terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Duas irmãs: uma azeda e uma doce - Autora: Meire Boni

Totõe entrou na puberdade precocemente.  De uma hora para outra mudou suas prioridades. Enquanto todos os garotos de sua idade corriam atrás de carrinhos feitos de loba¹, ele corria atrás de rabo de saia.  Sua mãe achava que era cedo demais para ele invocar com mulher, mas o pai puxava um saco danado de seu único filho homem. Além de apoiá-lo, dava umas diquinhas. Não era segredo para ninguém que Seu Bento, de bento só tinha o nome, pois eram muitas as histórias dele “bulinando” quanto tinha a idade do filho. As más línguas diziam que até hoje ele dava lá suas escapadinhas, que só não eram de grande proporção, por causa de Dona Luzia, que era muito centrada e trazia o marido a rédeas curtas.
 
Seu Bento era vizinho de fazenda de Seu Joaquim. Os dois estavam entre os mais ricos da região, eram amigos, mas muito diferentes um do outro. Seu Bento era um homem de paz, tratava bem os empregados, a família. Enquanto o vizinho administrava a família e a fazenda com mãos de ferro. Na sua fazenda tinha até jagunço e muitos de seus desafetos sumiram de uma hora para outra. Todo mundo sabia, mas ninguém falava. Nem Seu Bento, que era amigo, comentava esses assuntos. Seu Joaquim tinha três filhos, duas meninas e um menino. As meninas tinham ido para a cidade estudar, moravam com a avó, só vinham para casa nas férias de final de ano. O menino Quinzinho estava sendo criado para continuar o legado do pai.
 
Totõe era muito amigo do filho de Seu Joaquim. Brincavam dizendo que iam trocar as irmãs. Um ia casar com a irmã do outro. Nas últimas férias, quando as meninas vieram, se juntavam e formavam um bando de moleques. Quinzinho tinha duas irmãs Maria e Mariana. Maria a mais velha era rabugenta e azeda. Inzibida andava e se portava dura, como uma estaca de arame. Totõe gostava de Mariana, que era um doce de menina, mais bonita, mais educada.  Totõe não se cansava de brincar com o amigo:
 
-Você tem duas irmãs, uma doce e uma azeda, então eu posso escolher qual é a melhor! Como eu só tenho a entojada da Sebastiana, você não tem jeito de escolher. – Dizia isso e os dois riam. Todo mundo já sabia que Quinzinho era apaixonado por Sebastiana.
 
Os dois amigos iniciaram o ano meninos e terminaram homens. Não era a toa que viviam lá para as bandas das casas dos agregados quando todos os maridos estavam para o trabalho.
 
Era dia da lavagem das roupas. As mulheres iam uma vez por semana ao rio para lavarem roupa. Entravam no rio seminuas, e com água até o joelhos batiam as roupas nas pedras.  Os dois nunca perdiam esse acontecimento.  Ficavam amoitados só olhando, e depois apareciam como se fosse por acaso e acabavam todos dentro do rio.  Ainda em casa, Totõe recebeu através da mãe um recado:
 
-Filho, o Quinzinho mandou dizer pro’cê que vai na cidade buscar as meninas, elas chegam hoje, no trem das 10. Imagine o tamanhão que elas devem de estar, heim?
 
As palavras da mãe ecoaram muito tempo na cabeça de Totõe: “o tamanhão que elas devem de estar...” Não parava de pensar em Mariana, teria encorpado, devia de estar com corpo de mulher.  Muito mais bonita muito mais doce... E o tamanho do azedume da Maria só deve ter crescido. Pensou isso e riu.
 
Foi sozinho, não podia deixar as mulheres do rio na mão. À tarde, tomou um banho, se perfumou todinho e seguiu para a casa do amigo.
 
Quem lhe abriu a porta foi Maria, se olharam e tocaram um cumprimento forçado. Totõe viu que o tamanho da antipatia de Maria tinha realmente aumentado. Ela se sentou como uma estaca de arame, toda retinha e disse que o irmão estava no quarto.
 
Mas não tinha ninguém lá. Não quis perguntar para Maria, saiu pela mesma porta que entrou, passou pela “estaca azeda”, viu que ela o seguiu com os olhos, e balbuciou alguma coisa que ele não entendeu. Sentou-se no alpendre, logo apareceria alguém que lhe diria onde o amigo estava. Se encontrasse ele, encontraria Mariana. Eram pregados. Ouviu umas vozes vindas lá do fundo do quintal, reconheceu a voz do amigo. Seguiu o som e se deparou com uma imagem de sonho. Mariana, ali na sua frente, linda, com um vestido cor do céu, que deixava suas formas ainda mais exuberantes. Ela estava com o irmão, embaixo de uma mangueira. Encostada numa cerca com as mãos e a boca lambuzadas de manga madura. 
 
Mariana reconheceu logo Totõe:
 
-Agora chegou quem vai acertar com a primeira pedrada aquela manga que você, Quinzinho, tentou até o braço doer e não conseguiu pegar para mim. – Disse sorrindo, tentando esconder com a mão a boca suja de manga.
 
Totõe pegou uma pedra do chão e pediu que Mariana lhe mostrasse qual manga queria. Ela, no intuito de mostrar a fruta lá no alto, chegou tão pertinho, que ele sentiu o cheiro de seu cabelo.  Totõe derrubou a manga, e ao entregá-la a sua dona, deixou seus dedos roçar de leve nos dela. Totõe assistiu extasiado Mariana devorar a fruta. Ficou imaginando como deveriam ser doce os beijos daquela dona, e pensou: “É com Mariana que vou me casar.”
 
Chegou em casa conversou seriamente com o pai e a decisão foi tomada. Fariam o pedido.
 
Seu Joaquim não se opôs, e marcaram logo a data.
 
E chegou o dia. Era o casamento de Totõe e Mariana. Não teve namoro, nem noivado. Os pais combinaram tudo, Seu Joaquim organizaria a festa, o enxoval, e Seu Bento providenciaria a casa e os móveis.  A cerimônia seria celebrada na fazenda do pai da noiva. Seria um festão, como poucos. Os filhos dos fazendeiros mais importantes da região iam se casar. Eles se amavam.  Desde a chegada de Mariana, Totõe nunca mais foi ao rio, nem lá para o lado das casas dos agregados.
 
Totõe mandou vir um terno lá da capital. Todo engomado. Estava tudo pronto. Quando chegou a hora, a família toda, seguida pelos parentes e agregados, se dirigiu para a fazenda vizinha.
 
Totõe chegou e se posicionou no local a ele designado, perto do altar. Esperava ansioso. Estava contando os minutos para finalmente ter Mariana nos seus braços. Desde o dia em que a viu debaixo do pé de manga, voltou a vê-la umas duas vezes, Seu Joaquim, muito severo, disse que não ficava bem os dois ficarem se encontrando. Totõe sabia que se quisesse ter Mariana, tinha que seguir os desígnios do futuro sogro.
 
De braços dados com o pai, a noiva encoberta pelo véu caminhou até o altar. O coração de Totõe acelerava a cada passo que ela dava. Até que o momento chegou. Seu Joaquim lhe deu a filha, e os dois seguiram em direção ao padre. Sem tirar o véu, a noiva olhou o tempo todo fixo como uma estaca, para o padre, não se virou nenhuma vez para o noivo. Ele de vez em quando de rabo de olho, conferia se aquilo tudo era verdade, se estava mesmo ali do lado de sua noiva se casando.
 
Terminada a cerimônia, o padre disse:
 
-Agora o noivo pode tirar o véu da noiva e beijá-la.
 
Totõe delicadamente levantou o véu de sua, agora, esposa.  E viu algo que o pegou de surpresa. A surpresa foi tão grande que o noivo teve um treco. Caiu desmaiado. Ninguém entendeu nada. No meio da confusão a noiva saiu rapidamente, e o noivo desmaiado foi levado para um quarto dentro da casa, onde o padre tentava lhe reanimar.
 
Na festa todos culparam o calor, o terno que não estava acostumado a usar, a emoção do momento, mas Totõe no quarto quando recobrou os sentidos dizia repetidamente:
 
-Cadê Mariana? O que fizeram com ela? Onde está Mariana?
 
Foi quando Seu Joaquim pediu que todos saíssem do quarto, queria conversar com o genro. Quando ficaram a sós, o velho despejou:
 
-Mariana está no quarto dela. Você vai para casa, não acho bom que fique na festa, pode desmaiar de novo. Quando você chegar lá, sua esposa já estará esperando por você. - Totõe apesar da confusão que se instaurava em sua cabeça, tentou dizer ao sogro o motivo do desmaio, mas foi convencido pelo velho que era o calor.
 
Totõe foi levado por um dos capangas do sogro, quando chegou em casa, já era noitinha, entrou na casa meio tonto ainda e viu que de sua noiva já o esperava na cama. Na penumbra do quarto, as núpcias aconteceram e o casamento foi consumado.
 
Só no outro dia, ao acordar se deu conta que o que havia de seu lado não era a doce Mariana, mas a irmã rabugenta e azeda: era a Maria.
 
Ele bem que teve uma impressão quando levantou o véu. Mas foi convencido pelo sogro que era o calor, que era a maquiagem. Afinal eram irmãs. Uma muito mais bonita do que a outra, mas afinal tinham suas semelhanças.  O velho Joaquim havia lhe enganado.
 
Saiu sem fazer barulho, quando abriu a porta, deu de cara com o jagunço que tinha ordens de levá-lo a ter com o sogro.
 
A família de Totõe tinha um imenso respeito pelo Seu Joaquim, eram quase da família, por mais que estivesse contrariado, não ia fazer nada sem falar com seu pai antes. Seu Bento saberia como resolver amigavelmente esse terrível engano. Mas não pode ir até o pai, seguiu para a sede do sogro, escoltado pelo jagunço.
 
Seu Joaquim o esperava no alpendre, com mais dois de seus capangas recebeu-o com muita cortesia:
 
-O que trás meu genro aqui logo cedo, não deverias estar em núpcias?
 
-O senhor sabe muito bem o motivo de eu estar aqui. Onde está Mariana, o que o senhor fez com a minha noiva? – Disse meio gaguejando, em tom de voz alterado:
 
-Sua mulher, a Maria deve de estar em sua casa neste momento, mas Mariana seguiu com a mãe e o irmão para a capital, voltou para a casa da avó, vai ficar por lá por mais um tempo. – disse o sogro, enquanto enrolava calmamente um cigarro de palha.
 
-Vocês não tem o direito de fazerem isso com a nossa vida. Eu e Mariana... -Totõe não conseguiu terminar a frase, o sogro mirando o cigarro, o colocou no canto da boca, sem acender e falou:
 
-Não existe mais “Eu e Mariana”, agora é só você e a Maria. Vocês se casaram, com a benção do Nosso Senhor, consumaram o casamento, agora Maria é sua mulher e não se fala mais no assunto. Não adianta choramingar, você sabe que não tem como voltar atrás. Esqueça Mariana, você tem a Maria, é tudo a mesma coisa. Logo você vai se acostumar e vir que eu fiz a escolha certa. Vocês são muito novos, não sabem o que pensam. Eu o compadre Bento acabamos de conversar, ele acabou de sair daqui. Não adianta você ir pedir ajuda, ele concorda comigo – o velho repetiu: – Vocês se casaram perante Deus e já fizeram o que tinha de fazer a noite toda que eu sei o Fulô, meu capataz ficou de butuca atrás da janela pra ouvir se... bem você sabe!
 
-O senhor se certificou de tudo mesmo, né?-Falou isso e deu as costas para o sogro, e saiu.
 
-Não pense em fugir, você se casou com uma das minhas filhas, não me decepcione, ou vou esquecer que é filho do meu compadre! – Interrompeu seu trago e berrou o velho em tom ameaçador, no meio de um trago.
 
Totõe não tinha saída, pensou de todo jeito e viu que estava encurralado. Foi quando se lembrou do padre. Será que ele estava envolvido nisso?
 
Foi a pé até a igreja, que não era muito longe dali. O padre parecia que o estava esperando.
 
-Padre, o senhor já ficou sabendo? O senhor já sabia? – Perguntou Totõe, engasgado.
 
-Meu filho, todo mundo já sabe do acontecido. Quem veio marcar o casamento foi Seu Joaquim, eu nunca soube mesmo diferenciar as meninas, nomes parecidos. Agora você está casado perante Deus, só a morte pode separá-los. - Até o padre sabia que o casamento já fora consumado. Mas que casamento? Em casa, aquela “estaca azeda” o estaria esperando. Totõe ficava com náuseas só de lembrar que teria que aturá-la até que a morte os separasse.
 
Totõe foi para a casa do pai e o que ouviu dele, já sabia:
 
-Casamento que Deus faz só a morte separa se ao menos você não tivesse... Mas você é como eu, não pode ver mulher!
 
O que restava a Totõe era ficar com a azeda e pensar na doce... E assim o fez. O casamento durou dez anos. Maria foi feliz, apesar de nunca ter tocado no assunto com o marido. Foi ela quem se lembrou de dizer ao pai que não se casa uma filha mais nova antes da mais velha. O pai que atendia a todos os seus caprichos, não se importou com o amor. E atendeu ao capricho da filha, por conveniência, pois Mariana a mais nova, poderia casar com algum político da capital, e Maria já estava passando da idade de arrumar um bom partido.
 
-Ninguém se casa por amor mesmo, compadre! – Foi umas das frases que Seu Joaquim usou para convencer Seu Bento, e os demais.
 
          Mariana voltou à fazenda poucas vezes durante esses todos esses anos, e evitava ficar a sós com o cunhado, sabia que ele também não a tinha esquecido. Sebastiana, irmã de Totõe se casou com Quinzinho, e Maria morreu no parto da segunda filha.
 
Mariana não se casou o pai lhe arrumava pretendentes e ela sempre via algum defeito que o fazia desistir.
 
Apesar de ser uma estaca de arame farpado, Maria fazia de tudo para agradar Totõe, que acabou se acostumando com seu azedume, e de certa forma a fez feliz. Vale acrescentar que ele abandonou as visitas ao rio no dia da lavação de roupa e também a as visitas nas casas das agregadas.
 
Já viúvo, depois do luto, deixou as filhas aos cuidados da irmã e do cunhado, e foi procurar Mariana, sabia que ela nunca o dera esperanças, mas que continuava linda e doce...
 
Aos depois os dois se casaram em um altar erguido debaixo da mangueira. Ele só fez um pedido:
 
-Não use véu no rosto, Mariana.
 
Autora: Meire Boni - Bela Vista de Goiás/GO
 
Publicação autorizada pela autora


1-       Carrinho de loba: brinquedo muito comum entre as crianças da época uma espécie de carrinho feito através da junção de três frutas de lobeira, arbusto comum no cerrado, através de um eixo, e com um cabo que servia para empurrar o brinquedo ladeira abaixo.

3 comentários:

Carlos A. Lopes disse...

Seja bem vinda ao blog Meire Boni. Gostei muito do seu texto. Parabéns.

LENAPENA disse...

Seu conto, prende a atenção do começo ao fim. Fiquei torcendo para o Totõe, ficar com a doce Mariana, e ficou. Muito bom. Parabéns.

Maria Mineira disse...

Seja bem Vinda, minha amiga! Estou muito contente de ver você aqui!Sou sua fã desde sempre. Um abraço aqui da Serra.