[ALICE GOMES]
Aprendi
a nadar com ele, num riozinho do seu sítio, para onde eu ia em todas as minhas
férias. Com ele perdi muitas das minhas fobias. De nadar, por exemplo, porque
uma vez quase me afoguei na piscina e pensava que nunca mais entraria na água.
Ele me fez entrar, abraçado a ele, e me admirei por ter sido tão fácil!
Nunca mais esquecerei o que senti, perdendo meu medo e aprendendo sobre amor e
paciência. Também com ele aprendi a cavalgar, numa égua mansinha que havia por lá.
Ele, atrás de mim, segurando as rédeas da égua e a dos meus medos.
Querido
avozinho, quantos momentos maravilhosos passei ao lado dele! Quantos conselhos preciosos
aprendi com ele! E ele não seguiu o único conselho que lhe dei. Eu lhe disse
que seria perigoso para sua idade, mas ele insistiu, e deu no que deu...
[Maria Mineira]
Não
tem como falar de vovô, sem lembrar daquele quartinho onde guardava
sua antiga tralha de peão boiadeiro. Seu berrante, seu arreio, as esporas, a
capa, o pelego...Aquele era com certeza, seu bem mais precioso, dizia ele,
depois de vovó Doralice e eu, seu único neto.
Às
vezes, no meio de alguma história, ele ria e deixava a esposa toda sem
jeito, ao lembrar a época em que se conheceram. Foi quando comandou uma
Comitiva na Região do Pantanal, acabou roubando a filha do fazendeiro e casando-se com ela.
Doralice,
minha vó, contou-me que na juventude, vovô era um boiadeiro afamado. Seu nome
corria nos estados de Minas, Goiás e Mato Grosso. Era solicitado para
todas as festas regionais. As moças
suspiravam por ele, e os homens o invejavam. Além de saber como ninguém, lidar
com o gado, ele emocionava a todos, quando cantava e tocava sua viola...
[Cristhian Dias]
Naqueles
dias, haveria uma grande festa em comemoração aos cento e sessenta anos do
Vilarejo dos Anjos. Local onde vivia um povo simples, como já não se vê. Eram
tão religiosos que antes do festejo, reuniam-se para rezar na capela da Virgem
dos Pobres, pedindo prosperidade nos negócios, salvação para os falecidos e
bênçãos para as famílias.
Logo
após o estouro dos foguetes, o povo, fatigado do serviço, após rezar na capela,
saia para festejar o merecido descanso. Aquela festa duraria uma semana. Foi
nessa época, que me arrependi por ter acompanhado vovô pelas estradas de terra
até o vilarejo.
Em
um determinado momento, passou um carro de som anunciando a programação da
Festa. Enquanto eu reclamava da poeira que o carro fez subir, vovô ouvia
atentamente, assim como uma criança fixando o olhar em seus doces, as palavras
do homem que anunciava.
Pouco
me lembro das palavras que o maldito divulgava, mas o pouco que recordo hei de contar:
— Venham todos para o
Vilarejo dos Anjos! Venham rapazes, moças, crianças, festejar o aniversário de
nossa vila! De segunda à sexta-feira, contaremos com um baile para os casais!
Ah! E durante os primeiros cinco dias, haverá inscrições para o Rodeio que
ficará na história!!! Valendo um prêmio de [...]
Confesso
que não me lembro o valor do prêmio, talvez seja porque meu avô não fazia
questão da premiação, mas sim daquela desalmada tentação. Ele ficou ansioso,
sei que as batidas de seu coração pulsaram mais fortes, no instante em que
ouviu a palavra “Rodeio” .
Perguntei
em tom irônico:
— O senhor ficou doido?!
Mesmo
sendo ainda menino, sabia que aquilo não convinha para vovô, pois ele já era um
idoso!
— Só pode! Já não basta a falação de vovó,
o senhor inventa essas ideias de rodeio?! Vô, o senhor já passou dos sessenta, por que não procura fazer aquilo que os de sua idade fazem? Vá jogar truco, rezar
terço, mas vê se não coloca essas ideias de rodeio na cabeça!
Naquele
dia, meu avô deve ter se assustado com a firmeza de um moleque ao se dirigir a
ele. Ficou em silêncio, mas este silenciar não era sinal bom, pois quando ele
ficava calado, já podia se imaginar: “Nosso velho vai aprontar...”
[Helena Souza]
E
foi o que o velho fez. Ninguém percebeu quando ele saiu cumprimentando a todos
os boiadeiros, aos peões, ao padre que tinha acabado de fazer a oração que daria
início à festa. Até hoje eu não sei o que um padre faz nesse tipo de evento,
onde se maltratam os animais.
Eu
nunca gostei de assistir a peões subindo em bois, esporar os coitados e ainda
sair sorrindo, depois de levar umas chifradas....nunca, nunca pude entender.
Mas meu avô pertencia a esse tipo de pessoas. Ele vibrava a cada pulo dos
pobres animais e a cada peão que caía no chão ou que se sustentava além dos
minutos necessários.
Mal
sabia ele que naquele dia, o peão jogado para o lado seria ele. Meu avô
havia ganhado uma cortesia para assistir ao rodeio dentro da arena. E
quando o terceiro boi voltou enfurecido e aos pulos, depois de levar várias
esporadas, quem estava no caminho? Vovô Queiroz.....e ele nunca mais foi o
mesmo depois daquela chifrada.
Nunca
mais andou e a tristeza consumiu seus dias. Eu pedi tanto a ele para não
ficar lá dentro, mas o velho, embirrado que era, não me ouviu. Não ouviu
o único conselho que lhe dei...
[Epílogo: Alice
Gomes]
Nunca
mais pôde subir em cavalos, sua grande paixão... Como se recusava a usar a
cadeira de rodas que papai lhe comprara, passava o dia deitado na cama, olhos
perdidos no teto. Às vezes, papai insistia que ele participasse das refeições
da família e o carregava no colo até a cozinha. Depois, sentava-o à janela,
onde permanecia em silêncio, observando as revoadas de passarinhos, na imensa
árvore que havia na frente da casa e que dava vista para a curva do
riacho, pouco mais adiante. Sabe Deus em que pensava meu avozinho nesses
momentos...
Alguns
meses se arrastaram, para ele e para mim, que o observava, consternado, me
sentindo impotente, sem saber como lhe devolver ao menos o brilho do olhar.
Seus músculos foram se atrofiando, seu apetite diminuindo a cada dia e, por
fim, uma depressão severa roubou-lhe definitivamente a vontade de viver.
Quando
partiu, eu era ainda criança, porém, essas lembranças doloridas jamais me
abandonaram. Hoje, percebo que foi por ele que contrariei a vontade de papai,
que sonhava para mim, uma carreira completamente diferente, de prestígio e
grandes posses financeiras. Instintivamente, optei pela Fisioterapia, com
especialização em Watsu (shiatsu aquático) e Equoterapia, ambas direcionadas
aos sequelados por acidente ou doença.
Não
raro, ouço relatos emocionados de familiares dos meus pacientes, pela melhora
muscular e, principalmente, pela sensação de liberdade que a água ou os cavalos
lhes resgatam. Por coincidência (ou não) os dois medos que ele me ajudou a
perder.
Autores: 1 - Alice Gomes; 2 - Maria Mineira; 3 - Chisthian Dias e 4 - Helena Souza.
2 comentários:
A história ficou muito bonita! Parabéns a todos.
Gente, saí do grupo porque não tenho tempo mesmo de ler, nem de participar...
Parabéns aos colegas que produziram uma história que tem todos os ingredientes para ser verdadeira. Abraço geral
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