terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Geração de risco - Dias Índios (XXV)

  Autor: Professor Wanderley Dantas
-Então, eu tenho um projeto! Quando o filho do cacique disse isso, depois de tudo o que foi discutido sobre a situação precária de apoio material às aulas dos outros dois professores indígenas, esperei ansiosamente uma ação positiva na direção da alfabetização da língua materna. - Então - continuou ele - penso que o Professor poderia nos ajudar a escrever um projeto que resgatasse a maneira das mulheres na aldeia colherem a mandioca!
-...!
-Muita coisa mudou e a ideia é fazer as mulheres carregarem as mandiocas como era antes! "Como era antes?!", pensei. Ora, o que ele estava propondo era que as mulheres não usassem mais as bacias de metal, mas voltassem a confeccionar os sacos de embira para carregar a mandioca; voltassem a descascar a mandioca com a concha, parassem de usar panela, voltassem ao ralador de origem vegetal, etc. Enfim, todo o uso de tecnologia que facilitou a vida delas estava para ser jogado pro mato.

- Você já conversou com as mulheres sobre isso? Perguntou o antropólogo.

- Não! Mas a gente vai decidir e elas vão retornar, porque muita coisa está mudando. Minha mãe não fazia assim, nem minha avó!
-Gosto muito dessa sua atitude e ideia de preservar a cultura do seu povo, disse o antropólogo. Eu ri por dentro, obviamente, ouvindo aqueles dois seres conversando em ridiculoquês profundo entre eles.
-A cultura está mudando e eu quero preservar as coisas para nossos filhos, insistiu o filho do cacique.
-Você acha que as coisas estão mudando por causa do contato com o branco?, perguntou maliciosamente o antropólogo.
-Sim, respondeu. Diante dessa resposta, orei por sabedoria, pois naquele momento era preciso dizer alguma coisa que cortasse na raiz aquela palhaçada acadêmico-primitiva.

- O que o Professor acha? Perguntou-me o filho do cacique.
-Bem, eu sou da área da Educação, assim, eu não entendo nada do que vocês estão falando. O que eu posso dizer é que se vocês estão querendo salvar a cultura e preservar as crianças, creio que o melhor projeto seria a aldeia abraçar a alfabetização na língua materna e dar condições aos dois professores indígenas de se prepararem melhor. Além disso, as crianças de vocês estão crescendo em contato direto com a televisão. Esta, sim, está fazendo um estrago na identidade cultural delas, até mesmo porque elas não estão sendo alfabetizadas na própria língua. A língua portuguesa está entrando na aldeia pela televisão. As imagens do Jornal Nacional e das novelas estão moldando as crianças de vocês, daqui a pouco elas vão substituir a língua materna pelo português. Suas crianças são uma geração em risco. Nunca elas foram tão expostas à língua portuguesa e sem nenhuma contrapartida de um projeto de valorização da língua materna. Assim, a presença da televisão causa um dano muito maior e fica pior por estar associado à falta de um projeto de alfabetização na língua materna. Isto é um dano real maior à cultura do que a constatação de que as mulheres tiveram a sua vida facilitada pela introdução das panelas de metal.
-…
-Digo mais - continuei - e sei que o antropólogo aqui vai entender bem o que eu estou dizendo: eu amo a minha língua portuguesa, porque ela carrega o testemunho de uma história que vem desde os gregos e romanos, é uma história milenar! A língua de vocês também carrega a história dos seus antepassados. Se vocês a perderem, grande parte da memória cultural de vocês será perdida junto com a língua. A língua é um testemunho importante da cultura histórica de um povo...
Eu disse aquelas palavras pensando no entendimento do antropólogo que estava me ouvindo atentamente e que não respondeu mais nada. Por que insisti no discurso sobre a televisão? Bem, o filho do cacique, que estava tendo a brilhante ideia de retornar as mulheres ao trabalho de 50 anos atrás, leva e traz a própria esposa todos os dias para a roça de mandioca na garupa de uma moto yamaha que ele comprou. E mais: neste ano, ele mesmo trouxe para a aldeia uma enorme tv de plasma, na qual, todas as noites, ele assiste suas novelas ao lado de várias crianças... O filho do cacique estudou fora da aldeia por mais de sete anos, domina a língua portuguesa e tem se erguido como liderança da aldeia exatamente por dominar um conhecimento que ele mesmo não quer compartilhar com seus semelhantes...

Autor: Professor Wanderley Dantas

http://o-seringueiro.blogspot.com.br/

Publicação autorizada pelo autor

Um comentário:

Maria Mineira disse...

Estou acompanhando todas os textos publicados. Muito bom mesmo. Parabéns! Até o próximo.