - São Bento do Una/PE
Publicação autorizada pelo autor através de e-mail de 19/10/2011.