Totõe entrou na puberdade
precocemente. De uma hora para outra
mudou suas prioridades. Enquanto todos os garotos de sua idade corriam atrás de
carrinhos feitos de loba¹, ele corria atrás de rabo de saia. Sua mãe achava que era cedo demais para ele
invocar com mulher, mas o pai puxava um saco danado de seu único filho homem. Além
de apoiá-lo, dava umas diquinhas. Não era segredo para ninguém que Seu Bento, de
bento só tinha o nome, pois eram muitas as histórias dele “bulinando” quanto
tinha a idade do filho. As más línguas diziam que até hoje ele dava lá suas
escapadinhas, que só não eram de grande proporção, por causa de Dona Luzia, que
era muito centrada e trazia o marido a rédeas curtas.
Seu Bento era vizinho de fazenda de Seu
Joaquim. Os dois estavam entre os mais ricos da região, eram amigos, mas muito
diferentes um do outro. Seu Bento era um homem de paz, tratava bem os
empregados, a família. Enquanto o vizinho administrava a família e a fazenda
com mãos de ferro. Na sua fazenda tinha até jagunço e muitos de seus desafetos
sumiram de uma hora para outra. Todo mundo sabia, mas ninguém falava. Nem Seu
Bento, que era amigo, comentava esses assuntos. Seu Joaquim tinha três filhos,
duas meninas e um menino. As meninas tinham ido para a cidade estudar, moravam
com a avó, só vinham para casa nas férias de final de ano. O menino Quinzinho
estava sendo criado para continuar o legado do pai.
Totõe era muito amigo do filho de Seu
Joaquim. Brincavam dizendo que iam trocar as irmãs. Um ia casar com a irmã do
outro. Nas últimas férias, quando as meninas vieram, se juntavam e formavam um
bando de moleques. Quinzinho tinha duas irmãs Maria e Mariana. Maria a mais
velha era rabugenta e azeda. Inzibida andava e se portava dura, como uma estaca
de arame. Totõe gostava de Mariana, que era um doce de menina, mais bonita,
mais educada. Totõe não se cansava de
brincar com o amigo:
-Você tem duas irmãs, uma doce e uma azeda,
então eu posso escolher qual é a melhor! Como eu só tenho a entojada da
Sebastiana, você não tem jeito de escolher. – Dizia isso e os dois riam. Todo
mundo já sabia que Quinzinho era apaixonado por Sebastiana.
Os dois amigos iniciaram o ano meninos e terminaram
homens. Não era a toa que viviam lá para as bandas das casas dos agregados
quando todos os maridos estavam para o trabalho.
Era dia da lavagem das roupas. As mulheres
iam uma vez por semana ao rio para lavarem roupa. Entravam no rio seminuas, e
com água até o joelhos batiam as roupas nas pedras. Os dois nunca perdiam esse
acontecimento. Ficavam amoitados só
olhando, e depois apareciam como se fosse por acaso e acabavam todos dentro do
rio. Ainda em casa, Totõe recebeu
através da mãe um recado:
-Filho, o Quinzinho mandou dizer pro’cê que
vai na cidade buscar as meninas, elas chegam hoje, no trem das 10. Imagine o
tamanhão que elas devem de estar, heim?
As palavras da mãe ecoaram muito tempo na
cabeça de Totõe: “o tamanhão que elas devem de estar...” Não parava de pensar
em Mariana, teria encorpado, devia de estar com corpo de mulher. Muito mais bonita muito mais doce... E o
tamanho do azedume da Maria só deve ter crescido. Pensou isso e riu.
Foi sozinho, não podia deixar as mulheres
do rio na mão. À tarde, tomou um banho, se perfumou todinho e seguiu para a
casa do amigo.
Quem lhe abriu a porta foi Maria, se
olharam e tocaram um cumprimento forçado. Totõe viu que o tamanho da antipatia
de Maria tinha realmente aumentado. Ela se sentou como uma estaca de arame,
toda retinha e disse que o irmão estava no quarto.
Mas não tinha ninguém lá. Não quis
perguntar para Maria, saiu pela mesma porta que entrou, passou pela “estaca
azeda”, viu que ela o seguiu com os olhos, e balbuciou alguma coisa que ele não
entendeu. Sentou-se no alpendre, logo apareceria alguém que lhe diria onde o
amigo estava. Se encontrasse ele, encontraria Mariana. Eram pregados. Ouviu
umas vozes vindas lá do fundo do quintal, reconheceu a voz do amigo. Seguiu o
som e se deparou com uma imagem de sonho. Mariana, ali na sua frente, linda,
com um vestido cor do céu, que deixava suas formas ainda mais exuberantes. Ela
estava com o irmão, embaixo de uma mangueira. Encostada numa cerca com as mãos
e a boca lambuzadas de manga madura.
Mariana reconheceu logo Totõe:
-Agora chegou quem vai acertar com a
primeira pedrada aquela manga que você, Quinzinho, tentou até o braço doer e
não conseguiu pegar para mim. – Disse sorrindo, tentando esconder com a mão a
boca suja de manga.
Totõe pegou uma pedra do chão e pediu que
Mariana lhe mostrasse qual manga queria. Ela, no intuito de mostrar a fruta lá
no alto, chegou tão pertinho, que ele sentiu o cheiro de seu cabelo. Totõe derrubou a manga, e ao entregá-la a sua
dona, deixou seus dedos roçar de leve nos dela. Totõe assistiu extasiado Mariana
devorar a fruta. Ficou imaginando como deveriam ser doce os beijos daquela
dona, e pensou: “É com Mariana que vou me casar.”
Chegou em casa conversou seriamente com o
pai e a decisão foi tomada. Fariam o pedido.
Seu Joaquim não se opôs, e marcaram logo a
data.
E chegou o dia. Era o casamento de Totõe e
Mariana. Não teve namoro, nem noivado. Os pais combinaram tudo, Seu Joaquim
organizaria a festa, o enxoval, e Seu Bento providenciaria a casa e os
móveis. A cerimônia seria celebrada na
fazenda do pai da noiva. Seria um festão, como poucos. Os filhos dos
fazendeiros mais importantes da região iam se casar. Eles se amavam. Desde a chegada de Mariana, Totõe nunca mais
foi ao rio, nem lá para o lado das casas dos agregados.
Totõe mandou vir um terno lá da capital.
Todo engomado. Estava tudo pronto. Quando chegou a hora, a família toda,
seguida pelos parentes e agregados, se dirigiu para a fazenda vizinha.
Totõe chegou e se posicionou no local a ele
designado, perto do altar. Esperava ansioso. Estava contando os minutos para
finalmente ter Mariana nos seus braços. Desde o dia em que a viu debaixo do pé
de manga, voltou a vê-la umas duas vezes, Seu Joaquim, muito severo, disse que
não ficava bem os dois ficarem se encontrando. Totõe sabia que se quisesse ter
Mariana, tinha que seguir os desígnios do futuro sogro.
De braços dados com o pai, a noiva
encoberta pelo véu caminhou até o altar. O coração de Totõe acelerava a cada
passo que ela dava. Até que o momento chegou. Seu Joaquim lhe deu a filha, e os
dois seguiram em direção ao padre. Sem tirar o véu, a noiva olhou o tempo todo
fixo como uma estaca, para o padre, não se virou nenhuma vez para o noivo. Ele
de vez em quando de rabo de olho, conferia se aquilo tudo era verdade, se
estava mesmo ali do lado de sua noiva se casando.
Terminada a cerimônia, o padre disse:
-Agora o noivo pode tirar o véu da noiva e
beijá-la.
Totõe delicadamente levantou o véu de sua,
agora, esposa. E viu algo que o pegou de
surpresa. A surpresa foi tão grande que o noivo teve um treco. Caiu desmaiado.
Ninguém entendeu nada. No meio da confusão a noiva saiu rapidamente, e o noivo
desmaiado foi levado para um quarto dentro da casa, onde o padre tentava lhe
reanimar.
Na festa todos culparam o calor, o terno
que não estava acostumado a usar, a emoção do momento, mas Totõe no quarto
quando recobrou os sentidos dizia repetidamente:
-Cadê Mariana? O que fizeram com ela? Onde
está Mariana?
Foi quando Seu Joaquim pediu que todos
saíssem do quarto, queria conversar com o genro. Quando ficaram a sós, o velho
despejou:
-Mariana está no quarto dela. Você vai para
casa, não acho bom que fique na festa, pode desmaiar de novo. Quando você
chegar lá, sua esposa já estará esperando por você. - Totõe apesar da confusão
que se instaurava em sua cabeça, tentou dizer ao sogro o motivo do desmaio, mas
foi convencido pelo velho que era o calor.
Totõe foi levado por um dos capangas do
sogro, quando chegou em casa, já era noitinha, entrou na casa meio tonto ainda
e viu que de sua noiva já o esperava na cama. Na penumbra do quarto, as núpcias
aconteceram e o casamento foi consumado.
Só no outro dia, ao acordar se deu conta
que o que havia de seu lado não era a doce Mariana, mas a irmã rabugenta e
azeda: era a Maria.
Ele bem que teve uma impressão quando levantou
o véu. Mas foi convencido pelo sogro que era o calor, que era a maquiagem.
Afinal eram irmãs. Uma muito mais bonita do que a outra, mas afinal tinham suas
semelhanças. O velho Joaquim havia lhe
enganado.
Saiu sem fazer barulho, quando abriu a
porta, deu de cara com o jagunço que tinha ordens de levá-lo a ter com o sogro.
A família de Totõe tinha um imenso respeito
pelo Seu Joaquim, eram quase da família, por mais que estivesse contrariado,
não ia fazer nada sem falar com seu pai antes. Seu Bento saberia como resolver
amigavelmente esse terrível engano. Mas não pode ir até o pai, seguiu para a
sede do sogro, escoltado pelo jagunço.
Seu Joaquim o esperava no alpendre, com
mais dois de seus capangas recebeu-o com muita cortesia:
-O que trás meu genro aqui logo cedo, não
deverias estar em núpcias?
-O senhor sabe muito bem o motivo de eu
estar aqui. Onde está Mariana, o que o senhor fez com a minha noiva? – Disse
meio gaguejando, em tom de voz alterado:
-Sua mulher, a Maria deve de estar em sua
casa neste momento, mas Mariana seguiu com a mãe e o irmão para a capital,
voltou para a casa da avó, vai ficar por lá por mais um tempo. – disse o sogro,
enquanto enrolava calmamente um cigarro de palha.
-Vocês não tem o direito de fazerem isso
com a nossa vida. Eu e Mariana... -Totõe não conseguiu terminar a frase, o
sogro mirando o cigarro, o colocou no canto da boca, sem acender e falou:
-Não existe mais “Eu e Mariana”, agora é só
você e a Maria. Vocês se casaram, com a benção do Nosso Senhor, consumaram o
casamento, agora Maria é sua mulher e não se fala mais no assunto. Não adianta
choramingar, você sabe que não tem como voltar atrás. Esqueça Mariana, você tem
a Maria, é tudo a mesma coisa. Logo você vai se acostumar e vir que eu fiz a
escolha certa. Vocês são muito novos, não sabem o que pensam. Eu o compadre
Bento acabamos de conversar, ele acabou de sair daqui. Não adianta você ir
pedir ajuda, ele concorda comigo – o velho repetiu: – Vocês se casaram perante
Deus e já fizeram o que tinha de fazer a noite toda que eu sei o Fulô, meu
capataz ficou de butuca atrás da janela pra ouvir se... bem você sabe!
-O senhor se certificou de tudo mesmo,
né?-Falou isso e deu as costas para o sogro, e saiu.
-Não pense em fugir, você se casou com uma
das minhas filhas, não me decepcione, ou vou esquecer que é filho do meu
compadre! – Interrompeu seu trago e berrou o velho em tom ameaçador, no meio de
um trago.
Totõe não tinha saída, pensou de todo jeito
e viu que estava encurralado. Foi quando se lembrou do padre. Será que ele estava
envolvido nisso?
Foi a pé até a igreja, que não era muito
longe dali. O padre parecia que o estava esperando.
-Padre, o senhor já ficou sabendo? O senhor
já sabia? – Perguntou Totõe, engasgado.
-Meu filho, todo mundo já sabe do
acontecido. Quem veio marcar o casamento foi Seu Joaquim, eu nunca soube mesmo
diferenciar as meninas, nomes parecidos. Agora você está casado perante Deus,
só a morte pode separá-los. - Até o padre sabia que o casamento já fora
consumado. Mas que casamento? Em casa, aquela “estaca azeda” o estaria
esperando. Totõe ficava com náuseas só de lembrar que teria que aturá-la até
que a morte os separasse.
Totõe foi para a casa do pai e o que ouviu
dele, já sabia:
-Casamento que Deus faz só a morte separa
se ao menos você não tivesse... Mas você é como eu, não pode ver mulher!
O que restava a Totõe era ficar com a azeda
e pensar na doce... E assim o fez. O casamento durou dez anos. Maria foi feliz,
apesar de nunca ter tocado no assunto com o marido. Foi ela quem se lembrou de
dizer ao pai que não se casa uma filha mais nova antes da mais velha. O pai que
atendia a todos os seus caprichos, não se importou com o amor. E atendeu ao
capricho da filha, por conveniência, pois Mariana a mais nova, poderia casar
com algum político da capital, e Maria já estava passando da idade de arrumar
um bom partido.
-Ninguém se casa por amor mesmo, compadre!
– Foi umas das frases que Seu Joaquim usou para convencer Seu Bento, e os
demais.
Mariana voltou à
fazenda poucas vezes durante esses todos esses anos, e evitava ficar a sós com
o cunhado, sabia que ele também não a tinha esquecido. Sebastiana, irmã de
Totõe se casou com Quinzinho, e Maria morreu no parto da segunda filha.
Mariana não se casou o pai lhe arrumava
pretendentes e ela sempre via algum defeito que o fazia desistir.
Apesar de ser uma estaca de arame farpado,
Maria fazia de tudo para agradar Totõe, que acabou se acostumando com seu
azedume, e de certa forma a fez feliz. Vale acrescentar que ele abandonou as
visitas ao rio no dia da lavação de roupa e também a as visitas nas casas das
agregadas.
Já viúvo, depois do luto, deixou as filhas
aos cuidados da irmã e do cunhado, e foi procurar Mariana, sabia que ela nunca
o dera esperanças, mas que continuava linda e doce...
Aos depois os dois se casaram em um altar
erguido debaixo da mangueira. Ele só fez um pedido:
-Não
use véu no rosto, Mariana.
Autora: Meire Boni -
Bela Vista de Goiás/GO
Publicação autorizada
pela autora
1- Carrinho de loba: brinquedo muito comum
entre as crianças da época uma espécie de carrinho feito através da junção de
três frutas de lobeira, arbusto comum no cerrado, através de um eixo, e com um
cabo que servia para empurrar o brinquedo ladeira abaixo.
3 comentários:
Seja bem vinda ao blog Meire Boni. Gostei muito do seu texto. Parabéns.
Seu conto, prende a atenção do começo ao fim. Fiquei torcendo para o Totõe, ficar com a doce Mariana, e ficou. Muito bom. Parabéns.
Seja bem Vinda, minha amiga! Estou muito contente de ver você aqui!Sou sua fã desde sempre. Um abraço aqui da Serra.
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