terça-feira, 1 de janeiro de 2013

O ritual - Autora: Ana Luiza Marques


Rituais são coisas bem interessantes – para não dizer engraçadas – de se observar. Eles dizem muito mais de lugar que qualquer revista de turismo, garanto. Não sou do interior, mas minha família toda é; então sempre fui uma espécie de ‘prima da cidade’ que não entendia como era permitido riscar a calçada de giz pra brincar de amarelinha ou porque não podia comer manga com leite. Não que algum dia eu fosse degustar essa estranha combinação.
Lá estava eu, numa cidadezinha a algumas centenas de quilômetros da capital, no meio de lugar nenhum. Que como toda cidadezinha distante e pequena é composta de uma praça, uma igreja e uma rua principal. Era mais ou menos quatro ou cinco da tarde, hora em que o sol já deu uma trégua para nós mortais, e que cada um está acabando seus afazeres diários. Hora de colocar a cadeira na calçada e tomar um pouco daquela brisa empoeirada, carregada da aridez do sertão. Hora de ver o tempo passar. Já que o tempo não é algo que preocupe muita gente por aquelas bandas de lá. 
De repente, entre as poucas bicicletas e carros que passaram naqueles vinte minutos de calçada e papo furado, um chama a atenção. Um carro de som anuncia para quem queira ouvir que “a família Silveira Pessoa comunica o falecimento do senhor José, e convida todos para o sepultamento amanhã às nove horas da manhã. O féretro (o feoque?) sairá da Rua Padre Leão, número doze. A família agradece este ato de fé e caridade Cristã”. Continuei parada, talvez esperando que alguma explicação viesse depois de tal publicidade. Mas como se nada demais tivesse acontecido, a mulher que estava do meu lado, minha prima, pergunta para a vizinha de cadeira (e de porta):
– Meu Deus! E foi José de quem, tu sabes?
– Menina, tu não soubesse não? Zé da Padaria morreu. (Zé de onde? Eu só observava).
– Mentira! – Respondeu minha prima – e morreu de morte matada ou morte morrida?
- Rapaz, pareceu que foi um negócio no coração...
De noite, o velório. Não, eu não conhecia Zé da Padaria, mas a curiosidade foi maior. Fomos andando, já passava das nove horas e não queríamos nos demorar. Chegamos à casa do falecido. Na casa? Sim, na casa. Aparentemente, haviam tirado todos os móveis da confortável sala de estar da casa de Zé; só estavam o caixão, muitas cadeiras em torno e uma mesa com os companheiros da madrugada: café, água e bolacha. O velar é passar a noite ao lado daquela pessoa que não está mais lá. É receber uma cidade toda querendo prestar sua homenagem ao morto. A viúva era a mais requisitada. Vestida com sua melhor roupa de domingo, chorosa e sempre ao lado do seu companheiro de anos, ela aceitava sem muito interesse as condolências dos conhecidos e dos nem tão conhecidos assim. Os filhos, dois rapazes já feitos, se encarregavam das partes burocráticas e formais daquele ritual. E, como toda cidade de interior, entre os personagens havia um bêbado e um doido, sempre há. A frente da casa ficou cheia, cada um queria se despedir do tal senhor, afinal era uma desfeita não o fazer. Faz parte do ritual. Mas como no ritual apenas a família e os amigos mais próximos velam pela madrugada, um a um, os convidados se foram. Inclusive eu. 
No outro dia, todos retornam a mesma casa da Rua Padre Leão. Eram oito e meia da manhã, mas o sol já estava a pino. Todos se conhecem, todos se cumprimentam. Duas mulheres confortavam a viúva, “ele passou dessa para uma melhor”. Outras duas ou três pessoas se desculpavam para o filho “não pude vir ontem porque não sabia do acontecido”, e se queixavam “e porque o carro não passou lá na rua”. 
O cortejo deixa a casa, e segue pela cidade; desce a rua principal, em direção ao cemitério. Um filho ajuda a carregar o caixão, o outro vai à frente com a coroa de flores, a viúva chora, todos acompanham atrás. Uma chuva fina resolve cair para completar o cenário de despedida. Daquelas que não molha. Daquelas que evaporam antes de chegar ao chão, de tão quente que o asfalto está. Por onde passa o cortejo, as lojas da cidade fecham suas portas, mais parece uma “ola” ensaiada. É uma breve e última homenagem àquele que partiu. Todos saem para olhar; na praça, os senhores param seus jogos de gamão, se levantam e tiram os chapéus. É o ritual. 
E finalmente, o cemitério. Que mais parece uma cidade histórica, construída durante milhares de anos: são ruelas estreitas, ‘casarões’ decorados com azulejos, ‘mansões’ que abrigam gerações da mesma família, ‘casas’ com jardins decorados’, ‘casebres’ abandonados. É nessa cidade que seu Zé vai morar. Despedidas, choros e abraços. Voltamos. Mais café e algum papo furado. É preciso tomar banho pra tirar a “terra de cemitério”. Mas a vida continua. 
 
Autora: Ana Luiza Marques - Recife/PE
Publicação autorizada pela autora

Comentários:
Uma crônica bonita e triste. Acho que estes rituais deveriam ser abolidos. Acho muito triste esse processo do despedir-se.
Ana Bailune
 

3 comentários:

Carlos A. Lopes disse...

Seja bem vinda ao blog Ana Luiza Marques.

Ana Bailune disse...

Uma crônica bonita e triste. Acho que estes rituais deveriam ser abolidos. Acho muito triste esse processo do despedir-se.

Jailson disse...

Parabéns Ana Luiza. Texto bem escrito, descreve o ambiente dos velórios nas cidades do interior com ótima observação dos rituais e gestos dos participantes e parentes e até com certo humor, que é necessário e próprio do(a) observador(a) não comprometido com a ação ou a inação.