segunda-feira, 12 de outubro de 2020

TEXTO COLETIVO: “DE VOLTA AO PASSADO”


 

[CELÊDIAN] Não foi nada fácil revisitar aquele lugar, passados mais de dois anos e confesso, me faltaram coragem e força, mas eu não poderia adiar mais. Postei-me de frente às duas lápides, que me pareciam frias e indiferentes àquelas histórias ali enterradas. Não sei quanto tempo permaneci em transe, estático. Como num replay de um filme, revivi os momentos felizes que junto à minha esposa Anna e à minha filha Polianna, foram os melhores anos de minha vida. Cheguei a sorrir ao senti-las assim tão perto de mim de novo.

Uma aragem gélida e o farfalhar das folhas secas me fizeram recobrar a lucidez e naquele momento senti um misto de saudade, tristeza, revolta, raiva. Lembrei-me de cada detalhe daquele fatídico dia, do sofrimento que parecia me sufocar. Estávamos em um acampamento no qual passávamos as nossas férias, quando Polianna, com apenas seis aninhos, se perdeu na mata. Foram horas e horas de uma angustiante busca, mesmo com a ajuda de outras pessoas que ali acampavam também. Dividimo-nos para procurá-la. Eu fui para o lado do lago, enquanto Anna se embrenhou na mata. Ao fim da tarde, eu retornava desolado ao acampamento, sem saber como contar sobre minha busca infrutífera. Foi quando ouvi os gritos medonhos de Anna, vindos da mata. Ela pedia socorro aos berros. Desabalei-me para a mata guiando-me pelo som da voz dela, até que não a pude ouvir mais. Continuei andando a esmo, sem rumo e foi quando me deparei com aquela cena horripilante...

[MARINA] O ar faltou-me, por um breve instante achei que não fosse aguentar. Minhas pernas trêmulas mal sustinham meu corpo e meu peito ardia num nó que me estrangulava. Com esforço sobre-humano corri para o corpo de minha esposa, mergulhado na poça de sangue que ainda jorrava aos borbotões por um imenso corte que lhe abria o pescoço de um lado ao outro. Ajoelhado junto ao seu corpo, fixei meus olhos de pavor no rosto pálido da bela mulher com quem fora casado por quase dez anos. Vi que sua fisionomia ainda guardava a expressão de terror que experimentara antes de morrer. Anna fora morta com requintes de crueldade e o assassino não a poupara de extremo sofrimento.

— Meu Deus! — exclamei num grito desesperado — Quanta barbárie! O que fizeram com você, meu amor!?

Depois de um longo tempo em que apenas consegui cobrir o rosto e chorar toda a minha dor, levantei-me com uma força que desconheci. Precisava chamar a Polícia, tomar alguma providência, pedir ajuda... Dei alguns passos adiante, tentando me orientar no meio da mata, e foi aí que outra parte do meu doloroso calvário me colocou novamente à prova: meio coberto pelos galhos de um arbusto, avistei o corpo de Polianna! O mesmo corte no pescoço, o mesmo modus operandi do assassino de Anna! Não tive dúvidas. Havia algo de muito sinistro por detrás das mortes das pessoas que eu mais amava. Os sinais deixados pelo criminoso não deixava dúvidas: certamente, tratava-se de alguém movido por graves distúrbios psiquiátricos, pois seria inconcebível imaginar crimes tão hediondos sendo praticados somente por maldade. Nada justificaria tamanha selvageria. Completamente aniquilado, atordoado pela visão de minha filha esvaída em sangue — à maneira covarde da mãe — deixei-me cair ao lado de seu corpo, e entre soluços que me sacudiam de forma incontrolável, fiz um juramento: eu viveria para vingar meus dois amores...

[JOÃO BATISTA] Impulsionado por esse sentimento, tomei nos braços o corpinho daquela criança que tanto amei, corri sem bem saber o que fazia até chegar ao acampamento e colocá-lo ao solo, num gramado. O pânico instaurou–se de imediato. Todos que ali também acampavam, rodearam-me, ficando em forma de círculo, falavam ao mesmo tempo, com exclamações de terror. Eu, ajoelhado ao lado de Polianna mal ouvia as vozes, só consegui entender que alguém ligava para a Polícia e passava as informações do ocorrido e da localização.

Em meio a tudo isso, senti uma presença incômoda, relanceei o olhar a todos que me rodeavam, até que em um ângulo de 45 graus à minha esquerda, meu olhar deparou-se com um rosto, que por alguma razão não me era estranho. Era uma mulher que aparentava uns 35 anos, porte esguio, cabelos ruivos ao ombro, olhos azuis, rosto delicado com algumas sardas nas bochechas. Usava um par de óculos de sol em cima da cabeça, prendendo o cabelo, e ao sentir-se observada por mim, baixou-o para os olhos e passou os dedos entre os cabelos jogando-os pra trás, de uma forma sensual, quase obscena, o que para o momento me pareceu uma afronta. Os músculos da sua face contraíram-se num movimento quase imperceptível, esboçando o que poderia ser um sorriso. Desviei o olhar, baixando-o para o corpo inerte de Polianna, mas pelo canto do olho a observava.  Ela tirou do bolso o celular e digitou alguma coisa, esperou alguns instantes. Parecendo ter recebido uma resposta, foi se afastando discretamente até que a perdi de vista.

Permaneci no mesmo lugar, imóvel, buscando na memória algo que pudesse me revelar quem era aquela mulher misteriosa. De repente, num flash a vi ainda adolescente...

             —Não! Não! Eu devo estar delirando, procurando um culpado. O som estridente da sirene da viatura policial trouxe-me de volta à realidade. 

            [ROSÁRIO] E de repente, eu me vi envolvido numa cena de terror, olhando os corpos das mulheres da minha vida sendo colocados em sacos plásticos, como se fossem pedaços de carne, cobertos de sangue e do pó da terra onde rolaram. Vi quando as levaram e alguém me guiou por caminhos que eu não via mais. Nem sei como cheguei a casa e quem me acompanhou nos momentos seguintes, quando passei pelo velório, assisti ao funeral e vi a terra cair sobre os caixões da minha mulher e filha, sem que uma lágrima sequer me rolasse pela face, ou que uma palavra saísse dos meus lábios. Fiquei assim não sei por quanto tempo, relutando em acreditar que tudo aquilo era verdade, que havia acontecido realmente.

              E os dias foram passando, a dor foi se acomodando, e eu tive que retornar à vida. E nesse retorno, a pergunta que me despertava todo dia era a mesma? Por quê?  Foi tentando entender o motivo que me lembrei dela novamente. Aquela mulher que eu vira no local do crime não me era estranha. Seu olhar buscava o meu enquanto falava ao telefone, foi um segundo só, mas eu havia percebido. E buscando lá no fundo das minhas memórias, de repente eu me lembrei.

             -- Era ela!  O olhar era o mesmo, meu Deus, como não pensei nisso antes? O que fazia ali, naquele momento?

                Foi então que me lembrei daquela noite. Éramos jovens, na nossa pequena cidade do interior, e havíamos terminado o ginasial. Fomos comemorar com os amigos o fim da nossa jornada e, pela primeira vez, eu bebi além da conta. Lembro-me de ter passado mal no meio da festa e saí para o jardim para respirar ar puro; estava me sentindo sufocado pelo cheiro de bebida e a fumaça de cigarros que me davam náuseas. E foi ali, recostado num banco do jardim que ela me encontrou. Lembro-me que nunca havia falado com ela, mas ela se mostrou preocupada comigo e me ajudou a recobrar do mal-estar. Ficamos juntos por algum tempo, até que minha mão mais atrevida começou a acariciá-la, num gesto impensado de carinho. Ela me olhou assustada a princípio, mas depois foi se aproximando, devagar. Notei que também havia bebido, mas que mal isso podia fazer? Não estava acostumado a me aproximar assim das meninas da escola, mas ela parecia diferente. Nossos corpos se tocaram, começamos a nos beijar e, de repente, eu não era mais eu. Perdi completamente a noção do tempo e do espaço e num instante estávamos rolando na grama, cheios de desejo. Ela parecia louca, sequiosa dos meus beijos, enlaçando meu corpo com as pernas, numa clara demonstração de que me queria. E eu cedi à fraqueza do meu corpo, deixei que a paixão me dominasse e a possuí como um animal selvagem.

                 Ficamos assim, por um tempo olhando as estrelas no céu, procurando palavras que não vinham e esperando nossa respiração voltar ao normal. Timidamente, tentei tocar-lhe os seios, mas suas mãos foram mais rápidas que as minhas e não deixou. Achei estranho e já ia me levantando quando um impulso me fez agarrar a sua blusa, que se abriu diante dos meus olhos.  A luz da lua iluminou seu dorso nu e o silêncio foi quebrado pelo grito de raiva dela e pelo espanto do meu. Em vão, ela tentava cobrir com as mãos, os seios que não existiam. Sob os dedos crispados, apenas cicatrizes escuras, que ela relutava em esconder. Meu olhar de espanto deve tê-la confundido, porque de repente ela saiu correndo enquanto me amaldiçoava:

               —Teve nojo? Tem nojo de mim? Ou tem pena? Seria diferente se soubesse? Maldito! Não diga para ninguém, ouviu? Ninguém!!!  Se alguém souber que sou assim, você ainda vai sofrer por ver cicatrizes mais fundas e tristes que as minhas! Nunca diga nada para ninguém, esqueça que eu existo e tudo que aconteceu aqui!!!

                  E sem que eu pudesse dizer nada, ela se foi, desaparecendo pela rua escura. Algum tempo depois, desabafei com um amigo e contei o meu segredo. Fui embora para a capital pouco tempo depois e soube que ela também havia se mudado, quando a nossa história virou tema de chacotas pela pequena cidade que deixamos. E agora, lembrando de tudo, as palavras “cicatrizes mais fundas e tristes que as minhas” latejaram na minha mente.  Tive medo dos meus pensamentos.  E de repente, a garganta cortada de Anna e da minha pequena Polianna se tornaram cicatrizes fundas e tristes nas minhas lembranças.

[CELÊDIAN] Tomado por sentimentos muito confusos, que variaram desde a sede de vingança pelos meus amores perdidos, a certa culpa pelo constrangimento que causei àquela moça no passado, resolvi tomar uma atitude para pôr fim a tamanho sofrimento. Decidido, rumei para a minha cidade natal em busca de informações sobre a tal moça, a fim de saber onde poderia encontrá-la para desvendar aquele mistério. Não foi difícil, pois aquele meu amigo que se encarregou de espalhar nossa história e torná-la motivo de chacota, foi o primeiro a quem procurei. Quase não o reconheci, o encontrei num estado lastimável, desde aquela época tornara-se um alcoolista inveterado. Não teve nenhum escrúpulo em me contar que passado algum tempo depois que parti de nossa cidade, Adelina, a moça a quem ofendi profundamente no passado, voltara, também para saber de meu paradeiro. Ela tinha sede de vingar-se de mim e ele, no afã de controlá-la, tornou-se seu amigo e posteriormente acabaram se apaixonando, até que se casaram. Adelina, que também se tornara uma alcoolista, tornou-se obcecada por encontrar-me, até que isso passou a interferir de uma forma incontrolável na relação deles. Contou-me que era louco por ela e faria qualquer coisa para não perdê-la e foi então que ela viu num destes sites empresariais, o meu nome e onde eu trabalhava, e daí começou a tramar sua vingança. Aproveitando-se da louca paixão dele por ela, o convenceu a ajudá-la em sua vingança. Vieram ambos para a cidade em que eu vivia com minha família e passaram a seguir meus passos, a conhecer minha rotina. Foi assim que tomaram conhecimento de nossas férias no acampamento. Foram até lá e de tocaia aguardaram o melhor momento de atacar a minha filha. Descreveu-me com detalhes o que Adelina, embora ela não tenha participado daquele brutal ato que ele cometeu, assistiu a tudo com a frieza de quem esperava há anos para ver marcadas em mim, cicatrizes mais fundas e tristes que as dela.

Ouvi cada palavra daquele relato horrendo tremendo de ódio e asco e sem pestanejar, abri minha pasta, saquei a minha arma e apontei para ele, mas algo me fez titubear, não consegui atirar naquele ser desprezível e miserável. Virei as costas e saí dali rapidamente. Foi então que tive coragem de voltar ao túmulo de minhas amadas e ali entre as minhas boas lembranças delas, que entendi porque não tive coragem de matar aquele sujeito: eu aprendera com elas ao longo de nossa convivência, que as pessoas más convivem com seus infernos particulares e que eles são o bastante para puni-las até que um dia se arrependam, ou não. Não somos nós que definimos as suas penas.

E ali diante da presença ausente de Anna e Polianna, sorri, senti-me em paz, finalmente!    


 GRUPO 4

AUTORES: 1 - Celêdian Assis de Sousa; 2 - Marina Alves; 3 - João Batista Stabile; 4 - Maria Rosário Bessas.


Um comentário:

Marina Alves disse...

Foi um exercício fascinante! Neste processo criativo, a cada parte, fomos montando o quebra-cabeças dos pensamentos e a diversidade resultou numa produção surpreendente. Foi um prazer interagir com meus queridos companheiros de Letras, João Batista, Celêdian e Rosário. Obrigada, Carlos, pela coordenação e orientação dos trabalhos.