Bugre era um cão amarelo, do cruzamento de um vira
lata com uma raça nobre. Seu dono o Nonato, homem de posse, proprietário de
muitas terras, engenho, canaviais, e lavouras de café, possuía muitos escravos.
De consciência apurada e bondosa tratava seus cativos com todo respeito e
tornou-se famoso pela sua generosidade. Em sua fazenda a comida era farta, não
havia discriminação entre libertos e escravos. A cada ano seu patrimônio
crescia e sua fama também. Enquanto outros fracassavam tendo os bens leiloados,
Nonato enriquecia cada vez mais.
Vico um escravo já maduro era seu conselheiro e fora
criado pelo pai de Nonato, que o deixou de herança ao filho. Muito calmo e
religioso era o escudeiro espiritual do seu amo sinhozinho, como o chamava
carinhosamente. Observador e dedicado era responsável pela grande horta, cuja
produção era consumida na fazenda. Nonato o tratava de forma tão carinhosa, que
nem parecia que ele era seu escravo.
Ao participar da abertura de uma feira na cidade
ganhou de um amigo um cãozinho. Ao regressar o entregou para Vico, recomendando
sua educação e afirmando que o seu nome seria Bugre. Obedecendo, o escravo
levou o cão para a senzala e começou a educá-lo. Dormia a seus pés e em pouco
tempo se tornou um guardião de verdade. Percebendo o grau de inteligência do
animal, o escravo começou a educá-lo, com o objetivo de fazer dele um guarda
costas para seu amo sinhozinho. Não tardou e à distância, conforme recomendação
de Vico, Bugre mantinha uma vigilância acirrada ao Nonato, sem perdê-lo de vista
um só instante.
Certo dia enquanto calçava as botas jogadas num
canto da sala, Bugre avançou em sua mão, abocanhou a bota atirando-a ao longe. Nervoso
ele exclamou: - oh cão dos diabos, eu lá tenho tempo para brincadeira, seu
imbecil? Ao apanhar a bota, percebeu assustado que saía de dentro dela uma
serpente das mais venenosas. Encantado com o fato ocorrido, Nonato levou o cão
até Vico e agradeceu acariciando os dois.
Nas viagens de Nonato à cidade, Bugre o acompanhava
até a estação ferroviária a quatro quilômetros da sede da fazenda, trazendo de
volta à fazenda, a montaria dele e também em seu regresso, a mando de Vico, lá
ia Bugre levando a montaria ao sinhô.
A cada dia Nonato mais e mais se afeiçoava à sua
dupla de amigos, o cão e escravo. Certo dia acompanhando-o até a estação, o cão
quis impedir seu embarque puxando-o pela barra da calça. Lembrando do episodio
de sua bota, Nonato desistiu da viagem. No dia seguinte recebeu noticia do
descarrilamento de alguns vagões, com mortes e diversos feridos no acidente.
Agradecido condecorou o Bugre com uma bela coleira prateada.
Havia na fazenda uma colina, era o ponto mais alto,
proporcionando uma bela visão. Nela uma capela construída por Nonato, junto a
um cemitério. Ali eram sepultados os escravos e alguns falecidos nos derredores
das fazendas vizinhas. Local de oração aonde, de tempos em tempos, acontecia
celebrações pelos missionários evangelizadores que por lá passavam. Muito
aconchegante o local, de onde se tinha uma nítida visão de toda a propriedade e
que sempre inspirava muita paz e tranqüilidade.
Nonato efetuou um grande negócio na venda de sua
produção, cuja safra fora muito rentável. Como de costume viajou até a estação,
acompanhado pelo cão que retornaria à fazenda com sua montaria e na viagem de regresso,
Bugre estava lá à sua espera com a montaria. Nonato o encontrou muito triste,
abatido, de olhar tristonho, sem brilho, nem se manifestou ao receber seu amo.
Com sua guaiaca abarrotada de dinheiro, não percebeu
que estava sendo seguido por um salteador, que o acompanhara desde a cidade. Na
fazenda Vico notou algo de errado com cão, que apenas choramingava quando
acariciado por ele. No dia seguinte
estranhando a ausência do animal, o escravo dirigiu-se à casa, encontrou lá seu
amo e a esposa amarrados e amordaçados. Libertos, mas muito assustado, o casal
louvou a Deus por estarem ambos vivos.
Procuraram por Bugre e não o encontraram. Reunidos,
todos os escravos partiram em sua busca. Dispersaram-se por diversas direções,
mas não obtiveram sucesso. Ao cair da noite voltaram à fazenda - recomeçariam
na manhã seguinte. Olhando na direção da ferrovia Vico avistou algo estranho
vindo na direção do grupo. Embora o crepúsculo lhe obstruísse a visão,
reconheceu o cão se arrastando. Encontraram-no de patas traseiras desgovernadas
e trazendo na boca a guaiaca que fora roubada pelo bandido. Levaram-no para a
sede da fazenda. Febril e quase sem movimentos, ele olhou tristemente para seus
dois amigos e lacrimejando faleceu.
No dia seguinte Nonato mandou abrir uma sepultura
bem à frente da capela e o sepultaram. Em seguida o fazendeiro fez um belo
discurso alusivo ao procedimento do cão, atribuindo sua tristeza do dia
anterior a uma premonição da tragédia ocorrida.
Vico plantou flores em sua cova e as regava todas as tardes. Certo dia ao
descer da colina, após irrigar as flores, ele avistou um número de urubus
sobrevoando a marginal da linha férrea e foi averiguar. Debaixo de uma enorme
gameleira, encontrou o bandido em adiantado estado de putrefação, de olhos perfurados
pelos abutres, com um revólver preso nos nervos que restaram de sua mão
direita, vestígios da luta travada entre ele e Bugre.
Assim findou a história de um cão vidente, que a ele
só faltavam palavras, mas que dizia tudo através dos seus gestos.
Vico sempre confortava Nonato, dizendo-lhe que do
alto da colina Bugre mantinha seu olhar vigilante sobre a fazenda, cujo local
lhe era propício, pois se tratava do ponto mais alto das redondezas.
Não tardou e todos os escravos começaram a comentar
sobre uma luz na porta da capelinha, dizendo que eram os olhos vigilantes do
Bugre, sobre a propriedade. Nonato resolveu averiguar e constatou que era uma
grande pedra branca, uma forma de cristal de rocha, que Vico colocara na cova
do Bugre. Ao incidir os raios tanto do sol como do luar, a luz era refletida.
Nonato preferiu aderir à ideia, respeitando a
crendice de seus escravos, afirmando que aquela luz era mesmo dos olhos
vigilantes do cão. Mais tarde todos os moradores das regiões circunvizinhas
tinham conhecimento da lenda e a consideravam verídica e milagrosa. Até os
transeuntes da linha férrea poderiam vislumbrá-la sob sol, ou sob a morteira
luz das noites enluaradas. E assim a colina se tornou famosa e conhecida pelo
nome de: “OS OLHOS DO BUGRE”
Geraldinho do Engenho - Bom
Despacho/MG
Publicação autorizada pelo autor
Um comentário:
Adorei a crônica, pois eu amo animais! E eles tem sim, um sexto sentido! Por exemplo, a casa onde moro, foi meu cão que encontrou; um dia, passeando com ele, ele cismou em arrastar-me ladeira acima para uma rua sem-saída, onde eu nunca tinha ido, parando bem em frente ao portão da casa onde eu hoje moro. Coincidência? Não creio.
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