Autor: Carlos A Lopes
Hoje vi o meu pai
falecer. Fiquei ao seu lado enquanto o meu coração aguentou. Depois, de longe
permaneci quieto sem emitir nenhum som e de orelhas empinadas.
Ao chegar à idade limite,
a nossa existência não faz nenhum sentido. Um dia, simplesmente vamos deixando
de nos alimentar e a fraqueza nos conduz à morte, já que é próprio da nossa
espécie, não lutar contra doenças.
Vim morar nesta casa
ainda bem mocinho. Em um belo dia, apareceu no caviário do bairro da Madalena,
a sobrinha do meu dono, com o intuito de comprar ração e ela acabou por me
levar dali em troca de um pedaço de papel.
No caminho já se iniciou
uma sessão de carícias e dengos no meu cangote. Detestei! Coisa mais sem graça!
Sou um ser ressabiado e fechei os olhos durante todo o percurso. Até podia ter
mostrado os dentes para eles... Sou assim mesmo, consinto tais galanteios, mas
fico arredio e apoquentado.
Lá na minha nova casa já havia três outros da minha espécie e
cada um deles quis adotar-me como filho. Por alguma razão fui separado dos
demais e passei a ser orientado por Otávio, quem acabou tornando-se meu pai.
Ele, um sujeito mais velho, relaxado, espírito aventureiro, um verdadeiro
líder. Era o único que conseguia adormecer deitado de lado e nutria antipatia
pelo Júlio César, o mais vistoso da casa. Já esse, muito charmoso, tinha
focinho arredondado, olhos simétricos e pêlos escuros sem marcação, no entanto,
um sujeito pachola e estressado.
Nos primeiros dias eu
ouvia sempre o meu dono falando sobre o tal de Marco Antônio, o primeiro que
chegou para morar em sua casa. Ele era novinho, marrom e quase nada se sabia
dele, a não ser que veio como presente e que morreu uns dois meses após a sua chegada.
Cá para nós, tem quem diga que na morte dele, houve o dedo de Júlio César. Meu
dono diz que liderança entre porquinhos da Índia é coisa de “berço” e Marco
Antônio pode ter pagado o preço de ter nascido sem tal graça divina.
De todos os novos irmãos
o mais feio deles era Zezinho, o único que se prestava às vadiagens próprias de
crianças, tais como, correr e brincar; os demais só pensavam em encavalitar,
buscando demarcação de domínios. Entretanto, Otávio era daqueles que pagava
para evitar uma briga, porém se fosse provocado não abandonava a peleja. Ele era sempre provocado pelo Júlio César, o
mais invejoso e era logo separado dos demais. Nem por isso se ajeitou, estava
sempre desejoso pelas carícias do nosso dono, inclusive fingia chorar, só pra
cair nos seus braços.
Depois de Marco Antônio,
Júlio César foi o primeiro a falecer. Eu estava por perto. Havia chegado um
pessoal de São Paulo e meu dono nos colocou num quartinho, lá onde se lava
roupas sujas. Ele morreu de uma forma rápida e estranha. Ainda tentaram
medicá-lo, nada adiantou. Seus últimos suspiros foram na cama da enteada do meu
dono. Ninguém entendeu ¨nadica¨ de nada do sucedido. Houve derramamento de
lágrimas e seu corpo rígido foi contemplado de mãos em mãos. Perguntado, meu
dono explicou que nossos músculos enrijecem com a morte. Não sei nada disso! Só
sei que nem um pouco se parecia mais com aquele “pretão¨ garboso que atraía a
atenção de quem chegasse. E para não tornar esse assunto mais triste, só sei
que meu dono o levou dali e fez seu sepultamento no jardim, junto ao Marco
Antônio.
Pouco tempo se passou após
a morte de Júlio César e Zezinho lambeu do gosto da morte, indo parar, também, no
jardim do edifício. Na ocasião, olhando pra mim, ouvi meu dono dizer que ia
manter a colher de pedreiro na mala do carro. Ele sofreu muito com a morte de
Zezinho. Era o nordestino da casa com seu aspecto de famigerado da seca. Zezinho era renegado pelos outros e por isso não
entrava em todas as tocas. Pense num sofrimento!
Até injeção na veia tomou. De nada adiantou. Meu amigo faleceu de forma lenta.
Com ele se foi o vandalismo e os costumeiros pinotes de alegria. A sua ausência
acabou estabelecendo uma convivência mais adulta na casa. Eu me transformei num
ser sedentário, enquanto o pessoal só tinha olhos para cochilar na frente da
televisão.
Otávio, meu pai adotivo,
reinou absoluto por mais ou menos três anos. E durante esse tempo nunca vi
tanta “risadagem” naquela casa, pelo pouco ou quase nada que pude observar.
Encantava com seu jeito de ser, nada forçado. Não brincava, não “pinotava”, não
roía fios, mas sabia deitar-se de maneira engraçada. E por ser o único que se
esparramava de corpo enrijecido em qualquer lugar, sobretudo quando ronronava
feito um gato. Todos riam dele. Vai ver que foi por isso que o meu dono até
escreveu uma história sobre ele. Sobre a abordagem incompreensível do texto?
Nada sei dizer a respeito, só conheço mesmo a linguagem da nossa espécie.
Passei toda tarde
avistando de longe o meu pai esticado e morto. Ele penou muito até descansar de
vez, apesar dos esforços para mantê-lo em nosso convívio. De nada adiantou, era
sua hora! Vivemos em geral, um tempo curto, em relação aos outros animais e aos
humanos e as coisas acontecem rápido. E mais uma vez meu dono foi ao jardim do
prédio, desta vez para enterrá-lo; voltou algum tempo depois entristecido.
Pensativo, meu dono se dirigiu ao computador. Ele escreveu, escreveu; quando
aconteceu aquele patatí-patatá com a sobrinha, que se derramou toda em lágrimas
ao ler o que ele escreveu, enquanto eu permaneci encolhidinho no sofá, o que de
nada adiantou, pois eles voltaram à atenção para mim; ouvi-lhes dizendo que não
iam comprar outro irmãozinho, pois receavam que eu o matasse, por ciúme. Que
imagem eles fazem de mim? Só porque nos últimos meses assumi a condição de
mandar no “pedaço”? Está no meu DNA. Alguém há de ter pulso forte por aqui.
Os humanos são mesmo
estranhos! Vivem a conversar com a gente, no entanto, em algumas situações
desprezam a nossa capacidade de entendimento; de modo que quero externar uma
reclamação: Quem botou na cabeça deles que Porquinhos da India apreciam
televisão? Não vejo graça alguma nessas “empreguetes” da novela das sete. Gosto
mesmo é de barulho de plástico e do som da porta da geladeira! E tem mais.
Aqui, acolá, ficam a me acariciar... Odeio! Muito menos andar pra lá e pra cá
nos braços de alguém. Nessas horas dá vontade de falar o linguajar deles e
dizer: Ponha-me no meu canto, ou poderá ficar molhado! E o pior é que estão
dizendo que a cada dia devo dormir junto a um deles, para sentir-me seguro. Só
faltava essa! Quero lá isso? Deixa como está. Vou sentir a falta do meu pai, é
verdade, mas amanhã é outro dia. E pensar que somente eu e Marco Antonio nunca
fomos agraciados nos escritos de nosso dono? Sinceramente, não sei se estou
gostando disso!
Entendo que viver num
cercadinho, é solitário, podendo até ocasionar alguma inflamação pulmonar ou
até ser golpeado por algum inimigo enciumado; no entanto, dormir num lugar
alto, às vistas do dono, dificulta a mobilidade, ao contrário do que pensam, é
mais perigoso, pois bastaria um simples descuido e eu posso despencar de lá,
propiciando fraturas ou um punhado de males maiores, tais como: convulsão,
deslocamento do cérebro, enfim, um histórico longo de probabilidades. Os
humanos são desatentos, eles não priorizam nossas reais necessidades, não sabem
o que é normal para nós. Daí, mesmo contra a vontade, aqui acolá eu distribuo
cabeçadas, até que entendam que minha vontade é voltar ao alojamento. Não me
sinto na obrigação de ser alisado, enquanto perpetram longas leituras de livros,
ou participam de improdutivas conversas com vizinhos.
Para minha surpresa, meu
dono jamais comprou outro da minha espécie. Às vezes até tocava no assunto, mais acabava adiando a conversa, sobretudo,
considerando fatos envolvendo a sua família, lá do interior. Aliás, taí outra
coisa que nunca tive o direito da escolha. Nada nesse mundo de meu Deus me
incomoda tanto quanto viajar pro Sertão, a cada dois meses! Além da sensação de
estômago embrulhado pelos tantos solavancos da estrada, ainda tem aquele povo
que não sabe diferenciar uma coisa da outra; para eles todo bicho de quatro
patas, com rabo ou não, são ratos de esgoto. Pode? Eles ignoram que sou herbívoro, um primo da
capivara, o maior roedor do planeta. Quem me conhece sabe, odeio comparações.
Sou recifense de procedência e lá cada criatura se alimenta de acordo com sua
categoria de vida. Jamais me forçaram a comer alimentos repugnantes, tais como:
pamonha, canjica, arroz de leite e beiju. E por essas e aquelas, quando a morte
tenta se achegar, o meu dono me salva, à custa de soros e medicamentos, jamais
com chá ou crendices.
A alimentação
peletizada, regada à fruta, vitamina C, e soro fisiológico, me fizeram extrapolar
o meu tempo de vida. Não que eu ligue, fiz pelos meus donos, não queria magoá-los
e também carecia de um momento oportuno para descansar em paz. Quando vi a
sobrinha do meu dono arrumar as malas, para sua viagem de trabalho na Bahia,
percebi que ele ficaria só, então pensei: Nem morrer agora eu posso, fica pra
outro momento! A essa altura meus pêlos estavam desbotados e minha mobilidade
comprometida, nem de espaço físico carecia mais. Passava o dia trepado numa
cama, sob um edredom e com uma caixa de papelão e comidas frescas à disposição.
Tinha toda liberdade do mundo e nada parecia me motivar, só queria dormir... Dormir...
Dormir até que meu dono voltasse do trabalho, ocasião em que ele trocava os meus
panos e repunha o comedouro. Enfim, um vidão, digno de um legítimo raça Inglês,
de pelos liso e curtos, nada podia ser melhor. A essa altura, nem sei se sentia
a ausência de colegas para as andanças e vagabundagens; a velhice me trouxe
calmaria e a inteligência de observar sem interferir.
Esse ano as coisas lá em
casa não começaram bem. Há algum tempo que os pais do meu dono estão vivendo
conosco por conta de doença na família. O pai dele parece ter sido acometido de
uma doença bastante séria, pelo menos é o que dá a entender. As coisas andam se
arrastando, tanto que meu dono resolveu se afastar do trabalho para ficar mais
tempo no hospital. A tristeza tomou conta da casa e constantemente amigos e
familiares aparecem para conversar. Já não suporto mais tanto barulho de
telefones e campainha da porta tocando. E como se eu esperasse o momento
oportuno para me despedir, adoeci. Faz alguns dias que ando com um guinchar
agudo e sem vontade de comer. Meu dono logo percebeu minha perda de peso e
passou a medicar-me com soro, vitaminas e gotas de algum remédio, para que eu
não sentisse nenhuma dor. E, em meio a tudo isso, imaginei que seria o momento
para me despedir da vida. Não sei o grau de apreensão do meu dono quanto a
minha doença, pois ele vive muito no hospital, onde o pai agoniza no leito de
uma unidade intensiva, por conta de um choque séptico, pelo menos foi o que
disseram. Depois da anorexia ou falta de apetite, não devo amanhecer o dia de
amanhã respirando. Senti isso no seu olhar, quando me agasalhou com dois lençóis
e se deitou ao meu lado triste e calado, só atento a minha respiração forçada e
ofegante.
Se eu soubesse escrever
como o meu dono, eu deixaria um recado a ele, assim: “Não fique triste com a
minha partida, estou indo feliz, pois sei do quanto um humano é capaz de fazer
pelos seres de outra espécie, quando ele os ama de verdade, eu pude sentir a
força desse amor.”
Na certa, amanhã logo
cedinho, devo ser conduzido pelas suas mãos, ao canteiro do edifício, onde
serei sepultado junto aos meus irmãos, lugar batizado por ele, como jardim das
almas.
Autor: Carlos A Lopes - Olinda - PE
Olá, sou o Ziu, o menorzinho, e também o protagonista deste conto. Ao meu lado o meu pai de criação, Otávio.
Autor: Carlos A Lopes - Olinda - PE
11 comentários:
Um texto emocionante! Ficou tão bonito que em certos momentos da narrativa o leitor pode pensar se não foi realmente o Ziu quem contou a história. Só uma pessoa que tem um carinho verdadeiro pelos animais e um coração muito grande teria a sensibilidade de escrever algo assim.Parabéns, Carlos Lopes!
Muito bom texto. A história é envolvente e a forma de depoimento dá veracidade e aguça o interesse do leitor. Parabéns.
Obrigado, Alberto, vindo de você o elogio só posso ficar satisfeito com o elogio ao texto.
Obrigado Maria Mineira, você conhece bem o texto porque acompanhou toda composição, um texto feito em dois momentos.
Obrigado Maria Mineira, você conhece bem o texto porque acompanhou toda composição, um texto feito em dois momentos.
Eu já havia comentado antes, em outra etapa de construção deste texto, que esse era um de seus melhores, entre tantos outros que nos encantaram. Isso se deve certamente à veracidade dos sentimentos, da sua convivência tão dedicada aos seus porquinhos da Índia. Agora com inclusão de outro momento de sua vida, ficou ainda melhor. A narrativa em primeira pessoa deu uma graça especial ao texto. Parabéns, amigo.
Celêdian
Posso dizer que a marca desse texto é a sensibilidade. Extrema sensibilidade movida por um amor profundo. A primeira vez que o vi, ainda na forma original, me emocionou demais; agora, acrescido da mudança me emocionou em dobro. E o mais interessante é a fidelidade da narrativa, onde creio, o autor incorporou pela própria alma e coração, seu bichinho de estimação. Genial, Carlos! Marina Alves.
Obrigado Marina Alves, fico feliz que tenha apreciado meu modesto texto. Você tem toda razão, acabou sendo ou virando um texto especial para mim. Ele é todo verdadeiro, o Ziu morreu, não lembro bem, dois ou três dias antes do meu pai... Lembro que quando faleceu entendi como um aviso da perda do meu pai. Você tem toda razão, por um tempo o texto ficou faltando algo. Minha sobrinha sempre dizia: Tio, escreve o resto do texto, mostra coisas que se seguiram na vida do Ziu. Pra falar a verdade para mim o texto parava ali, nada mais a contar. A morte dos dois me fez relembrar que a homenagem aos meus bichinhos já seriam completa com o fim da história de todos. Creio que ficou bom assim, dentro do meu limite é o que pude fazer de melhor.
Olá Celêdian, obrigado, sobretudo pela dedicada revisão do texto; também pelas sugestões. Você foi a primeira pessoa que leu o texto, depois da Patrícia que estava ao meu lado quando escrevi. A primeira construção foi a mais rápida que já escrevi... Desci para enterrar Otávio e quando voltei fui direto para o computador e escrevi, minutos depois enviei para você que muito gostou do resultado.
Que linda e emocionante história, Carlos! Alegrias e tristezas narradas com a fidelidade de quem realmente vivenciou grandes amizades, de humanos ou não. Gostei muito de ter conhecido os seus bichinhos, através das suas palavras. - - Alice Gomes
Parabéns, Dom Carlito: esse texto diz muito de você, mostra seu nobre coração. Admiro sua capacidade de amar pessoas e animais. O texto prende nossa atenção do começo ao fim, sofri com a morte dos bichinhos. Adorei o titulo,que sugere plantar nossa dor em um jardim para ser transformada em flor.
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