Autor: Professor Wanderley Dantas
-Então, eu tenho um projeto! Quando o filho do
cacique disse isso, depois de tudo o que foi discutido sobre a situação
precária de apoio material às aulas dos outros dois professores indígenas,
esperei ansiosamente uma ação positiva na direção da alfabetização da língua
materna. - Então - continuou ele - penso que o Professor poderia nos ajudar a
escrever um projeto que resgatasse a maneira das mulheres na aldeia colherem a
mandioca!
-...!
-Muita coisa mudou e a ideia é fazer as
mulheres carregarem as mandiocas como era antes! "Como era antes?!",
pensei. Ora, o que ele estava propondo era que as mulheres não usassem mais as
bacias de metal, mas voltassem a confeccionar os sacos de embira para carregar
a mandioca; voltassem a descascar a mandioca com a concha, parassem de usar
panela, voltassem ao ralador de origem vegetal, etc. Enfim, todo o uso de
tecnologia que facilitou a vida delas estava para ser jogado pro mato.
- Você já conversou com as mulheres sobre isso? Perguntou o antropólogo.
- Não! Mas a gente vai decidir e elas vão retornar, porque muita coisa está mudando. Minha mãe não fazia assim, nem minha avó!
- Você já conversou com as mulheres sobre isso? Perguntou o antropólogo.
- Não! Mas a gente vai decidir e elas vão retornar, porque muita coisa está mudando. Minha mãe não fazia assim, nem minha avó!
-Gosto muito dessa sua atitude e ideia de
preservar a cultura do seu povo, disse o antropólogo. Eu ri por dentro,
obviamente, ouvindo aqueles dois seres conversando em ridiculoquês profundo
entre eles.
-A cultura está mudando e eu quero preservar
as coisas para nossos filhos, insistiu o filho do cacique.
-Você acha que as coisas estão mudando por
causa do contato com o branco?, perguntou maliciosamente o antropólogo.
-Sim, respondeu. Diante dessa resposta, orei
por sabedoria, pois naquele momento era preciso dizer alguma coisa que cortasse
na raiz aquela palhaçada acadêmico-primitiva.
- O que o Professor acha? Perguntou-me o filho do cacique.
- O que o Professor acha? Perguntou-me o filho do cacique.
-Bem, eu sou da área da Educação, assim, eu
não entendo nada do que vocês estão falando. O que eu posso dizer é que se
vocês estão querendo salvar a cultura e preservar as crianças, creio que o
melhor projeto seria a aldeia abraçar a alfabetização na língua materna e dar
condições aos dois professores indígenas de se prepararem melhor. Além disso,
as crianças de vocês estão crescendo em contato direto com a televisão. Esta,
sim, está fazendo um estrago na identidade cultural delas, até mesmo porque
elas não estão sendo alfabetizadas na própria língua. A língua portuguesa está
entrando na aldeia pela televisão. As imagens do Jornal Nacional e das novelas
estão moldando as crianças de vocês, daqui a pouco elas vão substituir a língua
materna pelo português. Suas crianças são uma geração em risco. Nunca elas
foram tão expostas à língua portuguesa e sem nenhuma contrapartida de um
projeto de valorização da língua materna. Assim, a presença da televisão causa
um dano muito maior e fica pior por estar associado à falta de um projeto de
alfabetização na língua materna. Isto é um dano real maior à cultura do que a
constatação de que as mulheres tiveram a sua vida facilitada pela introdução
das panelas de metal.
-…
-Digo mais - continuei - e sei que o
antropólogo aqui vai entender bem o que eu estou dizendo: eu amo a minha língua
portuguesa, porque ela carrega o testemunho de uma história que vem desde os
gregos e romanos, é uma história milenar! A língua de vocês também carrega a
história dos seus antepassados. Se vocês a perderem, grande parte da memória
cultural de vocês será perdida junto com a língua. A língua é um testemunho
importante da cultura histórica de um povo...
Eu disse aquelas palavras pensando no
entendimento do antropólogo que estava me ouvindo atentamente e que não
respondeu mais nada. Por que insisti no discurso sobre a televisão? Bem, o
filho do cacique, que estava tendo a brilhante ideia de retornar as mulheres ao
trabalho de 50 anos atrás, leva e traz a própria esposa todos os dias para a
roça de mandioca na garupa de uma moto yamaha que ele comprou. E mais: neste
ano, ele mesmo trouxe para a aldeia uma enorme tv de plasma, na qual, todas as
noites, ele assiste suas novelas ao lado de várias crianças... O filho do
cacique estudou fora da aldeia por mais de sete anos, domina a língua
portuguesa e tem se erguido como liderança da aldeia exatamente por dominar um
conhecimento que ele mesmo não quer compartilhar com seus semelhantes...
Autor: Professor Wanderley
Dantas
http://o-seringueiro.blogspot.com.br/
Publicação autorizada pelo autor
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Um comentário:
Estou acompanhando todas os textos publicados. Muito bom mesmo. Parabéns! Até o próximo.
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