Rituais são coisas bem interessantes
– para não dizer engraçadas – de se observar. Eles dizem muito mais de lugar
que qualquer revista de turismo, garanto. Não sou do interior, mas minha
família toda é; então sempre fui uma espécie de ‘prima da cidade’ que não
entendia como era permitido riscar a calçada de giz pra brincar de amarelinha
ou porque não podia comer manga com leite. Não que algum dia eu fosse degustar
essa estranha combinação.
Lá estava eu, numa cidadezinha a
algumas centenas de quilômetros da capital, no meio de lugar nenhum. Que como
toda cidadezinha distante e pequena é composta de uma praça, uma igreja e uma
rua principal. Era mais ou menos quatro ou cinco da tarde, hora em que o sol já
deu uma trégua para nós mortais, e que cada um está acabando seus afazeres
diários. Hora de colocar a cadeira na calçada e tomar um pouco daquela brisa
empoeirada, carregada da aridez do sertão. Hora de ver o tempo passar. Já que o
tempo não é algo que preocupe muita gente por aquelas bandas de lá.
De repente, entre as poucas
bicicletas e carros que passaram naqueles vinte minutos de calçada e papo
furado, um chama a atenção. Um carro de som anuncia para quem queira ouvir que
“a família Silveira Pessoa comunica o falecimento do senhor José, e convida
todos para o sepultamento amanhã às nove horas da manhã. O féretro (o feoque?)
sairá da Rua Padre Leão, número doze. A família agradece este ato de fé e
caridade Cristã”. Continuei parada, talvez esperando que alguma explicação viesse
depois de tal publicidade. Mas como se nada demais tivesse acontecido, a mulher
que estava do meu lado, minha prima, pergunta para a vizinha de cadeira (e de
porta):
– Meu Deus! E foi José de quem, tu sabes?
– Menina, tu não soubesse não? Zé da Padaria morreu.
(Zé de onde? Eu só observava).
– Mentira! – Respondeu minha prima – e morreu de morte
matada ou morte morrida?
- Rapaz, pareceu que foi um negócio no coração...
De noite, o velório. Não, eu não
conhecia Zé da Padaria, mas a curiosidade foi maior. Fomos andando, já passava
das nove horas e não queríamos nos demorar. Chegamos à casa do falecido. Na
casa? Sim, na casa. Aparentemente, haviam tirado todos os móveis da confortável
sala de estar da casa de Zé; só estavam o caixão, muitas cadeiras em torno e
uma mesa com os companheiros da madrugada: café, água e bolacha. O velar é
passar a noite ao lado daquela pessoa que não está mais lá. É receber uma
cidade toda querendo prestar sua homenagem ao morto. A viúva era a mais
requisitada. Vestida com sua melhor roupa de domingo, chorosa e sempre ao lado
do seu companheiro de anos, ela aceitava sem muito interesse as condolências
dos conhecidos e dos nem tão conhecidos assim. Os filhos, dois rapazes já
feitos, se encarregavam das partes burocráticas e formais daquele ritual. E,
como toda cidade de interior, entre os personagens havia um bêbado e um doido,
sempre há. A frente da casa ficou cheia, cada um queria se despedir do tal
senhor, afinal era uma desfeita não o fazer. Faz parte do ritual. Mas como no
ritual apenas a família e os amigos mais próximos velam pela madrugada, um a
um, os convidados se foram. Inclusive eu.
No outro dia, todos retornam a mesma
casa da Rua Padre Leão. Eram oito e meia da manhã, mas o sol já estava a pino.
Todos se conhecem, todos se cumprimentam. Duas mulheres confortavam a viúva,
“ele passou dessa para uma melhor”. Outras duas ou três pessoas se desculpavam
para o filho “não pude vir ontem porque não sabia do acontecido”, e se
queixavam “e porque o carro não passou lá na rua”.
O cortejo deixa a casa, e segue pela
cidade; desce a rua principal, em direção ao cemitério. Um filho ajuda a
carregar o caixão, o outro vai à frente com a coroa de flores, a viúva chora,
todos acompanham atrás. Uma chuva fina resolve cair para completar o cenário de
despedida. Daquelas que não molha. Daquelas que evaporam antes de chegar ao
chão, de tão quente que o asfalto está. Por onde passa o cortejo, as lojas da
cidade fecham suas portas, mais parece uma “ola” ensaiada. É uma breve e última
homenagem àquele que partiu. Todos saem para olhar; na praça, os senhores param
seus jogos de gamão, se levantam e tiram os chapéus. É o ritual.
E finalmente, o cemitério. Que mais
parece uma cidade histórica, construída durante milhares de anos: são ruelas
estreitas, ‘casarões’ decorados com azulejos, ‘mansões’ que abrigam gerações da
mesma família, ‘casas’ com jardins decorados’, ‘casebres’ abandonados. É nessa
cidade que seu Zé vai morar. Despedidas, choros e abraços. Voltamos. Mais café
e algum papo furado. É preciso tomar banho pra tirar a “terra de cemitério”.
Mas a vida continua.
Autora: Ana Luiza Marques - Recife/PE
Publicação autorizada pela autora
Comentários:
Uma crônica bonita e triste. Acho que estes rituais deveriam ser abolidos. Acho muito triste esse processo do despedir-se.
Ana Bailune
Comentários:
Uma crônica bonita e triste. Acho que estes rituais deveriam ser abolidos. Acho muito triste esse processo do despedir-se.
Ana Bailune
3 comentários:
Seja bem vinda ao blog Ana Luiza Marques.
Uma crônica bonita e triste. Acho que estes rituais deveriam ser abolidos. Acho muito triste esse processo do despedir-se.
Parabéns Ana Luiza. Texto bem escrito, descreve o ambiente dos velórios nas cidades do interior com ótima observação dos rituais e gestos dos participantes e parentes e até com certo humor, que é necessário e próprio do(a) observador(a) não comprometido com a ação ou a inação.
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